domingo, 31 de outubro de 2021

O ENCONTRO DE OUTONO (um conto de Rogério Rocha)

vienna monovisions | David Weintraub
Foto: David Weintraub - Internet


O ano de 1919 trouxe a Viena um início de inverno moderado, com temperaturas que muito lembravam a do recém-findado outono.

Com os treze graus centígrados daquela manhã nublada, o consultório do respeitado doutor era um abrigo mais que bem-vindo.

Chegou na hora marcada. Na rua pouco movimentada, ficou a observar os relógios na vitrine de uma loja no prédio ao lado do seu destino. Por alguns poucos minutos titubeou, não sabendo se entrava ou não. Da calçada divisou, ao final da avenida, a catedral gótica da cidade. Com uma expressão congelada no rosto, ouviu o primeiro toque do sino, que badalava as três horas da tarde.

Respirou fundo, tirou o chapéu, encarou a porta diante de si, bateu levemente e, logo a seguir, pode entrar.

Sem perder tempo, mas com grande discrição, apresentou-se à secretária na antessala e, após a confirmação do seu nome, dirigiu-se ao consultório. O gabinete do médico neurologista, iniciador de pesquisas sobre novas técnicas para a compreensão da psique humana, era sóbrio e acolhedor, com uma decoração clássica, alguns pequenos quadros na parede, tapetes persas, mobília de madeira em tons amarronzados, com uma estante cheia de livros e prateleiras que continham pequenas peças de arte africana, asiática e outros minúsculos elementos cênicos.

O doutor cumprimentou seu novo paciente com um breve aceno de cabeça e logo estendeu o braço, apontando-lhe o divã.

Após tirar o casaco e acomodá-lo num local apropriado, o jovem escritor deitou-se no local indicado. Fora do seu campo de visão, o médico encontrava-se calmamente sentado em sua poltrona, com um caderno de anotações ao lado de uma pequena mesa. Na ocasião, orientou o paciente a falar com liberdade o que lhe viesse à mente, sem se importar com narrativas lineares.

Após acender um charuto, o analista perguntou-lhe:

- Sente-se confortável?

- Aqui, deitado? Sim, estou bem! – respondeu com um semblante tenso.

- E para falar? Está pronto?

- Depende! Sobre o que devo falar primeiro?

- O que quiser. Sinta-se livre para começar. Quero que caminhes até sua verdade.

- Minha verdade! Talvez ela esteja escondida dentro do meu medo. Do medo de mim, da vida que tenho levado, do meu futuro e... do meu pai.

Enquanto o jovem falava sobre suas angústias e desejos, o terapeuta via surgir, em meio às verbalizações carregadas de tensão, sinais de um conflito existente com a figura paterna.

Ouvia os relatos do paciente sem intervir. Vez por outra, contudo, pedia um breve esclarecimento sobre algum ponto ou fazia questionamentos bem sintéticos, a fim de ajudá-lo a lidar com os incômodos. Afinal, havia um peso na narrativa daquele homem. Era como um fardo gigante, um estado de permanente sofrimento que decorria de traços de sua história familiar e que seu analista buscava atentamente identificar em algum ato falho ou lapso da linguagem.

Mas, enfim, eis que a palavra pai se revelara, abraçada a um indisfarçável desconforto, captado ao ver-se o semblante e ouvir-se a voz do analisando.

- Acabei de escrever uma carta para ele. Sim! Uma longa carta. Mas, sinceramente, não sei se a lerá. Na verdade, não sei sequer se chegará às mãos dele. Aquelas mãos que, se pudessem, com certeza me despedaçariam. – disse, com a voz trêmula.

Com o charuto entre os dedos indicador e médio da mão esquerda, o condutor da sessão ouvia o que era dito, fazia anotações (a fim de ajudar no processo de memorização do caso) e breves comentários. Enquanto isso, o paciente começava, num crescendo do tom da voz, a externar fatos que o impediam de ser ele mesmo e que estavam ligados ao seu relacionamento com o velho genitor.

- Ele parece um Deus. Lá em casa é como o vejo. Uma espécie de carrasco que vive para me perseguir, para tentar me intimidar, para me pressionar, dia e noite. – ressaltou o paciente.

- Há muitos pormenores que não consigo contar... nesse medo que eu carrego do meu pai. Mas odeio quando ele me desqualifica e condena o meu futuro. E faz isso na frente de todos. Sim, eis o meu fabuloso pai!

- De tanto ouvir seus sermões públicos, acredito piamente em todos os argumentos que usa. Por causa dele, só tenho a verdadeira sensação de mim mesmo quando estou infeliz.

- Para piorar, agora quer me impedir de casar com a mulher que me ama de verdade. Quer estragar minha única fortaleza: o amor. – disse, com a voz levemente embargada.

- Somos de carne e osso, mas a vida nos trata, por vezes, como se fossemos de ferro. – comentou calmamente o analista.

Depois de um breve silêncio, o jovem retomou sua fala:

- O muro que meu pai ergueu entre mim e Julie é quase intransponível. Mesmo assim, tenho esperança. Sei que existe e é pequena, mas não posso abrir mão das possibilidades. Não tenho esse direito!

- Ainda assim, o que vejo hoje? O que tenho visto? Apenas a minha própria sombra e o medo que sinto, como se fosse a mão impiedosa do meu pai em minha garganta. – falou, arregalando os olhos que miravam o teto.

- O peso de ser filho é terrível, no meu caso. Meu pai é muito grande para mim. Sua presença é muito forte. Sinto que me esmaga com sua indestrutível superioridade. Com sua vontade de me ver um homem forte e corajoso. Coisas que não sou.

- Ele me cobra todos os dias. Todos os dias. Pergunta onde deixei minhas responsabilidades para com os negócios. Diz que sou um fracasso. Que não valorizo a liberdade que ele me proporcionou. Mas... liberdade? Que liberdade?

- A que teve ao me deixar fora do quarto, com frio e sede, quando eu era apenas um menino chato e chorão, gritando no meio de uma noite chuvosa? A que me ajudou a ser esse nada incontestável, que ressalva sempre que toca no assunto com os parentes à mesa do jantar nos domingos? – questionou o analisado, esbravejando no divã.

- Muitas vezes sonho com ele a me perseguir, doutor. Sonho que estou saindo de uma floresta muito densa, após correr por metros e metros. No final, respiro fundo ao ouvir o clique de um revólver. Depois fecho os olhos e acordo quase sem ar. – diz o jovem escritor, encenando o seu susto.

- Daí para a frente não há mais retorno, ponho na mesa a culpa por todos os meus erros. Estou imerso em silêncio. Até sinto o meu medo dissolver-se dentro dele. Ah, você não sabe a energia que reside no silêncio! – murmura, com um leve sorriso na face.

- Deves perceber que de erro em erro a verdade vai-se revelando. – comentou o médico, enquanto fazia anotações em seu caderno.

- A verdade para mim, doutor, é sempre um abismo. Se não me libertar, irá me destruir. Assim como meu pai tem tentado destruir a minha felicidade.

O analista enfim olhou para o relógio de bolso e informou ao novo paciente que a sessão estava encerrada. O jovem levantou-se um tanto lentamente, como se quisesse permanecer deitado mais um instante. Já de pé, o médico achegou-se frente a ele e, antes que se retirasse, lhe disse:

- A felicidade, caro Franz, é um problema individual. Nesse campo, nenhum conselho é lá muito válido. Afinal, cada um deve procurar, por seus próprios meios, tornar-se feliz. No mais, em última instância, precisamos amar. Amar para não adoecer.

O escritor, por alguns segundos e em silêncio, olhou fixamente no fundo dos olhos do médico. Depois estendeu-lhe a mão, apertou-a com firmeza, despediu-se, vestiu o casaco, pôs o chapéu na cabeça e deixou o consultório com a mesma discrição com que entrara. Logo após sua saída, aparece a secretária para avisar que aquele tinha sido o último atendimento do dia.

- Dr. Freud, o paciente Franz Kafka terá uma nova sessão na quinta-feira da próxima semana, nesse mesmo horário. Achei a expressão daquele jovem meio perdida, o semblante pesado. O senhor acha que ele vai retornar?

- Deixemos isso para uma outra hora, Anna! A resposta à sua pergunta é tão incerta quanto saber se amanhã um de nós dois irá acordar resfriado. A única certeza que tenho agora, e posso lhe garantir, é que estou me dirigindo ao café. Queres me acompanhar?

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Quem levará o Nobel de Literatura de 2021?

 

Rogerio Rocha

Por Rogério Rocha

O Prêmio Nobel é constituído por seis prêmios concedidos todo ano em várias categorias, sendo conferido a pessoas que tenham dado alguma contribuição relevante à humanidade em sua área de atuação. São seis as categorias: medicina, física, química, literatura, paz, economia.

Nesse artigo quero falar sobre um dos prêmios. Especificamente o Nobel de Literatura, que será entregue no dia 7 de outubro.

Para início de conversa é bom lembrar que faz quase uma década que a Academia Sueca não premia alguém de fora do eixo América do Norte/Europa. Tal fato, em tese, depõe contra o caráter supostamente “inclusivo” da instituição, razão pela qual, segundo os analistas, a partir de alguns indícios, possivelmente o(a) escolhido(a) da vez seja um não ocidental ou alguém de outro continente. 

Mas afinal, a pergunta é: quem levará o prêmio de 10 milhões de coroas suecas (o equivalente a 980 mil euros) para casa? As cartas já estão na mesa. Ou melhor, os nomes, as carreiras, os lobbies e os livros.

Como não sou vidente, nem tenho pretensão de evocar dos meus ancestrais algum poder mental escondido, não posso cravar quem vai vencer. Ainda mais ao lembrar que os “critérios” de escolha dos eleitos passa longe do simples mérito literário, sendo composto de um bom número de variáveis sobre as quais, pelo menos para mim, recaem dúvidas mais do que fundadas.

Querem entender o que estou falando? Anotem aí! Nomes como Jorge Luís Borges, Carlos Drummond Andrade, Franz Kafka, Leon Tolstói, Marcel Proust e Philip Roth – reconhecidamente notáveis escritores e cujas obras ultrapassam as quadras internas da geografia de seus países de origem, nunca foram lembrados pelos suecos, desde 1901, quando a premiação teve início.

Este ano, muitos são cotados para suceder a norte-americana Louise Glück, vencedora da última edição. Dentre os favoritos estão Jamaïca Kincaid (uma caribenha estadunidense), César Aira (da Argentina), Mia Couto (de Moçambique) e o japonês Haruki Murakami. Também figuram dentre prováveis candidatos à máxima láurea das letras mundiais o polêmico francês Michel Houellebecq (indico a leitura de “Submissão”, um livro impactante), a canadense Margareth Atwood (muito em voga pelo seu ótimo “O conto de Aia”, adaptado para uma série), o americano Don Delillo (autor de livros como “Americana” e “Ruído de fundo”) e a inquietante Joyce Carol Oates, dona de uma bibliografia que (pasmem!) ultrapassa os cem livros.

Caso optem por eleger o vencedor ou vencedora, como apontam alguns, de países ainda não contemplados com a premiação, temos aqui dois nomes importantes a serem observados: o queniano Ngugi wa Thiong’o (um forte candidato), que aborda as tensões raciais e a violência em seus escritos, e a jovem escritora Chimamanda Ngozi Adichie, cuja visibilidade midiática tem passado pela visão pós-colonial e pela defesa do feminismo.

Temos aí, então, um mosaico humano que traz as figuras que poderão compor a lista de escolha de onde será definido o nome do homem ou mulher a receber o Nobel de Literatura de 2021. Se tenho favoritos? Sim. São eles: Michel Houellebecq, Margareth Atwood e Ngugi wa Thiong’o. 

É isso! Agora nos resta esperar para saber se a Academia Real de Ciências Sueca e a Fundação Nobel irão nos surpreender este ano.

terça-feira, 24 de agosto de 2021

NEM MORTA (Um conto de Rogério Rocha)

 

    
    
Mulher deitada – William Côgo

Imagem: Internet - William Côgo

 

O sinal de aviso tocou novamente. É a décima chamada de hoje.

Júlio pôs-se de pé, quase como num susto. Levantou a cabeça, respirou fundo, olhou para o alto. Além de um teto branco, nada havia para se ver.

A noite começara há pouco e mais corpos haviam chegado. Dessa vez dois indivíduos de trinta e poucos anos, mortos num acidente de carro. Enfim, a primeira ocorrência cujos óbitos não decorriam da Covid-19.

Seis dias na semana, ao longo de quinze anos, Júlio Viana tem estado em atividade. Trabalhou em muitos lugares, mas, depois, entrou num ciclo de arranjar empregos que ninguém queria. Para sobreviver, foi agente funerário, esteve um tempo no serviço de verificação de óbitos e depois no preparo para sepultamentos. Uma carreira nada convencional, sem visibilidade, reconhecimento ou coisa do gênero.

O fato é que, ultimamente, estava cansado de tudo. Sensação que só aumentava, na medida em que lembrava de todas as chances que desperdiçou, o tempo dispendido com coisas fúteis e que nada adicionaram à sua vida, a acomodação e o marasmo a que se acostumou.

Odiava a profissão quando nela iniciou e, ainda hoje, tem esse mesmo sentimento, apenas com a adição de uma admirável dose de resiliência (o que contrasta abertamente com sua ânsia de mudança). Para além disso há o medo: o medo, ingrediente que se misturou ao cotidiano conturbado que a peste impôs.

O cansaço aumentava e a paciência se extinguia. As cobranças, a sobrecarga, o rumo incerto de sua vida, a solidão pela qual optara. O calafrio que ia e vinha, sua nuca que doía, os olhos vermelhos, as dores nas costas...

Todos os dias, agora, são quase invariavelmente turbulentos. Onde antes tudo era silêncio, hoje é silêncio, dor, desolação. Antes o nó nas tripas, agora o nó na garganta. Mortes a granel, choro, ranger de dentes e uma moléstia de origem obscura que acabou por transformar completamente o turno da noite, que se tornou um pandemônio.

Ao entrar na sala de necropsia, a máscara o sufocava. Ele a ajeita em seu rosto suado. Ela o oprime. Dificulta a sua respiração. Seus pensamentos, em devaneio, o desnorteiam. Imagens, rostos, palidez, rigores, passagens, rasgos nas peles, na alma, cavidades escavadas, projéteis... o tempo a escorrer pelas retinas, as narinas que nada sentem, memórias que piscam e se apagam, cansaço, cansaço...

Faz um pouco de calor e, talvez por isso, odeie ter de usar tantos equipamentos de proteção. As camadas de vestimenta que o recobriam – o macacão, a touca, a viseira – deixavam a impressão de que estava a salvo. Que dentro daquele pequeno inferno ia tudo bem. Lá fora estava pior, pode alguém pensar.

Sobre o grande balcão metálico do centro da sala estavam os cadáveres de uma mulher e um homem. Sobre eles, a luz fria de uma luminária clean.

Aproximou-se dos dois para começar seu trabalho e retirou o manto que os encobria. Diante de si uma mulher loira, de pele branca e bela compleição física, com os olhos perdidos no nada. Além da rigidez de seu silêncio, no sono eterno, a expressão de pavor na contração dos músculos da face, que ficou como amarga lembrança de uns poucos segundos de reação antes do choque.

Tinha escoriações no tórax e sangue pelo rosto, que lhe caíra justamente em decorrência do traumatismo que sofrera no crânio.

Na medida em que Júlio o retirava da face da morta com um pano umedecido em álcool, um novo quadro se revelava. Aos poucos, sua memória passou a buscar um rosto como aquele, de alguém que conhecera um dia. A familiaridade dos traços da face, ainda que mais maduros, e alguns detalhes como a estatura, os lábios, a curvatura do nariz, as curvas do quadril e o formato dos seios, levaram sua imaginação aos tempos de estudante.

À medida em que se esforçava em lembrar, ficava mais forte a certeza de que a pessoa ali deitada fora uma paixão platônica chamada Lúcia. Colega de classe por quem nutria um sentimento tão idealizado que somente tivera, no tempo em que frequentaram as mesmas aulas na faculdade, apenas duas ou três chances de conversar com ela.

Impactado pela situação, o preparador sentiu uma tontura súbita; suas pernas fraquejaram, seu corpo tremeu. Com os olhos cheios de lágrimas e o coração disparado, afastou-se do cadáver por uns instantes, dando as costas àquela cena. Apesar da experiência que o trabalho lhe dera, e a frieza necessária para tratar com pessoas mortas, não esperava defrontar-se com igual situação.

Ignorando completamente o homem que jazia ao lado dela, para quem sequer olhara, Júlio voltou-se novamente para a mesa, pôs as mãos sobre o corpo de Lúcia e o percorreu como que num gesto de oleiro, moldando lentamente suas curvas, tateando suas cavidades, tocando as pernas, os braços, os seios com que tanto sonhara... Em seguida, encostou a cabeça sobre eles e chorou novamente.

Depois, então, voltou-se tristemente para ela, a mirar aqueles olhos já sem brilho, num rosto tão bonito. Tirando as luvas, tocou sua face pela primeira e última vez. Por fim, a beijou lentamente, tocando com ternura seus lábios naqueles frios lábios, e lembrou da vez que lhe pedira um beijo, depois de dançarem uma música na festa de formatura do curso, tendo ouvido daquela boca, ali semiaberta, a seguinte frase: “Eu, te beijar? Nem morta, cara! Nem morta!”

Como são tristes as ironias do destino.

Júlio então cobriu o cadáver de Lúcia, desligou a luz e, antes de sair, deixou sobre a mesa do diretor sua carta de demissão. Decidira abandonar o trabalho. Ao ir embora, desconsolado, levou consigo a amargura de um péssimo dia e o início de uma tosse seca que, com o passar do tempo, tenderia a piorar.

 

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Documentário - Cassiano Ricardo: Poesia e História

ASSINADO, ALFREDO [conto de Rogério Rocha]


Quanto mais conheço os homens, mais me aproximo das mulheres - O outro lado  da notícia

por Rogério Rocha

 

Nina escamoteava com êxito sua homossexualidade, vivendo 10 anos em relação conjugal com Alfredo. Contudo, amava mesmo era Selma.

Amava e muito. Era com ela que suas excitações se concretizavam. Era sempre a ela que recorria, em saídas anônimas, quando dos encontros movidos a álcool e beijos de paixão. Seu universo de mentiras mixava dramas e sonhos, realidade e esperanças. Um dia, entretanto, imaginava poder ainda desfraldar de vez aos olhos da sociedade a verdade que escondera.

Afinal, embora enfeixada por ciúmes, a relação de Nina com o esposo lhe era útil. Um verdadeiro presente para a ex-menina pobre que encontrara num homem de condições econômicas bastante favoráveis o porto seguro para as antigas carências materiais, para o desejo de felicidade, conforto e ascensão social. Algo que enfim tivera nessa uma década.

Mas como na vida tudo está atado à inexorável ordem do que lhe é finito, um dia descobre-se ali adiante uma última estrada, um último gole, o capítulo fatal daquele enredo. Com Nina não seria de outra forma.

Após anos de desconfianças, o respeitado cirurgião plástico, professor universitário, 15 anos mais velho que a esposa, teve acesso aos indícios e depois às provas da recorrente infidelidade que sofrera. Caíra enfim o pano das aparências. Em seu lugar viu-se surgir um espetáculo de fotos, imagens, e-mails, vídeos, áudios e ligações telefônicas conseguidas por um investigador particular que Alfredo contratara.

O efeito daquele vendaval motivou a ira, depois a decepção, a amargura, a dor e, enfim, o pior de todos os desejos: o de vingança. Mas quando não se tem coragem para desvirtuar uma biografia com a cessação do problema por meio do atingimento do seu causador, busca-se debelar a causa.

O marido de Nina fez de tudo. Inclusive clonar o número do telefone celular da esposa para corresponder-se com a amante dela. E foi por meio de mensagens de texto e da posse da informação sobre o endereço de Selma que pôde, então, encerrar um drama dando início a outros.

Domingo, 10 horas da manhã, prédio onde mora a amante. Nina chega sorridente, transparece em sua face aquela satisfação que temos ao rever alguém especial. Passa pela portaria, chama o elevador, sobe ao décimo andar, caminha até a porta, insere e vira a chave da porta, abre-a e entra.

O apartamento está arrumado e com as janelas abertas. Joga sua bolsa sobre o sofá da sala de estar. As cortinas brancas balançam suaves ao vento. A tv da sala, ligada num canal de filmes antigos, passa Casablanca.

Nina chama pelo nome do seu amor. Uma, duas, três vezes. O silêncio do ambiente contrasta com o seu sorriso. A intimidade a leva até o fim do corredor e o acesso ao quarto principal é tranquilo. Selma está lá, sobre a cama, deitada na posição de costume.

- Oi, amor! Dormindo até essa hora? – perguntou Nina.

Ao dar conta da cena tétrica, o sorriso congelou-se no rosto, esmaeceu e apagou-se numa fração de segundos. Apagado também estava o olhar de Selma. Perdido num ponto qualquer do teto. No pescoço abria-se um rasgo, de um lado a outro, abaixo do maxilar. No travesseiro o sangue não tão recente. Ao lado do corpo um bilhete com uma letra que lhe era familiar, dizendo: “Agora conheço teu segredo. Não caberá mais em teu coração, nem dentro das tuas mentiras. Eu te odeio! Assinado, Alfredo.”

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

domingo, 20 de dezembro de 2020

UM SOPRO DE VENTO EM MEU ROSTO

Rogério Rocha
Rogério Rocha (filósofo e escritor)


Por Rogério Henrique Castro Rocha

 

Bateu com as mãos seis vezes sobre seu peito. Um tronco forte, forjado na luta cotidiana e em anos de saga no trabalho das fazendas do interior. Punho cerrado, braço forte, como o peso de um porrete. Vi no gesto algo como um primata em ambiente natural, num alarido que aos outros soaria quase como um ritual bárbaro. Uma forma extrema de reafirmação de seu poder.

Gritou, esmurrou, socou. Primeiro o peito dele, depois o meu. Sobre o dele os murros eram como impulsos de energia, a potencializar ainda mais a dinâmica daquele momento. Uma prévia da ação. Sobre o meu, era como se uma carreta estivesse por me esmagar. Era quase um coice de cavalo bravo.

Bateu com força e esbravejou. Sempre que fazia isso era a meio metro de distância, deixando a espuma respingar dos cantos de sua grande boca. Aquela mesma que um dia, sedenta, desfrutei ao beijar a primeira vez. É... Quem diria.

Apesar dos meus pedidos, era incapaz de parar. Minha alma estava pálida àquela altura. Meu rosto também. Mas depois mudaria para pior, ficaria rubro, vermelho. Nele o sangue, a fraqueza, a frouxidão...

Ele veio com tudo. Sim. Veio com fome de mim. Distribuiu um golpe seco, chapado, com a palma da mão cheia de calos sobre a minha face. Afinal, o trabalho na obra nunca o dignificara. Nunca, nunca mesmo.

Ele bateu em seu peito de rinoceronte. Bateu, depois cuspiu sobre mim. Empurrou-me sobre a mesa da cozinha. Com os braços esticados em sua direção, as mãos querendo proteger o rosto, retruquei com algumas palavras tímidas que nem sei quais foram. Mas não importa! Para mim nada importa hoje. Para ele menos ainda.

Fui tímida a vida toda. Tímida e tola. Sobretudo quando deitava na cama para que o seu pesado corpo, ainda não banhado, me amassasse com frenéticas investidas, que bagunçavam tudo dentro de minhas entranhas.

Algumas vezes percebi ser eu a fonte daquela gênese de sentimentos, mas tudo muito confuso. Ciúmes e posse, amor, violência, querer e ceder. Depois, mansamente, fui recuando para dentro do meu deserto de esperas e falsas esperanças. Espera pelo que nunca seríamos e esperança pelo que deixaria de ser também, muito brevemente.

O café que derramei sobre o pano da mesa, quando contra ela me choquei, estava preto. Sem um pingo de leite. Preto, preto, simples como a vida. Sem açúcar também, isso lembro. Mas não consegui pegar o pote, pois foi justo quando ele chegou do trabalho. Estava tarde. Era tarde mesmo, eu sei. Mas parece que para mim tudo é tarde já faz um tempo.

Sofri em desespero com as descargas de adrenalina que faziam daqueles olhos verdes, que me fulminavam segundo após segundo, um lago de insanidade. Também sofri pelos trancos que minha coluna pegou, pelos trincos que a cervical devia ter, por causa daquelas mãos pegajosas atadas aos meus braços, a me sacudir como se fosse uma boneca de pano em tamanho gigante.

Foi quando girou rumo à porta que dava para o pequeno quarto dos gozos que eu não mais tivera, em busca do cinto que sempre usava, que abri a gaveta do armário da cozinha, tirei a faca de pão e a escondi atrás de mim. Na volta, com a mão direita a esmagar minhas bochechas, num breve deslize da guarda, antes de outra surra, enfiei de um golpe só o pequeno instrumento no lado esquerdo de sua garganta. Foi duro, rápido, urgente. Quase um flash para mim, a eternidade para ele.

Ouvi um urro de leão ecoar no espaço diminuto da nossa casa, um corpo imenso a cair no chão esperneando, debatendo-se como um porco a estrebuchar. Paralisada, devorei com os olhos lacrimosos a imagem daquele monstro, já nas últimas. Até o ponto em que pude, eu o encarei, navegando em velocidade da luz as memórias destroçadas de uma história de constantes desassossegos.

Depois do que vi, não tive mais pena, medo, dor, cansaço. Saí sem trancar a porta. Sem olhar ao redor. Mãos sujas de sangue. Deixei naquela casa minhas roupas e o pouco que construí com o meu carrasco. Num rumo incerto, passei a correr mais leve, mais rápido. A alma então, outrora pesada, bem mais que a sombra frágil do meu corpo, fugia em disparada.

Era noite. Ia eu embora pela rua deserta. Chorava e sorria, num descontrole que lembrava o jorro de ar na torneira, quando a água chega. Por mero influxo, o riso me tomou a face, lambeu meus lábios, limpou todo o sangue. Ao mesmo tempo, sentia, com prazer, um sopro de vento que beijava meu rosto e um forte arrepio, da coluna à nuca, enquanto descia a ladeira em direção ao nada daquela vida que acabara e ao tenso encontro com a liberdade de uma incerta madrugada.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

COMENTÁRIOS SOBRE O LIVRO DE POEMAS "PEDRA DOS OLHOS" (TEXTO DO ESCRITOR CHARLES SIMÕES)


Reproduzo aqui um texto de autoria do escritor maranhense Charles Simões, onde tece considerações sobre a leitura de meu livro de poemas "Pedra dos Olhos". Boa leitura!

 
"Não sou crítico, mas se entendesse das coisas que necessitam de crítica talvez lesse um pouco mais, não para fazer uma crítica mas uma reflexão a partir das reflexões que me foram postas pelos textos que me foram apresentados.Como não sou crítico nem poeta, direi umas palavrinhas a respeito desta obra que acabei de ler depois de ter lido o autor que me impulsionou a ser um dos seus leitores a partir de um texto que postara hoje neste 27 de outubro que não é de Francis Cabrel.
 
A obra é " Pedra dos Olhos" da Editora Hamsa e o autor é o maranhense Rogério Rocha, professor e filósofo. Eu já conheço o autor e por vezes que nos encontramos ocasionalmente, Rogério, educado e cortesmente sempre nos permitiu um dedo de prosa, mas aquela prosa que se alguém não parar para ir-se embora, ficaria- se horas e horas. Na maioria das vezes, ele está sempre acompanhado de meninos simples mas que respiram poesia, embora digam não ser poetas.
 
Hoje, com um tempo de sobra, olhei a rede social de soslaio e encontrei o texto do artista se indagando a respeito dos tipos de leitores que o leriam. Achei- me no direito, sem pedir licença, de ser um leitor seu ou da sua obra. Já tinha visto no dia que adquiri o livro que a apresentação fora feita por Saulo Barreto que sempre tem o prazer de dividir e compartilhar ideias com o nobre filósofo e conforme o final da apresentação se acha um amigo menor.
 
Eu li a obra em um fôlego e simplesmente senti muito prazer ao fazer tão boa leitura. Não sou um leitor eficiente para leitura de textos deste calibre, até porque não sou poeta, mas cada poema deixava- me extasiado. Rogério Rocha não dispensa uma boa escolha lexical e de maneira muito disciplinada não segue regras impostas pelas regras dos doutores em poema e que muitas vezes entendem pouco de poesia, afirmação minha, como um homem simples no ato de pensar, porque poesia brota de dentro da gente como dizia outro grande poeta José Chagas.
 
Eu tenho a sensação que o poeta/filósofo, nunca finalizou um poema em um só dia, eu acho que sentava, e no silêncio de sua calma, ele matutava e matutava, para em versos brancos apresentar uma rica poesia que sempre traz um ritmo e métrica tão bem colocados que só depois do verso lido você percebe ser branco porque além de ricos em ritmos são muito marcados por uma métrica própria.
Não me peçam para explicar isso, adquiram a obra e tirem suas dúvidas, eu tenho plena consciência que o autor sabe sobre tudo e dialoga sobretudo sobre as coisas humanas e ele se preocupa como um poeta grande que não deixa os menores problemas serem passados em branco pois em brancos versos versa sobre tudo que lhe vem à mente.
 
Cada poema tem uma natureza singular, o dito está no que diz porque era preciso dizer e quando talvez não diz a gente encontra porque descobre que era aquilo que queria dizer. Todos os poemas são uma riqueza de poesia mesmo que venham interpolados com a crônica, mas percebi um grand poeta quando apresentou Nauro Machado um dos últimos poetas grandes que nasceu na nossa cidade que transpira poesia como as de Gonçalves Dias, Ferreira Gullar e tantos outros mais.
 
E aqui jamais eu digo que os demais não são poetas, são sim, mas que Nauro era daqueles poetas que fez da poesia a sua morada, às vezes quando se via com seu guarda- chuva e o seu silêncio, andando devagar na singela cidade, às vezes tão mal cuidada, o poeta construía tão primorosas poesias que cheias de magia nos encantavam como encantado fiquei ao ler todos os poemas de Pedra nos Olhos de Rogério Rocha. 
 
Nobres amigos leitores se desejam encantar-se ou se deixar encantar por tão rica, nobre e arrojada poesia leia a obra e tire suas próprias conclusões, pois podem crer que eu sou suspeita. 

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