Foto: David Weintraub - Internet
O ano de 1919
trouxe a Viena um início de inverno moderado, com temperaturas que muito
lembravam a do recém-findado outono.
Com os treze
graus centígrados daquela manhã nublada, o consultório do respeitado doutor era
um abrigo mais que bem-vindo.
Chegou na hora
marcada. Na rua pouco movimentada, ficou a observar os relógios na vitrine de
uma loja no prédio ao lado do seu destino. Por alguns poucos minutos titubeou,
não sabendo se entrava ou não. Da calçada divisou, ao final da avenida, a catedral gótica da cidade. Com uma expressão congelada no rosto, ouviu o primeiro toque
do sino, que badalava as três horas da tarde.
Respirou fundo,
tirou o chapéu, encarou a porta diante de si, bateu levemente e, logo a seguir,
pode entrar.
Sem perder
tempo, mas com grande discrição, apresentou-se à secretária na antessala e, após a confirmação do seu nome, dirigiu-se ao consultório. O gabinete do
médico neurologista, iniciador de pesquisas sobre novas técnicas para a compreensão da psique humana, era sóbrio e acolhedor, com uma decoração
clássica, alguns pequenos quadros na parede, tapetes persas, mobília de madeira
em tons amarronzados, com uma estante cheia de livros e prateleiras que
continham pequenas peças de arte africana, asiática e outros minúsculos elementos
cênicos.
O doutor
cumprimentou seu novo paciente com um breve aceno de cabeça e logo estendeu o
braço, apontando-lhe o divã.
Após tirar o
casaco e acomodá-lo num local apropriado, o jovem escritor deitou-se no local
indicado. Fora do seu campo de visão, o médico encontrava-se calmamente sentado
em sua poltrona, com um caderno de anotações ao lado de uma pequena mesa. Na
ocasião, orientou o paciente a falar com liberdade o que lhe viesse à mente, sem
se importar com narrativas lineares.
Após acender um
charuto, o analista perguntou-lhe:
- Sente-se
confortável?
- Aqui, deitado?
Sim, estou bem! – respondeu com um semblante tenso.
- E para falar?
Está pronto?
- Depende!
Sobre o que devo falar primeiro?
- O que quiser.
Sinta-se livre para começar. Quero que caminhes até sua verdade.
- Minha
verdade! Talvez ela esteja escondida dentro do meu medo. Do medo de mim, da
vida que tenho levado, do meu futuro e... do meu pai.
Enquanto o
jovem falava sobre suas angústias e desejos, o terapeuta via surgir, em meio às verbalizações carregadas de tensão, sinais de um conflito existente com a figura paterna.
Ouvia os
relatos do paciente sem intervir. Vez por outra, contudo, pedia um breve
esclarecimento sobre algum ponto ou fazia questionamentos bem sintéticos, a fim
de ajudá-lo a lidar com os incômodos. Afinal, havia um peso na narrativa
daquele homem. Era como um fardo gigante, um estado de permanente sofrimento
que decorria de traços de sua história familiar e que seu analista buscava atentamente identificar
em algum ato falho ou lapso da linguagem.
Mas, enfim, eis
que a palavra pai se revelara, abraçada a um indisfarçável desconforto, captado
ao ver-se o semblante e ouvir-se a voz do analisando.
- Acabei de
escrever uma carta para ele. Sim! Uma longa carta. Mas, sinceramente, não sei
se a lerá. Na verdade, não sei sequer se chegará às mãos dele. Aquelas mãos
que, se pudessem, com certeza me despedaçariam. – disse, com a voz trêmula.
Com o charuto
entre os dedos indicador e médio da mão esquerda, o condutor da sessão ouvia o
que era dito, fazia anotações (a fim de ajudar no processo de memorização do
caso) e breves comentários. Enquanto isso, o paciente começava, num crescendo do
tom da voz, a externar fatos que o impediam de ser ele mesmo e que estavam
ligados ao seu relacionamento com o velho genitor.
- Ele parece um
Deus. Lá em casa é como o vejo. Uma espécie de carrasco que vive para me
perseguir, para tentar me intimidar, para me pressionar, dia e noite. –
ressaltou o paciente.
- Há muitos
pormenores que não consigo contar... nesse medo que eu carrego do meu pai. Mas
odeio quando ele me desqualifica e condena o meu futuro. E faz isso na frente
de todos. Sim, eis o meu fabuloso pai!
- De tanto
ouvir seus sermões públicos, acredito piamente em todos os argumentos que usa.
Por causa dele, só tenho a verdadeira sensação de mim mesmo quando estou
infeliz.
- Para piorar,
agora quer me impedir de casar com a mulher que me ama de verdade. Quer
estragar minha única fortaleza: o amor. – disse, com a voz levemente embargada.
- Somos de
carne e osso, mas a vida nos trata, por vezes, como se fossemos de ferro. –
comentou calmamente o analista.
Depois de um
breve silêncio, o jovem retomou sua fala:
- O muro que
meu pai ergueu entre mim e Julie é quase intransponível. Mesmo assim, tenho
esperança. Sei que existe e é pequena, mas não posso abrir mão das
possibilidades. Não tenho esse direito!
- Ainda assim,
o que vejo hoje? O que tenho visto? Apenas a minha própria sombra e o medo que
sinto, como se fosse a mão impiedosa do meu pai em minha garganta. – falou,
arregalando os olhos que miravam o teto.
- O peso de ser
filho é terrível, no meu caso. Meu pai é muito grande para mim. Sua presença é
muito forte. Sinto que me esmaga com sua indestrutível superioridade. Com sua
vontade de me ver um homem forte e corajoso. Coisas que não sou.
- Ele me cobra
todos os dias. Todos os dias. Pergunta onde deixei minhas responsabilidades
para com os negócios. Diz que sou um fracasso. Que não valorizo a liberdade que
ele me proporcionou. Mas... liberdade? Que liberdade?
- A que teve ao
me deixar fora do quarto, com frio e sede, quando eu era apenas um menino chato
e chorão, gritando no meio de uma noite chuvosa? A que me ajudou a ser esse
nada incontestável, que ressalva sempre que toca no assunto com os parentes à
mesa do jantar nos domingos? – questionou o analisado, esbravejando no divã.
- Muitas vezes
sonho com ele a me perseguir, doutor. Sonho que estou saindo de uma floresta muito
densa, após correr por metros e metros. No final, respiro fundo ao ouvir o
clique de um revólver. Depois fecho os olhos e acordo quase sem ar. – diz o jovem escritor, encenando o seu susto.
- Daí para a
frente não há mais retorno, ponho na mesa a culpa por todos os meus erros.
Estou imerso em silêncio. Até sinto o meu medo dissolver-se dentro dele. Ah, você
não sabe a energia que reside no silêncio! – murmura, com um leve sorriso na
face.
- Deves
perceber que de erro em erro a verdade vai-se revelando. – comentou o médico,
enquanto fazia anotações em seu caderno.
- A verdade
para mim, doutor, é sempre um abismo. Se não me libertar, irá me destruir.
Assim como meu pai tem tentado destruir a minha felicidade.
O analista enfim
olhou para o relógio de bolso e informou ao novo paciente que a sessão estava
encerrada. O jovem levantou-se um tanto lentamente, como se quisesse permanecer
deitado mais um instante. Já de pé, o médico achegou-se frente a ele e, antes
que se retirasse, lhe disse:
- A felicidade,
caro Franz, é um problema individual. Nesse campo, nenhum conselho é lá muito válido.
Afinal, cada um deve procurar, por seus próprios meios, tornar-se feliz. No
mais, em última instância, precisamos amar. Amar para não adoecer.
O escritor, por alguns segundos e em silêncio, olhou fixamente no fundo dos olhos
do médico. Depois estendeu-lhe a mão, apertou-a com firmeza, despediu-se,
vestiu o casaco, pôs o chapéu na cabeça e deixou o consultório com a mesma
discrição com que entrara. Logo após sua saída, aparece a secretária para
avisar que aquele tinha sido o último atendimento do dia.
- Dr. Freud, o
paciente Franz Kafka terá uma nova sessão na quinta-feira da próxima semana,
nesse mesmo horário. Achei a expressão daquele jovem meio perdida, o semblante
pesado. O senhor acha que ele vai retornar?
- Deixemos isso
para uma outra hora, Anna! A resposta à sua pergunta é tão incerta quanto saber
se amanhã um de nós dois irá acordar resfriado. A única certeza que tenho agora,
e posso lhe garantir, é que estou me dirigindo ao café. Queres me acompanhar?