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segunda-feira, 11 de setembro de 2023

AS VERDADEIRAS LENDAS

 

Por Rogerio Rocha

 

No salão das refeições, após os demais terem-se retirado, dois homens maduros, sentados lado a lado, raspavam seus pratos, mastigando lentamente o resto dos caroços de feijão servidos com o arroz de carreteiro.

O mais jovem deles olhou para o do lado, cutucou a costela do que estava à sua direita com o cotovelo e puxou conversa:

“Nero, meu querido! O que acha de bolarmos uma forma de dominar o mundo? Afinal, creio que você saiba do meu desejo insaciável por quebrar convenções e impor minha vontade, não é? ”

“Calígula, olha que essa é uma ideia que me atrai! Dominar o mundo. Será algo tão chocante quanto nomear um cavalo como cônsul. ”

“É verdade! Para quebrar com a mesmice, nada melhor do que causar impacto. Causar. Lacrar, como gosta de dizer essa gente de hoje. Que tal colocarmos um Youtuber no posto de ministro da Educação ou criarmos uma religião baseada na política? ”

“Sensacional, meu caro Calígula! E para ganhar as mentes do povo lançaremos uma campanha publicitária que reverencie as nossas "divindades". Podemos fazer várias lives e usar os influenciadores digitais para performances bizarras em honra e glória de nossas imagens. ”

“Genial, Nero! Genial! Iremos cunhar também moedas virtuais com o nosso selo, disseminá-las por toda a rede mundial de computadores, dar-lhes valores altíssimos e uma cotação que nunca cairá! ”

“Popularizaremos programas de televisão com sexo, sadismo, inversão de valores e muita baixaria. Nele os políticos corruptos usarão tornozeleiras eletrônicas, roupas esfarrapadas e deslizarão em enormes canaletas, caindo, ao final da descida, num imenso chiqueiro, cheio de lama e lotado de porcos famintos! ”

“Ótima ideia. Mas é claro que, mesmo agindo assim, não admitiremos críticas” – disse Calígula com a face transtornada. “Nossos opositores serão sumariamente cancelados em todas as mídias e redes sociais! Depois serão expulsos do nosso império. E para sacramentar a destruição de suas reputações, lançaremos propagandas sistemáticas de difamação e criaremos factoides para confundir a opinião pública. ” – Afirmou, gesticulando com firmeza.

Nos olhos arregalados dos dois, bem como na entonação das vozes num crescendo, ficava evidente a conexão entre as mentes dos conspiradores. Ambos pareciam saber que suas histórias, bem como a razão de estarem ali, tinham muitos elementos em comum.

“Você já percebeu que somos homens diferenciados! Na verdade, somos únicos. Temos visão, pensamos grande e estamos sempre à frente de tudo. Será que os idiotas desse tempo ainda não perceberam isso? ”

“Talvez não. Acho muito difícil, para falar a verdade. Por isso não podemos nos acomodar! Vamos dominar o mundo o quanto antes! Só assim teremos de volta a consideração e o reconhecimento que merecemos. ” – Falou enchendo o peito e empinando o nariz.

“Ah! Lembrei agora! Você sempre foi dado a extravagâncias e ligado aos escândalos. Anotarei em meu diário para não esquecer que isso não deve faltar ao império. Mas, voltando ao que interessa: como seduzir os jovens para aceitarem nossas ideias? ”

“Simples. Transformaremos as aulas em encenações dramáticas, com telas digitais ultra coloridas, vídeos e jogos que disseminarão nossa filosofia. Aprenderão tudo ouvindo podcasts, assistindo vídeos motivacionais e sendo sugestionados por meio de mensagens subliminares. Pagaremos os melhores coaches para fazer esse trabalhinho sujo. Mas fique tranquilo! As pessoas sequer vão notar. ” – Disse, com ar de superioridade, o futuro conquistador.

“Fantástica ideia, Calígula! Criaremos um programa: o "Meu vídeo, minhas selfies”. Assim, quem sabe, os súditos mais pobres não venham a se contentar mais facilmente ao ser dominados. Aos mais ricos, mandaremos distribuir vinho e queijo diariamente. Não terão do que se queixar. ”

“Perfeito, Nero! No campo da política, resolveremos conflitos no Senado com duelos de MMA. O mais forte vencerá e terá a razão! Com isso, poderemos matar as saudades das corridas de biga e dos combates entre os gladiadores. Que tempos maravilhosos foram aqueles! ” – Exclamou saudoso o pretendente ao trono.

“Sem dúvida, Calígula! E quando estivermos entediados, ao invés de debatermos as soluções para as crises, contrataremos cantores populares para apresentar seus shows gratuitamente em cadeia nacional. ”

“Eis o governo que o mundo precisa: um mix de força, diversão e egolatria! ”

O toque estridente da sirene enfim soou, interrompendo a mirabolante conversação. Afinal, era hora do toque de recolher. Momento em que os agentes judiciários passavam para conduzir às celas algum interno que por ali estivesse.

Era o fim de mais um dia no manicômio judiciário do estado. 

Após entreolharem-se, com um nítido ar de decepção, os parceiros de casa encaminharam-se para o término do diálogo, tendo um deles questionado:

“Vejo que temos mesmo muito em comum. Mas, fico aqui pensando, será que o mundo um dia vai entender a grandiosidade de tudo aquilo que já pensamos e fizemos? Ou continuarão a cometer o erro de nos tratar como loucos? ”

“Olha, Nero! ” – Disse o interno, antes de ser conduzido à força para a cela onde dormia – “Para mim isso não importa”. “O que interessa é que nunca deixaremos de viver no imaginário das pessoas. Nosso destino é mesmo o de nos tornarmos aquilo que nascemos para ser: verdadeiras lendas! ”

terça-feira, 2 de novembro de 2021

PERDIDOS NA NOITE (um conto de Rogério Rocha)

Foto tirada no(a) Rua Grande por Ernanig em 10/11/2013  

 Foto: Internet - Foursquare

 

 

Zé Lipaté e Maninho voltavam do Reviver em altas horas. Madrugada de bêbados no Centro velho da cidade. Hippies, prostitutas, gays e turistas haviam ficado para trás. Passavam já do Largo do Carmo e iam a passos rápidos rumo a suas casas, quando resolveram atravessar a Rua Grande. Queriam chegar à Rua do Passeio. Depois desceriam para as bandas da Madre Deus, onde moravam.

No meio da maior rua do comércio popular de São Luís, deserta àquela altura, conversavam sobre os resquícios da noitada, o som na galeria em que estavam, umas garotas que encontraram por lá, quando viram sair do canto da rua Godofredo Viana um velho muito feio. Um traste fedorento que assustou os dois amigos ao pigarrear e cantar uma música das antigas, ao passo em que seguia, um tanto manco, o rumo da calçada da dupla, chegando perto e perguntando:

- Quê qui cêis fazem três horas da madrugada no meio da rua, ças crianças? Cês são muito pepêto pra dar banda em minha área mora dessas!

- Porréessa, rapá! Pra lá, mala velha! – disse Lipaté, espantado.

- Ignora, brodi! Ignora! – retocou Maninho.

- Mas gente, cês passaqui assim de boa, sem me prestá menage!?

- Ménage???Ménage é o carai! Tira logo pra fora fedô! – esbravejou Maninho.

Os dois seguiam seus rumos em passos ainda mais rápidos, no sentido da Rua do Passeio, que, infelizmente, parecia que nunca chegava.

Lá pelo meio da Rua Grande eram ainda seguidos pelo habitante da noite, que ora ia pra um lado, ora pra outro, chafurdando com os garotos, rindo e tombando sem perder o passo do acompanhamento.

Maninho então pensava de si para si enquanto olhava de esguelha o amigo de jornadas, tentando, também às pressas, encontrar um modo de se livrar daquele traste.

- Peste, capa o gato que é! Tá me enchendo já! Se tu não fô imbora logo eu juro que te jogo dentro da fogueira santa de Israel. Copiou? – falou sério Lipaté.

- Ouviu aí, né?! – reforçou Maninho.

- Vou secês dé um quarqué cois pra mim. Um mimo quarqué já vale. Senão vô continuá companha cês atééééé...

Os amigos bêbados entreolharam-se ao lembrarem da metade de um litro de catuaba que havia dentro da mochila de Maninho. Rápido a retiraram de dentro e a ofereceram para o enjoado.

- Toma, pô! Taí, ó! Taí! É da boa, viu! Pode bebê quinda tem metade da garrafa.

Recebendo a garrafa nas mãos e soltando um grito de contentamento, pulou de euforia, gargalhou e chamou umas perdidas que estavam ali por perto e, do nada, saíram, quase ao mesmo tempo, de ruas transversais por onde haviam acabado de passar. Naquela hora, surgiram duas desgrenhas da mesma qualidade do amargoso, juntando-se aos três, logo após.

Ao tempo em que aquelas criaturas começaram a disputar a pobre garrafa de catuaba, Maninho e Lipaté trataram de correr. Saíram a todo gás, com medo do que poderia vir depois. Deixaram para trás os funestos habitantes do nada no meio do silêncio da Rua Grande.

Depois de chegarem nas imediações do Hospital Socorrão I, cansados, mas sorridentes, os jovens trocavam gozações.

- Porra, Mano! Agora temo história pacontá, ó! Tá doido, doido!

- Rapá, ças coisas só acontece com a gente mesmo! Vou te dizê!

- Não é ??!!! Mas daqui pra ali agora é na fé, bicho. Depois dessa o caminho tá limpo e é todo nosso.

- Tá é certo, ó! Depois duma porra dessa, o quê de ruim pode acontecer, né!?

Instantes depois de virem ao mundo o som dessas palavras, viram surgir do rumo do Caminho da boiada um homem com um charuto na boca, barba branca e chapéu na cabeça, que resolveu ficar encostado no canto do edifício Malvina Aboud. Parou e permaneceu lá – justamente onde passariam – olhando em suas direções. Enquanto isso, as luzes dos postes das redondezas começaram a piscar. 

Pelo jeito, a noite ainda lhes traria algumas emoções.

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

ASSINADO, ALFREDO [conto de Rogério Rocha]


Quanto mais conheço os homens, mais me aproximo das mulheres - O outro lado  da notícia

por Rogério Rocha

 

Nina escamoteava com êxito sua homossexualidade, vivendo 10 anos em relação conjugal com Alfredo. Contudo, amava mesmo era Selma.

Amava e muito. Era com ela que suas excitações se concretizavam. Era sempre a ela que recorria, em saídas anônimas, quando dos encontros movidos a álcool e beijos de paixão. Seu universo de mentiras mixava dramas e sonhos, realidade e esperanças. Um dia, entretanto, imaginava poder ainda desfraldar de vez aos olhos da sociedade a verdade que escondera.

Afinal, embora enfeixada por ciúmes, a relação de Nina com o esposo lhe era útil. Um verdadeiro presente para a ex-menina pobre que encontrara num homem de condições econômicas bastante favoráveis o porto seguro para as antigas carências materiais, para o desejo de felicidade, conforto e ascensão social. Algo que enfim tivera nessa uma década.

Mas como na vida tudo está atado à inexorável ordem do que lhe é finito, um dia descobre-se ali adiante uma última estrada, um último gole, o capítulo fatal daquele enredo. Com Nina não seria de outra forma.

Após anos de desconfianças, o respeitado cirurgião plástico, professor universitário, 15 anos mais velho que a esposa, teve acesso aos indícios e depois às provas da recorrente infidelidade que sofrera. Caíra enfim o pano das aparências. Em seu lugar viu-se surgir um espetáculo de fotos, imagens, e-mails, vídeos, áudios e ligações telefônicas conseguidas por um investigador particular que Alfredo contratara.

O efeito daquele vendaval motivou a ira, depois a decepção, a amargura, a dor e, enfim, o pior de todos os desejos: o de vingança. Mas quando não se tem coragem para desvirtuar uma biografia com a cessação do problema por meio do atingimento do seu causador, busca-se debelar a causa.

O marido de Nina fez de tudo. Inclusive clonar o número do telefone celular da esposa para corresponder-se com a amante dela. E foi por meio de mensagens de texto e da posse da informação sobre o endereço de Selma que pôde, então, encerrar um drama dando início a outros.

Domingo, 10 horas da manhã, prédio onde mora a amante. Nina chega sorridente, transparece em sua face aquela satisfação que temos ao rever alguém especial. Passa pela portaria, chama o elevador, sobe ao décimo andar, caminha até a porta, insere e vira a chave da porta, abre-a e entra.

O apartamento está arrumado e com as janelas abertas. Joga sua bolsa sobre o sofá da sala de estar. As cortinas brancas balançam suaves ao vento. A tv da sala, ligada num canal de filmes antigos, passa Casablanca.

Nina chama pelo nome do seu amor. Uma, duas, três vezes. O silêncio do ambiente contrasta com o seu sorriso. A intimidade a leva até o fim do corredor e o acesso ao quarto principal é tranquilo. Selma está lá, sobre a cama, deitada na posição de costume.

- Oi, amor! Dormindo até essa hora? – perguntou Nina.

Ao dar conta da cena tétrica, o sorriso congelou-se no rosto, esmaeceu e apagou-se numa fração de segundos. Apagado também estava o olhar de Selma. Perdido num ponto qualquer do teto. No pescoço abria-se um rasgo, de um lado a outro, abaixo do maxilar. No travesseiro o sangue não tão recente. Ao lado do corpo um bilhete com uma letra que lhe era familiar, dizendo: “Agora conheço teu segredo. Não caberá mais em teu coração, nem dentro das tuas mentiras. Eu te odeio! Assinado, Alfredo.”

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