terça-feira, 24 de agosto de 2021

NEM MORTA (Um conto de Rogério Rocha)

 

    
    
Mulher deitada – William Côgo

Imagem: Internet - William Côgo

 

O sinal de aviso tocou novamente. É a décima chamada de hoje.

Júlio pôs-se de pé, quase como num susto. Levantou a cabeça, respirou fundo, olhou para o alto. Além de um teto branco, nada havia para se ver.

A noite começara há pouco e mais corpos haviam chegado. Dessa vez dois indivíduos de trinta e poucos anos, mortos num acidente de carro. Enfim, a primeira ocorrência cujos óbitos não decorriam da Covid-19.

Seis dias na semana, ao longo de quinze anos, Júlio Viana tem estado em atividade. Trabalhou em muitos lugares, mas, depois, entrou num ciclo de arranjar empregos que ninguém queria. Para sobreviver, foi agente funerário, esteve um tempo no serviço de verificação de óbitos e depois no preparo para sepultamentos. Uma carreira nada convencional, sem visibilidade, reconhecimento ou coisa do gênero.

O fato é que, ultimamente, estava cansado de tudo. Sensação que só aumentava, na medida em que lembrava de todas as chances que desperdiçou, o tempo dispendido com coisas fúteis e que nada adicionaram à sua vida, a acomodação e o marasmo a que se acostumou.

Odiava a profissão quando nela iniciou e, ainda hoje, tem esse mesmo sentimento, apenas com a adição de uma admirável dose de resiliência (o que contrasta abertamente com sua ânsia de mudança). Para além disso há o medo: o medo, ingrediente que se misturou ao cotidiano conturbado que a peste impôs.

O cansaço aumentava e a paciência se extinguia. As cobranças, a sobrecarga, o rumo incerto de sua vida, a solidão pela qual optara. O calafrio que ia e vinha, sua nuca que doía, os olhos vermelhos, as dores nas costas...

Todos os dias, agora, são quase invariavelmente turbulentos. Onde antes tudo era silêncio, hoje é silêncio, dor, desolação. Antes o nó nas tripas, agora o nó na garganta. Mortes a granel, choro, ranger de dentes e uma moléstia de origem obscura que acabou por transformar completamente o turno da noite, que se tornou um pandemônio.

Ao entrar na sala de necropsia, a máscara o sufocava. Ele a ajeita em seu rosto suado. Ela o oprime. Dificulta a sua respiração. Seus pensamentos, em devaneio, o desnorteiam. Imagens, rostos, palidez, rigores, passagens, rasgos nas peles, na alma, cavidades escavadas, projéteis... o tempo a escorrer pelas retinas, as narinas que nada sentem, memórias que piscam e se apagam, cansaço, cansaço...

Faz um pouco de calor e, talvez por isso, odeie ter de usar tantos equipamentos de proteção. As camadas de vestimenta que o recobriam – o macacão, a touca, a viseira – deixavam a impressão de que estava a salvo. Que dentro daquele pequeno inferno ia tudo bem. Lá fora estava pior, pode alguém pensar.

Sobre o grande balcão metálico do centro da sala estavam os cadáveres de uma mulher e um homem. Sobre eles, a luz fria de uma luminária clean.

Aproximou-se dos dois para começar seu trabalho e retirou o manto que os encobria. Diante de si uma mulher loira, de pele branca e bela compleição física, com os olhos perdidos no nada. Além da rigidez de seu silêncio, no sono eterno, a expressão de pavor na contração dos músculos da face, que ficou como amarga lembrança de uns poucos segundos de reação antes do choque.

Tinha escoriações no tórax e sangue pelo rosto, que lhe caíra justamente em decorrência do traumatismo que sofrera no crânio.

Na medida em que Júlio o retirava da face da morta com um pano umedecido em álcool, um novo quadro se revelava. Aos poucos, sua memória passou a buscar um rosto como aquele, de alguém que conhecera um dia. A familiaridade dos traços da face, ainda que mais maduros, e alguns detalhes como a estatura, os lábios, a curvatura do nariz, as curvas do quadril e o formato dos seios, levaram sua imaginação aos tempos de estudante.

À medida em que se esforçava em lembrar, ficava mais forte a certeza de que a pessoa ali deitada fora uma paixão platônica chamada Lúcia. Colega de classe por quem nutria um sentimento tão idealizado que somente tivera, no tempo em que frequentaram as mesmas aulas na faculdade, apenas duas ou três chances de conversar com ela.

Impactado pela situação, o preparador sentiu uma tontura súbita; suas pernas fraquejaram, seu corpo tremeu. Com os olhos cheios de lágrimas e o coração disparado, afastou-se do cadáver por uns instantes, dando as costas àquela cena. Apesar da experiência que o trabalho lhe dera, e a frieza necessária para tratar com pessoas mortas, não esperava defrontar-se com igual situação.

Ignorando completamente o homem que jazia ao lado dela, para quem sequer olhara, Júlio voltou-se novamente para a mesa, pôs as mãos sobre o corpo de Lúcia e o percorreu como que num gesto de oleiro, moldando lentamente suas curvas, tateando suas cavidades, tocando as pernas, os braços, os seios com que tanto sonhara... Em seguida, encostou a cabeça sobre eles e chorou novamente.

Depois, então, voltou-se tristemente para ela, a mirar aqueles olhos já sem brilho, num rosto tão bonito. Tirando as luvas, tocou sua face pela primeira e última vez. Por fim, a beijou lentamente, tocando com ternura seus lábios naqueles frios lábios, e lembrou da vez que lhe pedira um beijo, depois de dançarem uma música na festa de formatura do curso, tendo ouvido daquela boca, ali semiaberta, a seguinte frase: “Eu, te beijar? Nem morta, cara! Nem morta!”

Como são tristes as ironias do destino.

Júlio então cobriu o cadáver de Lúcia, desligou a luz e, antes de sair, deixou sobre a mesa do diretor sua carta de demissão. Decidira abandonar o trabalho. Ao ir embora, desconsolado, levou consigo a amargura de um péssimo dia e o início de uma tosse seca que, com o passar do tempo, tenderia a piorar.

 

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Documentário - Cassiano Ricardo: Poesia e História

ASSINADO, ALFREDO [conto de Rogério Rocha]


Quanto mais conheço os homens, mais me aproximo das mulheres - O outro lado  da notícia

por Rogério Rocha

 

Nina escamoteava com êxito sua homossexualidade, vivendo 10 anos em relação conjugal com Alfredo. Contudo, amava mesmo era Selma.

Amava e muito. Era com ela que suas excitações se concretizavam. Era sempre a ela que recorria, em saídas anônimas, quando dos encontros movidos a álcool e beijos de paixão. Seu universo de mentiras mixava dramas e sonhos, realidade e esperanças. Um dia, entretanto, imaginava poder ainda desfraldar de vez aos olhos da sociedade a verdade que escondera.

Afinal, embora enfeixada por ciúmes, a relação de Nina com o esposo lhe era útil. Um verdadeiro presente para a ex-menina pobre que encontrara num homem de condições econômicas bastante favoráveis o porto seguro para as antigas carências materiais, para o desejo de felicidade, conforto e ascensão social. Algo que enfim tivera nessa uma década.

Mas como na vida tudo está atado à inexorável ordem do que lhe é finito, um dia descobre-se ali adiante uma última estrada, um último gole, o capítulo fatal daquele enredo. Com Nina não seria de outra forma.

Após anos de desconfianças, o respeitado cirurgião plástico, professor universitário, 15 anos mais velho que a esposa, teve acesso aos indícios e depois às provas da recorrente infidelidade que sofrera. Caíra enfim o pano das aparências. Em seu lugar viu-se surgir um espetáculo de fotos, imagens, e-mails, vídeos, áudios e ligações telefônicas conseguidas por um investigador particular que Alfredo contratara.

O efeito daquele vendaval motivou a ira, depois a decepção, a amargura, a dor e, enfim, o pior de todos os desejos: o de vingança. Mas quando não se tem coragem para desvirtuar uma biografia com a cessação do problema por meio do atingimento do seu causador, busca-se debelar a causa.

O marido de Nina fez de tudo. Inclusive clonar o número do telefone celular da esposa para corresponder-se com a amante dela. E foi por meio de mensagens de texto e da posse da informação sobre o endereço de Selma que pôde, então, encerrar um drama dando início a outros.

Domingo, 10 horas da manhã, prédio onde mora a amante. Nina chega sorridente, transparece em sua face aquela satisfação que temos ao rever alguém especial. Passa pela portaria, chama o elevador, sobe ao décimo andar, caminha até a porta, insere e vira a chave da porta, abre-a e entra.

O apartamento está arrumado e com as janelas abertas. Joga sua bolsa sobre o sofá da sala de estar. As cortinas brancas balançam suaves ao vento. A tv da sala, ligada num canal de filmes antigos, passa Casablanca.

Nina chama pelo nome do seu amor. Uma, duas, três vezes. O silêncio do ambiente contrasta com o seu sorriso. A intimidade a leva até o fim do corredor e o acesso ao quarto principal é tranquilo. Selma está lá, sobre a cama, deitada na posição de costume.

- Oi, amor! Dormindo até essa hora? – perguntou Nina.

Ao dar conta da cena tétrica, o sorriso congelou-se no rosto, esmaeceu e apagou-se numa fração de segundos. Apagado também estava o olhar de Selma. Perdido num ponto qualquer do teto. No pescoço abria-se um rasgo, de um lado a outro, abaixo do maxilar. No travesseiro o sangue não tão recente. Ao lado do corpo um bilhete com uma letra que lhe era familiar, dizendo: “Agora conheço teu segredo. Não caberá mais em teu coração, nem dentro das tuas mentiras. Eu te odeio! Assinado, Alfredo.”

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