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domingo, 20 de outubro de 2024

Prefácio de “Ornitorrinco”, de Theotonio Fonseca de Sousa

 

             Rogério Rocha [escritor e filósofo]

É com grande satisfação que apresento este prefácio sobre o livro “Ornitorrinco”, assinado pelo talentoso autor Theotonio Fonseca de Sousa. Como um estudioso da literatura, sinto-me no dever de destacar logo de saída: trata-se de obra singular e multidimensional.

Após uma breve leitura, percebe-se, sem muito esforço, que “Ornitorrinco” desafia qualquer categorização simplista. Sobretudo porque Theotonio Fonseca estrutura sua poesia através de uma escrita que se emaranha entre o barroco/neorrococó e o contemporâneo, o clássico e o moderno.

Fico com a impressão de que ele intenciona reorganizar o universo pela via particular da linguagem. Ou como diz em “Pacto fáustico”: “anseio pela silhueta do campo unificado[...]que traduza a plenitude da mente de Deus”.

Seus versos de muitas faces estão carregados de imagens impressionistas – para não dizer impressionantes – que oscilam entre o passado e o presente. Com eles o autor produz uma densa nuvem de sentidos na miscigenação de referências não só a outros poetas, mas às mitologias greco-romana, judaico-cristã, africana e dos nossos povos originários.

Essa fusão de influências termina por criar uma linguagem rica em simbolismos e texturas. Mediante utilização de temas e abordagens pouco comuns, Fonseca tinge de novas cores antigos e conhecidos pilares estéticos da poesia ocidental.

Antes de dar continuidade ao prefácio, necessito, entretanto, voltar ao título do novo livro. Afinal, é importante esclarecer o que seja um ornitorrinco.

O ornitorrinco é um mamífero encontrado na Austrália e Tasmânia. Da família da não menos esquisita equidna, esse animal interessante, conhecido por sua aparência estranha, nos remete às aberrações encontradas na natureza.

É um mamífero semiaquático que combina características de diferentes animais. Tem o bico de um pato, o corpo de uma lontra e a cauda semelhante à de um castor. Esse animal peculiar é um dos seres mais incomuns do mundo.

Nesse ponto, título e produção do livro convergem para sinalizar ao público a origem pouco convencional do estilo do autor, cuja poesia busca respaldo em imagens que justificariam denominá-la de uma poética ornitorrinca. Poética capaz de provocar alguns abalos theotônicos, diria o saudoso Carvalho Júnior.

O poeta não teme explorar os recantos mais profundos da simbólica universal. Ao conduzir-nos por um labirinto de expressões, ideias-força e terminologias pouco ortodoxas, encontramos ecos do esoterismo, ocultismo, magia e misticismo entrelaçados com passagens bíblicas e fragmentos do ideário do folclore brasileiro.

As religiões de matriz africana e a filosofia também deixam suas marcas, encontrando espaço nos poemas aqui apresentados. Convivem, assim, numa equação imprevisível, mas com efeitos bastante proveitosos.

A poética de Theotonio resulta em uma nova cosmogonia. Seus versos orbitam corpos celestes por vezes não identificados. Eles criam um catálogo de movimentos curiosos e desafiadores em um universo próprio. Características distintivas também presentes em seus livros anteriores.

Cada poema se configura, portanto, como uma constelação singular, e "Ornitorrinco" representa a galáxia que os acolhe. 

 



 
Este livro propõe ao leitor um desafio instigante: a exploração dessas dimensões e a descoberta dos enigmas embutidos na coreografia das palavras, conduzidas com maestria e conhecimento.

“Ornitorrinco” é, deste modo, a coroação da caminhada poética de Theotonio Fonseca. Com este livro, o poeta de Itapecuru-Mirim dá por concluída a sua missão dentro do gênero ao qual se dedicou apaixonadamente.

Demonstrando coerência com seus princípios, finaliza sua jornada com uma obra digna de representar a melhor síntese do que escreveu até hoje. Essa obra intrigante nos envolve com sua beleza, guiando-nos pelos mistérios de um universo peculiar ainda por ser explorado.

domingo, 22 de janeiro de 2023

POESIA E FILOSOFIA: EM BUSCA DO PENSAR QUE POETIZA

 Escrita Criativa: 4 dicas para ser uma expert - Madame Conteúdo

Por Rogério Rocha

 

Proponho-me a discorrer sobre a suposta relação entre importantes áreas da cultura. Relação fundada há, pelo menos, dois mil e quinhentos anos e que acabou por estabelecer um grau de parentesco entre dois significativos campos do saber, quais sejam: a poesia e a filosofia.

Meu principal intento será o de indicar as razões da viabilidade em se falar de uma proximidade fundacional entre o saber crítico-reflexivo da filosofia e a arte da poesia.

É preciso compreender, entretanto, que estou a tratar de campos de pesquisa autônomos, com estatutos de legitimação epistemológica distintos e que congregam objetos, métodos e finalidades específicas.

De um lado a poesia, forma de linguagem que tem por característica fundante o predomínio de um texto lírico, com objetivo de exprimir percepções do sujeito diante do mundo, quer pela via da expressão crítica, quer pela meramente estética. Para tanto, faz-se necessária a existência de uma relação triádica composta pela poesia (como arte), pelo poema (como produto final e objeto dessa arte) e pelo poeta (criador e artífice).

A filosofia, por seu lado, consiste no imprescindível campo de investigações que penetra as raízes dos problemas fulcrais da vida com a ferramenta do método e as luzes do logos.

Voltando ao princípio, pode-se constatar que os filósofos pré-socráticos Xenófanes, Heráclito, Parmênides e Empédocles, por exemplo, escreveram suas reflexões utilizando um estilo de escrita similar ao encontrado na prática da versificação. Mas por quê? A resposta é relativamente simples. Porque a poesia, enquanto gênero literário, surgiu, no Ocidente, bem antes da prosa e da própria filosofia, ainda no tempo dos mitos, nas narrativas gregas dos tempos heroicos.

Além do mais, havia, por assim dizer, uma unidade originária, uma estreita aproximação entre a linguagem escrita e os vários discursos ligados à oralidade do período ágrafo. Sendo assim, no plano da história, pôde-se observar a assimilação e uns pelos outros. Foi o caso do nascente discurso filosófico, absorvido pelo fazer poético, nomeadamente sob a forma do poema.

Mesmo com a famosa condenação platônica dos poetas e da poesia em seu clássico “A República”, e com a posição de teóricos que defendem haver uma divergência histórica entre os dois saberes, percebe-se a ocorrência de um vínculo entre eles. Vínculo que se apresenta desde suas gêneses e continua a influenciar as manifestações do intelecto.

Em decorrência do acima exposto, é razoável compreender o fato de as primeiras reflexões filosóficas terem sido realizadas por meio de enunciados poéticos, na mesma perspectiva do que, no plano de expressão da linguagem, era usual durante aquele período da história.

Foi como se a filosofia tivesse aderido à forma poemática para dar corpo às proposições e questionamentos lógicos.

Desse modo, trago aqui, a título de ilustração, dois exemplos extraídos aos fragmentos de Heráclito que possuem ligação com o que foi acima afirmado:

SEXTO EMPÍRICO, Contra os Matemáticos, VII,132.

“Deste logos sendo sempre os homens se tornam descompassados quer antes de ouvir, quer tão logo tenham ouvido; aos outros homens escapa quanto fazem despertos, tal como esquecem quanto fazem dormindo.”

ARIO DÍDIMO, em EUSÉBIO, Preparação Evangélica, XV, 20.

“Aos que entram nos mesmos rios outras águas afluem; almas exalam do úmido.”

49a. HERÁCLITO, Alegorias, 24.

“Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos.”

Ora, a poesia em seu estrito senso, inserida num corpo-poema, constitui-se como um discurso-objeto, isto é, um discurso de caráter não proposicional, metafórico, contudo reiterável. Caracteriza-se por sua linguagem de abertura ao diverso e ao transcendente, ainda que utilizada para expressar a realidade. Logo, é, por natureza, uma linguagem no campo de um discurso não-convencional, chegando a lidar, por isso, também com o que vige na esfera do imponderável.

Enquanto isso, a filosofia, tipo de discurso convencional apoiado no método e na lógica, ocupa-se em analisar a realidade através de argumentos construídos com base em fundamentação racional.

Mesmo assim, em sua origem, na antiguidade grega, ainda que parcialmente, o pensamento filosófico ‘derivou’ da poesia como um de seus modos externalizáveis.

Explico a razão do uso do entre aspas quando do emprego da palavra derivou, ao correlacionar os referidos campos de conhecimento. Ambos emergiram do páthos, ou seja, do espanto, condição que precede a tudo que nos toca e nos permite um inevitável estado de admiração.

Poesia e Filosofia, portanto, tiveram por arkhé (princípio) um “páthos” (espanto). Foram tomadas pela vertigem provocada ao defrontarem-se com as “aporias”, com a incerteza presente no íntimo de cada recorte da realidade, na dúvida radical que as empurrou na direção de seus intentos formadores.

Daí o motivo pelo qual Alberto Pucheu as denominou de “espantografias”, isto é, escritas sobre espantos.

Contudo, enquanto a filosofia buscou interpretar a realidade imanente e transcendente do mundo, em prol do saneamento das dúvidas humanas mais angustiantes, a poesia optou por tentar expressar o impossível de modo crível.

Nela, diferentemente da primeira, tudo pode ser e acontecer, vez que opera no âmbito de uma feitura. Ainda assim, responde a certos parâmetros definidores de condições de existência, representados, sobretudo, pelas regras de versificação, escanção e métrica.

Falando da filosofia, é relevante lembrar que na última fase da produção teórica de Martin Heidegger, por exemplo, viu-se o predomínio do pensar que poetiza sobre o pensar que filosofa.

Tal virada encontra explicação no fato de que a filosofia, segundo ele, teria alcançado seu fim. Razão pela qual ficaria a cargo da poesia a passagem (Übergang) a um pensamento do Ser. Assim sendo, o pensamento poético passaria a definir, dali em diante, um modo de ser com o mundo.

Vale frisar, contudo, que sempre que a poesia toma por traço fundamental mostrar-se como demasiadamente teórica, acaba por forçar o poeta a também pensá-la. Pensar o conteúdo mais que a forma, sua engenharia personalíssima, seus planos internos e externos, evidentes ou implícitos.

Eis o fazer poético. Um pensamento que escolheu seguir pelo caminho da sensibilidade, das intuições, da contemplação estética como via alternativa num mundo rodeado de fenômenos cientificizados. Ao mesmo tempo, com o propósito de dividir com a reflexão filosófica a leitura do mundo, esse modelo de racionalidade adicionou camadas de racionalidade capazes de acessar verdades cujo pensamento tradicional buscava.

Isto posto, entendo que a poesia se situa correlacionada à filosofia, mediante o que María Zambrano denominou de razão poética. Condição que radica na gênese desses dois campos e a qual nominei de emaranhamento intermitente. Fenômeno movido pela intencionalidade subjetiva do poeta e do filósofo, que vem se manifestando em caráter circunstancial, porém com retomadas constantes, desde os pensadores originários.

Nesse sendido, verifica-se a possibilidade da prática de um pensar que poetiza, a partir da unidade que fabricou poetas-filósofos como Mallarmé, Lucrécio e filósofos-poetas como Platão, Hölderlin, Nietzsche, Rilke e Heidegger.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

COMENTÁRIOS SOBRE O LIVRO DE POEMAS "PEDRA DOS OLHOS" (TEXTO DO ESCRITOR CHARLES SIMÕES)


Reproduzo aqui um texto de autoria do escritor maranhense Charles Simões, onde tece considerações sobre a leitura de meu livro de poemas "Pedra dos Olhos". Boa leitura!

 
"Não sou crítico, mas se entendesse das coisas que necessitam de crítica talvez lesse um pouco mais, não para fazer uma crítica mas uma reflexão a partir das reflexões que me foram postas pelos textos que me foram apresentados.Como não sou crítico nem poeta, direi umas palavrinhas a respeito desta obra que acabei de ler depois de ter lido o autor que me impulsionou a ser um dos seus leitores a partir de um texto que postara hoje neste 27 de outubro que não é de Francis Cabrel.
 
A obra é " Pedra dos Olhos" da Editora Hamsa e o autor é o maranhense Rogério Rocha, professor e filósofo. Eu já conheço o autor e por vezes que nos encontramos ocasionalmente, Rogério, educado e cortesmente sempre nos permitiu um dedo de prosa, mas aquela prosa que se alguém não parar para ir-se embora, ficaria- se horas e horas. Na maioria das vezes, ele está sempre acompanhado de meninos simples mas que respiram poesia, embora digam não ser poetas.
 
Hoje, com um tempo de sobra, olhei a rede social de soslaio e encontrei o texto do artista se indagando a respeito dos tipos de leitores que o leriam. Achei- me no direito, sem pedir licença, de ser um leitor seu ou da sua obra. Já tinha visto no dia que adquiri o livro que a apresentação fora feita por Saulo Barreto que sempre tem o prazer de dividir e compartilhar ideias com o nobre filósofo e conforme o final da apresentação se acha um amigo menor.
 
Eu li a obra em um fôlego e simplesmente senti muito prazer ao fazer tão boa leitura. Não sou um leitor eficiente para leitura de textos deste calibre, até porque não sou poeta, mas cada poema deixava- me extasiado. Rogério Rocha não dispensa uma boa escolha lexical e de maneira muito disciplinada não segue regras impostas pelas regras dos doutores em poema e que muitas vezes entendem pouco de poesia, afirmação minha, como um homem simples no ato de pensar, porque poesia brota de dentro da gente como dizia outro grande poeta José Chagas.
 
Eu tenho a sensação que o poeta/filósofo, nunca finalizou um poema em um só dia, eu acho que sentava, e no silêncio de sua calma, ele matutava e matutava, para em versos brancos apresentar uma rica poesia que sempre traz um ritmo e métrica tão bem colocados que só depois do verso lido você percebe ser branco porque além de ricos em ritmos são muito marcados por uma métrica própria.
Não me peçam para explicar isso, adquiram a obra e tirem suas dúvidas, eu tenho plena consciência que o autor sabe sobre tudo e dialoga sobretudo sobre as coisas humanas e ele se preocupa como um poeta grande que não deixa os menores problemas serem passados em branco pois em brancos versos versa sobre tudo que lhe vem à mente.
 
Cada poema tem uma natureza singular, o dito está no que diz porque era preciso dizer e quando talvez não diz a gente encontra porque descobre que era aquilo que queria dizer. Todos os poemas são uma riqueza de poesia mesmo que venham interpolados com a crônica, mas percebi um grand poeta quando apresentou Nauro Machado um dos últimos poetas grandes que nasceu na nossa cidade que transpira poesia como as de Gonçalves Dias, Ferreira Gullar e tantos outros mais.
 
E aqui jamais eu digo que os demais não são poetas, são sim, mas que Nauro era daqueles poetas que fez da poesia a sua morada, às vezes quando se via com seu guarda- chuva e o seu silêncio, andando devagar na singela cidade, às vezes tão mal cuidada, o poeta construía tão primorosas poesias que cheias de magia nos encantavam como encantado fiquei ao ler todos os poemas de Pedra nos Olhos de Rogério Rocha. 
 
Nobres amigos leitores se desejam encantar-se ou se deixar encantar por tão rica, nobre e arrojada poesia leia a obra e tire suas próprias conclusões, pois podem crer que eu sou suspeita. 

domingo, 5 de abril de 2020

MAYA ANGELOU

Recentemente, escutei algo como "os aniversários são para sempre". Não sei quem me disse isso, se li ou ouvi, e nem o contexto. Mas quando penso sobre hoje, aniversário de Maya Angelou, só consigo concluir que, sim, é uma data para ser sempre celebrada.
Maya (Marguerite Annie Johnson) foi uma poeta, escritora, condutora de bondes (a primeira negra contratada para a função), atriz, cantora, dançarina, diretora de cinema, ativista pelos direitos dos negros, ou seja, teve uma vida recheada de histórias - que ela gostava de contar e repetir, e que lhe renderam 7 autobiografias, sucessos mundiais.
Com a poesia, Maya conquistou o Pulitzer (com o livro "Apenas me dê um copo de água gelada antes que eu morraaa) e 3 Grammy com álbuns de poesia falada,  e essa era uma relação especial porque foi através da poesia que Maya conseguiu romper com um trauma vivido na infância. Quando tinha 7 anos, Maya foi estuprada pelo namorado de sua mãe. Ela compartilhou o acontecido com seu irmão, Bailey, que contou para o resto da família - dias depois, o estuprador foi encontrado morto. Com isso, Maya acreditou que sua voz tinha matado aquele homem e que, portanto, poderia matar qualquer um, por isso, parou de falar e esse mutismo durou anos, sendo quebrado pela provocação feita por uma amiga da família, a senhora Flowers, com quem Maya passava algumas tardes. A senhora Flowers lia para Maya uma infinidade de poetas (Shakespeare, Dickens, Poe) que, depois, se tornaram referências para ela. "Maya, você não gosta de poesia… Você nunca vai gostar até que a recite, até sentí-la rolar pela sua língua, sobre os dentes, através de seus lábios. Você nunca vai gostar". Diante disso, 5 anos depois que decidiu parar de falar, Maya tentou recitar um poema. Essa relação que criou com a poesia, Maya explicava como "a prova de que algo bom pode nascer de uma situação ruim".
Desse momento em diante, mesmo com diversas atividades, Maya sempre enxergou a poesia como seu trabalho e algo de extrema importância.
Publicou 5 livros de poesia: Apenas me dê um copo de água gelada antes que eu morraaa; Oh, reze para que minhas asas me caiam bem; E ainda assim eu me levanto; Shaker, por que você não canta? e Eu não serei levada, além de diversos poemas avulsos, que foram traduzidos e publicados no Brasil, em março.  Seus poemas falam sobre a condição da mulher negra estadunidense, que ama, que viaja, que trabalha, que tem fé, que resiste e luta - como dizia: "afiando a ponta da caneta nas cicatrizes que existiam no seu próprio corpo". Com a chegada desta publicação ao país, é possível, ainda, se tratando de uma existência particular, encontrar diversas relações entre a vida da Maya e as vidas de tantas mulheres negro-brasileiras.
Abaixo, poemas de Maya e suas traduções, um bocado de cada livro. Que com eles, que com a vida que existe neles, possamos celebrar a existência dessa mulher fenomenal - como ela mesma se enxergava.
Lubi Prates
* * *
Quando penso sobre mim mesma

Quando penso sobre mim mesma,
Gargalho até quase morrer,
Minha vida tem sido uma grande piada,
Uma dança que se anda,
Uma canção que se fala,
Gargalho tanto que quase perco o ar,
Quando penso sobre mim mesma.
Sessenta anos no mundo dessa gente,
A criança para quem trabalho me chama de garota,
Eu respondo “Sim, senhora” por causa do emprego.
Muito orgulhosa para me curvar,
Muito pobre para me quebrar,
Gargalho até meu estômago doer,
Quando penso sobre mim mesma.
Meus pais podem me fazer cair na gargalhada,
Rir tanto até quase morrer,
As histórias que eles contam soam como mentiras,
Eles cultivam a fruta,
Mas só comem a casca,
Gargalho até começar a chorar,
Quando penso sobre meus pais.
When I think about myself

When I think about myself,
I almost laugh myself to death,
My life has been one great big joke,
A dance that’s walked,
A song that’s spoke,
I laugh so hard I almost choke,
When I think about myself.

Sixty years in these folks’ world,
The child I works for calls me girl,
I say “Yes ma’am” for working’s sake.
Too proud to bend,
Too poor to break,
I laugh until my stomach ache,
When I think about myself.

My folks can make me split my side,
I laughed so hard I nearly died,
The tales they tell sound just like lying,
They grow the fruit,
But eat the rind,
I laugh until I start to crying,
When I think about my folks.
Para assistir a Maya declamando esse poema: https://youtu.be/k9ywTJvBwTc
§
Minha culpa
Minha culpa são "as correntes da escravidão", por muito tempo
o barulho do ferro caindo ao longo dos anos.
Este irmão vendido, esta irmã que se foi,
tornam-se uma cera amarga tapando os meus ouvidos.
Minha culpa fez música com as lágrimas.
Meu crime são "os heróis mortos e esquecidos",
Vesey, Turner, Gabriel, mortos,
Malcolm, Marcus, Martin King, mortos.
Eles lutaram pesado e amaram bem.
Meu crime é estar viva para contar.
Meu pecado é “estar pendurada numa árvore”,
Eu não grito, isso me deixa orgulhosa.
Decidi morrer como um homem.
Faço isso para impressionar a multidão.
Meu pecado é não gritar mais alto.
My guilt
My guilt is “slavery’s chains,” too long
the clang of iron falls down the years.
This brother’s sold, this sister’s gone,
is bitter wax, lining my ears.
My guilt made music with the tears.

My crime is “heroes, dead and gone,”
dead Vesey, Turner, Gabriel*,
dead Malcolm, Marcus, Martin King.
They fought too hard, they loved too well.
My crime is I’m alive to tell.

My sin is “hanging from a tree,”
I do not scream, it makes me proud.
I take to dying like a man.
I do it to impress the crowd.
My sin lies in not screaming loud.
*Nota: Vesey, Turner e Gabriel, assim como os também citados (e mais conhecidos) Malcolm X, Marcus Garvey e Martin Luther King, foram lutadores pela liberdade dos negros.
§
Um brinde à recomposição
Eu fui numa festa
lá em Hollywood.
A atmosfera era péssima
mas as bebidas estavam boas
e foi onde ouvi você rir.
Então, eu fiz um cruzeiro
num velho navio grego.
A tripulação era divertida
mas os convidados não eram descolados,
foi aí que encontrei suas mãos.
Numa caravana
para o Saara,
O sol acertava como uma flecha
mas as noites eram grandiosas,
e foi assim que eu encontrei seu peito.
Numa tarde no Congo
onde o Congo termina,
Eu me encontrei sozinha, ah
mas eu fiz alguns amigos,
e foi onde eu vi seu rosto.
Eu tenho dedicado
todo meu tempo para reunir
partes suas que flutuam
ainda descoladas.
E você não vai se recompor
Para
Mim
N E N H U M A V E Z?
Here’s to Adhering
I went to a party
out in Hollywood,
The atmosphere was shoddy
but the drinks were good,
and that’s where I heard you laugh.

I then went cruising
on an old Greek ship,
The crew was amusing
but the guests weren’t hip,
that’s where I found your hands.
On to the Sahara
in a caravan,
The sun struck like an arrow
but the nights were grand,
and that’s how I found your chest.
An evening in the Congo
where the Congo ends,
I found myself alone, oh
but I made some friends,
that’s where I saw your face.
I have been devoting
all my time to get
Parts of you out floating
still unglued as yet.
Won’t you pull yourself together
For
Me
O N C E.
§
Trabalho de mulher

Eu tenho crianças para cuidar
As roupas para remendar
O chão para esfregar
A comida para comprar
Depois, o frango para fritar
O bebê para secar
Eu tenho as visitas para alimentar
O jardim para aparar
Eu tenho camisetas para passar
O bebê para vestir
A cana para cortar
Eu tenho que limpar essa cabana
Depois, cuidar dos doentes
E colher o algodão.
Brilhe sobre mim, luz do sol
Chova sobre mim, chuva
Caiam suavemente, gotas de orvalho
E refresquem minha testa novamente.
Tempestade, me sopre daqui
Com seus ventos violentos
Me deixe flutuar através do céu
Até que eu possa descansar novamente.
Caiam gentilmente, flocos de neve
Me cubram de beijos
Brancos e gelados e
Me deixem descansar esta noite.
Sol, chuva, céu turvo
Montanha, oceanos, folhas e pedras
Luz das estrelas, brilho da lua
Vocês são tudo que posso chamar de meu.
Woman Work
I’ve got the children to tend
The clothes to mend
The floor to mop
The food to shop
Then the chicken to fry
The baby to dry
I got company to feed
The garden to weed
I’ve got the shirts to press
The tots to dress
The cane to be cut
I gotta clean up this hut
Then see about the sick
And the cotton to pick.
Shine on me, sunshine
Rain on me, rain
Fall softly, dewdrops
And cool my brow again.
Storm, blow me from here
With your fiercest wind
Let me float across the sky
Till I can rest again.
Fall gently, snowflakes
Cover me with white
Cold icy kisses and
Let me rest tonight.
Sun, rain, curving sky
Mountain, oceans, leaf and stone
Star shine, moon glow
You’re all that I can call my own.
§
Mais uma rodada

Não há pagamento mais doce sob o sol
Do que o descanso depois de um trabalho bem feito.
Eu nasci para trabalhar até morrer
Mas eu não nasci
Para ser escrava.
Mais uma rodada
E viramos o navio,
Mais uma rodada
E viramos o navio.
Papai molda o aço e Mamãe mantinha a guarda,
Nunca os ouvi reclamando porque o trabalho era pesado.
Nasceram para trabalhar até morrer
Mas não nasceram
Para morrer escravos.
Mais uma rodada
E viramos o navio,
Mais uma rodada
E viramos o navio.
Irmãos e irmãs sabem as tarefas diárias,
O trabalho não fez com que perdessem a cabeça.
Eles nasceram para trabalhar até morrer
Mas não nasceram
Para morrer escravos.
Mais uma rodada
E viramos o navio,
Mais uma rodada
E viramos o navio.
E agora vou contar qual é minha Regra de Ouro,
Eu nasci para trabalhar, mas não sou nenhuma mula.
Eu nasci para trabalhar até morrer
Mas não nasci
Para morrer escrava.
Mais uma rodada
E viramos o navio,
Mais uma rodada
E viramos o navio.
One more round
There ain’t no pay beneath the sun
As sweet as rest when a job’s well done.
I was born to work up to my grave
But I was not born
To be a slave.
One more round
And let’s heave it down,
One more round
And let’s heave it down.
Papa drove steel and Momma stood guard,
I never heard them holler ’cause the work was hard.
They were born to work up to their graves
But they were not born
To be worked-out slaves.
One more round
And let’s heave it down,
One more round
And let’s heave it down.
Brothers and sisters know the daily grind,
It was not labor made them lose their minds.
They were born to work up to their graves
But they were not born
To be worked-out slaves.
One more round
And let’s heave it down,
One more round
And let’s heave it down.
And now I’ll tell you my Golden Rule,
I was born to work but I ain’t no mule.
I was born to work up to my grave
But I was not born
To be a slave.
One more round
And let’s heave it down,
One more round
And let’s heave it down.
§
Despertando em Nova York
Cortinas se forçam
contra o vento,
as crianças dormem,
trocando sonhos com
os anjos. A cidade
se força a acordar nas
vias do metrô; e
eu, alarmada, acordo como
um rumor de guerra,
me espreguiçando pelo amanhecer,
indesejado e ignorado.
Awaking in New York
Curtains forcing their will
against the wind,
children sleep,
exchanging dreams with
seraphim. The city
drags itself awake on
subway straps; and
I, an alarm, awake as
a rumor of war,
lie stretching into dawn,
unasked and unheeded.
§
Por que eles estão felizes?
Arreganhe seus dentes, maldito seja,
agite seus ouvidos,
sorria enquanto os anos
correm
do seu rosto.
Levante as bochechas, garoto negro,
enrugue seu nariz,
sorria enquanto os seus dedos
cavam
o seu túmulo.
Revire esses olhos grandes, garota negra,
emborrache seus joelhos,
sorria quando as árvores
se curvarem
com seus parentes.
Why are they happy people?
Skin back your teeth, damn you,
wiggle your ears,
laugh while the years
race
down your face.
Pull up your cheeks, black boy,
wrinkle your nose,
grin as your toes
spade
up your grave.
Roll those big eyes, black gal,
rubber your knees,
smile when the trees
bend
with your kin.
* * *
Lubi Prates (1986, São Paulo/SP) é poeta, tradutora, editora e curadora. Tem três livros publicados (coração na boca, 2012; triz, 2016; um corpo negro, 2018). “um corpo negro” foi contemplado pelo PROAC com bolsa de criação e publicação de poesia e está em processo de publicação, em 2020, na Argentina, Colômbia, Estados Unidos, Espanha e França, além de ser finalista do Prêmio Rio de Literatura e do 61º Prêmio Jabuti. Tem diversas publicações em antologias e revistas nacionais e internacionais. Organizou os festivais literários para visibilidade de poetas, [eu sou poeta] (São Paulo, 2016) e Otro modo de ser (Barcelona, 2018) e também participou de outros festivais literários no Brasil e em outros países da América Latina. É sócia-fundadora e editora da nosotros, editorial, e é editora da revista literária Parênteses. Dedica-se à ações que combatem a invisibilidade de mulheres e negros. Atualmente, é doutoranda em Psicologia do Desenvolvimento Humano, na Universidade de São Paulo.
Extraído do site ESCAMANDRO.

Maya Angelou, por Lubi Prates

por guilherme gontijo flores

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