Mostrando postagens com marcador conto. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador conto. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

AS VERDADEIRAS LENDAS

 

Por Rogerio Rocha

 

No salão das refeições, após os demais terem-se retirado, dois homens maduros, sentados lado a lado, raspavam seus pratos, mastigando lentamente o resto dos caroços de feijão servidos com o arroz de carreteiro.

O mais jovem deles olhou para o do lado, cutucou a costela do que estava à sua direita com o cotovelo e puxou conversa:

“Nero, meu querido! O que acha de bolarmos uma forma de dominar o mundo? Afinal, creio que você saiba do meu desejo insaciável por quebrar convenções e impor minha vontade, não é? ”

“Calígula, olha que essa é uma ideia que me atrai! Dominar o mundo. Será algo tão chocante quanto nomear um cavalo como cônsul. ”

“É verdade! Para quebrar com a mesmice, nada melhor do que causar impacto. Causar. Lacrar, como gosta de dizer essa gente de hoje. Que tal colocarmos um Youtuber no posto de ministro da Educação ou criarmos uma religião baseada na política? ”

“Sensacional, meu caro Calígula! E para ganhar as mentes do povo lançaremos uma campanha publicitária que reverencie as nossas "divindades". Podemos fazer várias lives e usar os influenciadores digitais para performances bizarras em honra e glória de nossas imagens. ”

“Genial, Nero! Genial! Iremos cunhar também moedas virtuais com o nosso selo, disseminá-las por toda a rede mundial de computadores, dar-lhes valores altíssimos e uma cotação que nunca cairá! ”

“Popularizaremos programas de televisão com sexo, sadismo, inversão de valores e muita baixaria. Nele os políticos corruptos usarão tornozeleiras eletrônicas, roupas esfarrapadas e deslizarão em enormes canaletas, caindo, ao final da descida, num imenso chiqueiro, cheio de lama e lotado de porcos famintos! ”

“Ótima ideia. Mas é claro que, mesmo agindo assim, não admitiremos críticas” – disse Calígula com a face transtornada. “Nossos opositores serão sumariamente cancelados em todas as mídias e redes sociais! Depois serão expulsos do nosso império. E para sacramentar a destruição de suas reputações, lançaremos propagandas sistemáticas de difamação e criaremos factoides para confundir a opinião pública. ” – Afirmou, gesticulando com firmeza.

Nos olhos arregalados dos dois, bem como na entonação das vozes num crescendo, ficava evidente a conexão entre as mentes dos conspiradores. Ambos pareciam saber que suas histórias, bem como a razão de estarem ali, tinham muitos elementos em comum.

“Você já percebeu que somos homens diferenciados! Na verdade, somos únicos. Temos visão, pensamos grande e estamos sempre à frente de tudo. Será que os idiotas desse tempo ainda não perceberam isso? ”

“Talvez não. Acho muito difícil, para falar a verdade. Por isso não podemos nos acomodar! Vamos dominar o mundo o quanto antes! Só assim teremos de volta a consideração e o reconhecimento que merecemos. ” – Falou enchendo o peito e empinando o nariz.

“Ah! Lembrei agora! Você sempre foi dado a extravagâncias e ligado aos escândalos. Anotarei em meu diário para não esquecer que isso não deve faltar ao império. Mas, voltando ao que interessa: como seduzir os jovens para aceitarem nossas ideias? ”

“Simples. Transformaremos as aulas em encenações dramáticas, com telas digitais ultra coloridas, vídeos e jogos que disseminarão nossa filosofia. Aprenderão tudo ouvindo podcasts, assistindo vídeos motivacionais e sendo sugestionados por meio de mensagens subliminares. Pagaremos os melhores coaches para fazer esse trabalhinho sujo. Mas fique tranquilo! As pessoas sequer vão notar. ” – Disse, com ar de superioridade, o futuro conquistador.

“Fantástica ideia, Calígula! Criaremos um programa: o "Meu vídeo, minhas selfies”. Assim, quem sabe, os súditos mais pobres não venham a se contentar mais facilmente ao ser dominados. Aos mais ricos, mandaremos distribuir vinho e queijo diariamente. Não terão do que se queixar. ”

“Perfeito, Nero! No campo da política, resolveremos conflitos no Senado com duelos de MMA. O mais forte vencerá e terá a razão! Com isso, poderemos matar as saudades das corridas de biga e dos combates entre os gladiadores. Que tempos maravilhosos foram aqueles! ” – Exclamou saudoso o pretendente ao trono.

“Sem dúvida, Calígula! E quando estivermos entediados, ao invés de debatermos as soluções para as crises, contrataremos cantores populares para apresentar seus shows gratuitamente em cadeia nacional. ”

“Eis o governo que o mundo precisa: um mix de força, diversão e egolatria! ”

O toque estridente da sirene enfim soou, interrompendo a mirabolante conversação. Afinal, era hora do toque de recolher. Momento em que os agentes judiciários passavam para conduzir às celas algum interno que por ali estivesse.

Era o fim de mais um dia no manicômio judiciário do estado. 

Após entreolharem-se, com um nítido ar de decepção, os parceiros de casa encaminharam-se para o término do diálogo, tendo um deles questionado:

“Vejo que temos mesmo muito em comum. Mas, fico aqui pensando, será que o mundo um dia vai entender a grandiosidade de tudo aquilo que já pensamos e fizemos? Ou continuarão a cometer o erro de nos tratar como loucos? ”

“Olha, Nero! ” – Disse o interno, antes de ser conduzido à força para a cela onde dormia – “Para mim isso não importa”. “O que interessa é que nunca deixaremos de viver no imaginário das pessoas. Nosso destino é mesmo o de nos tornarmos aquilo que nascemos para ser: verdadeiras lendas! ”

domingo, 16 de julho de 2023

A BANCA DO VÔ [Um conto de Rogério Rocha]

Fotos Empresa Chocolate, 76.000+ fotos de arquivo grátis de alta qualidade 

Fonte: Freepik


Por Rogério Rocha

 

No final de tarde a gente chega. As crianças passam e olham. A banca de bombons do vô está na praça. É um sucesso. Sei que é porque sempre tem alguém querendo comprar alguma coisa.

Os meninos jogam bola aqui perto. As meninas pulam corda, dançam ou brincam de amarelinha. Depois encostam. Tem bolinhos, doces, chocolates e balas. Tudo que elas gostam.

Quase todo dia a gente monta a banca. Eu venho com ele. Fico ao lado brincando com meu carrinho. Trago sempre uma garrafa com água e uma sacola com o lanche. Às vezes dá fome, sede, mas eu estou sempre aqui com ele. O vô gosta muito de mim.

Meu pai nunca vem. Ele fica em casa. Diz que precisa cuidar das entregas. Uns saquinhos que vende para o pessoal da comunidade. Neles eu não posso mexer, o pai sempre diz. Ficam guardadinhos, mas nem sei onde.

Quando os adultos vêm comprar, o vô entrega os bombons, mas eles escondem logo. Botam no bolso ou na mochila. Não gostam da praça. Saem ligeirinho, com cara estranha. Acho que os pais deles estão esperando em casa. Podem apanhar se demorarem na rua. Deve ser bem por isso.

Na minha casa não falta nada. O pai e o vô sabem ganhar dinheiro, viu. Até quando já é bem tarde, e estou quase dormindo, bate gente na porta atrás de um docinho.

Essa semana um menino chegou na banca com os olhos vermelhos. Acho que estava com sono. Com sono ou chorando, não sei. Mas ficou feliz. Abriu um sorriso quando levou umas balinhas.

Na praça também tem meninas. Umas moças que falam baixinho e gostam de sorrir. São muito bobas. Riem à toa. Até sem ter piada. Eu não entendo, mas acho engraçado.

Tem dia que vamos embora mais cedo. Afinal, meu vô não gosta quando tem polícia. Parece que fica preocupado. Guarda uma parte das coisas numa caixa de papelão. Depois me olha sério, diz para eu pegar meu brinquedo e guardar na sacola. Ele fala no celular e, não demora, aparece um moço do táxi que leva a gente para casa. Gosto muito de andar de táxi.

Também não demora para mudar de bairro, sabe! Toda semana é um lugar diferente, outra praça em outro bairro. Muda a paisagem, mudam as pessoas, mas os bombons não.

Ah, um dia ainda vou ser como o vô.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

PERDIDOS NA NOITE (um conto de Rogério Rocha)

Foto tirada no(a) Rua Grande por Ernanig em 10/11/2013  

 Foto: Internet - Foursquare

 

 

Zé Lipaté e Maninho voltavam do Reviver em altas horas. Madrugada de bêbados no Centro velho da cidade. Hippies, prostitutas, gays e turistas haviam ficado para trás. Passavam já do Largo do Carmo e iam a passos rápidos rumo a suas casas, quando resolveram atravessar a Rua Grande. Queriam chegar à Rua do Passeio. Depois desceriam para as bandas da Madre Deus, onde moravam.

No meio da maior rua do comércio popular de São Luís, deserta àquela altura, conversavam sobre os resquícios da noitada, o som na galeria em que estavam, umas garotas que encontraram por lá, quando viram sair do canto da rua Godofredo Viana um velho muito feio. Um traste fedorento que assustou os dois amigos ao pigarrear e cantar uma música das antigas, ao passo em que seguia, um tanto manco, o rumo da calçada da dupla, chegando perto e perguntando:

- Quê qui cêis fazem três horas da madrugada no meio da rua, ças crianças? Cês são muito pepêto pra dar banda em minha área mora dessas!

- Porréessa, rapá! Pra lá, mala velha! – disse Lipaté, espantado.

- Ignora, brodi! Ignora! – retocou Maninho.

- Mas gente, cês passaqui assim de boa, sem me prestá menage!?

- Ménage???Ménage é o carai! Tira logo pra fora fedô! – esbravejou Maninho.

Os dois seguiam seus rumos em passos ainda mais rápidos, no sentido da Rua do Passeio, que, infelizmente, parecia que nunca chegava.

Lá pelo meio da Rua Grande eram ainda seguidos pelo habitante da noite, que ora ia pra um lado, ora pra outro, chafurdando com os garotos, rindo e tombando sem perder o passo do acompanhamento.

Maninho então pensava de si para si enquanto olhava de esguelha o amigo de jornadas, tentando, também às pressas, encontrar um modo de se livrar daquele traste.

- Peste, capa o gato que é! Tá me enchendo já! Se tu não fô imbora logo eu juro que te jogo dentro da fogueira santa de Israel. Copiou? – falou sério Lipaté.

- Ouviu aí, né?! – reforçou Maninho.

- Vou secês dé um quarqué cois pra mim. Um mimo quarqué já vale. Senão vô continuá companha cês atééééé...

Os amigos bêbados entreolharam-se ao lembrarem da metade de um litro de catuaba que havia dentro da mochila de Maninho. Rápido a retiraram de dentro e a ofereceram para o enjoado.

- Toma, pô! Taí, ó! Taí! É da boa, viu! Pode bebê quinda tem metade da garrafa.

Recebendo a garrafa nas mãos e soltando um grito de contentamento, pulou de euforia, gargalhou e chamou umas perdidas que estavam ali por perto e, do nada, saíram, quase ao mesmo tempo, de ruas transversais por onde haviam acabado de passar. Naquela hora, surgiram duas desgrenhas da mesma qualidade do amargoso, juntando-se aos três, logo após.

Ao tempo em que aquelas criaturas começaram a disputar a pobre garrafa de catuaba, Maninho e Lipaté trataram de correr. Saíram a todo gás, com medo do que poderia vir depois. Deixaram para trás os funestos habitantes do nada no meio do silêncio da Rua Grande.

Depois de chegarem nas imediações do Hospital Socorrão I, cansados, mas sorridentes, os jovens trocavam gozações.

- Porra, Mano! Agora temo história pacontá, ó! Tá doido, doido!

- Rapá, ças coisas só acontece com a gente mesmo! Vou te dizê!

- Não é ??!!! Mas daqui pra ali agora é na fé, bicho. Depois dessa o caminho tá limpo e é todo nosso.

- Tá é certo, ó! Depois duma porra dessa, o quê de ruim pode acontecer, né!?

Instantes depois de virem ao mundo o som dessas palavras, viram surgir do rumo do Caminho da boiada um homem com um charuto na boca, barba branca e chapéu na cabeça, que resolveu ficar encostado no canto do edifício Malvina Aboud. Parou e permaneceu lá – justamente onde passariam – olhando em suas direções. Enquanto isso, as luzes dos postes das redondezas começaram a piscar. 

Pelo jeito, a noite ainda lhes traria algumas emoções.

domingo, 31 de outubro de 2021

O ENCONTRO DE OUTONO (um conto de Rogério Rocha)

vienna monovisions | David Weintraub
Foto: David Weintraub - Internet


O ano de 1919 trouxe a Viena um início de inverno moderado, com temperaturas que muito lembravam a do recém-findado outono.

Com os treze graus centígrados daquela manhã nublada, o consultório do respeitado doutor era um abrigo mais que bem-vindo.

Chegou na hora marcada. Na rua pouco movimentada, ficou a observar os relógios na vitrine de uma loja no prédio ao lado do seu destino. Por alguns poucos minutos titubeou, não sabendo se entrava ou não. Da calçada divisou, ao final da avenida, a catedral gótica da cidade. Com uma expressão congelada no rosto, ouviu o primeiro toque do sino, que badalava as três horas da tarde.

Respirou fundo, tirou o chapéu, encarou a porta diante de si, bateu levemente e, logo a seguir, pode entrar.

Sem perder tempo, mas com grande discrição, apresentou-se à secretária na antessala e, após a confirmação do seu nome, dirigiu-se ao consultório. O gabinete do médico neurologista, iniciador de pesquisas sobre novas técnicas para a compreensão da psique humana, era sóbrio e acolhedor, com uma decoração clássica, alguns pequenos quadros na parede, tapetes persas, mobília de madeira em tons amarronzados, com uma estante cheia de livros e prateleiras que continham pequenas peças de arte africana, asiática e outros minúsculos elementos cênicos.

O doutor cumprimentou seu novo paciente com um breve aceno de cabeça e logo estendeu o braço, apontando-lhe o divã.

Após tirar o casaco e acomodá-lo num local apropriado, o jovem escritor deitou-se no local indicado. Fora do seu campo de visão, o médico encontrava-se calmamente sentado em sua poltrona, com um caderno de anotações ao lado de uma pequena mesa. Na ocasião, orientou o paciente a falar com liberdade o que lhe viesse à mente, sem se importar com narrativas lineares.

Após acender um charuto, o analista perguntou-lhe:

- Sente-se confortável?

- Aqui, deitado? Sim, estou bem! – respondeu com um semblante tenso.

- E para falar? Está pronto?

- Depende! Sobre o que devo falar primeiro?

- O que quiser. Sinta-se livre para começar. Quero que caminhes até sua verdade.

- Minha verdade! Talvez ela esteja escondida dentro do meu medo. Do medo de mim, da vida que tenho levado, do meu futuro e... do meu pai.

Enquanto o jovem falava sobre suas angústias e desejos, o terapeuta via surgir, em meio às verbalizações carregadas de tensão, sinais de um conflito existente com a figura paterna.

Ouvia os relatos do paciente sem intervir. Vez por outra, contudo, pedia um breve esclarecimento sobre algum ponto ou fazia questionamentos bem sintéticos, a fim de ajudá-lo a lidar com os incômodos. Afinal, havia um peso na narrativa daquele homem. Era como um fardo gigante, um estado de permanente sofrimento que decorria de traços de sua história familiar e que seu analista buscava atentamente identificar em algum ato falho ou lapso da linguagem.

Mas, enfim, eis que a palavra pai se revelara, abraçada a um indisfarçável desconforto, captado ao ver-se o semblante e ouvir-se a voz do analisando.

- Acabei de escrever uma carta para ele. Sim! Uma longa carta. Mas, sinceramente, não sei se a lerá. Na verdade, não sei sequer se chegará às mãos dele. Aquelas mãos que, se pudessem, com certeza me despedaçariam. – disse, com a voz trêmula.

Com o charuto entre os dedos indicador e médio da mão esquerda, o condutor da sessão ouvia o que era dito, fazia anotações (a fim de ajudar no processo de memorização do caso) e breves comentários. Enquanto isso, o paciente começava, num crescendo do tom da voz, a externar fatos que o impediam de ser ele mesmo e que estavam ligados ao seu relacionamento com o velho genitor.

- Ele parece um Deus. Lá em casa é como o vejo. Uma espécie de carrasco que vive para me perseguir, para tentar me intimidar, para me pressionar, dia e noite. – ressaltou o paciente.

- Há muitos pormenores que não consigo contar... nesse medo que eu carrego do meu pai. Mas odeio quando ele me desqualifica e condena o meu futuro. E faz isso na frente de todos. Sim, eis o meu fabuloso pai!

- De tanto ouvir seus sermões públicos, acredito piamente em todos os argumentos que usa. Por causa dele, só tenho a verdadeira sensação de mim mesmo quando estou infeliz.

- Para piorar, agora quer me impedir de casar com a mulher que me ama de verdade. Quer estragar minha única fortaleza: o amor. – disse, com a voz levemente embargada.

- Somos de carne e osso, mas a vida nos trata, por vezes, como se fossemos de ferro. – comentou calmamente o analista.

Depois de um breve silêncio, o jovem retomou sua fala:

- O muro que meu pai ergueu entre mim e Julie é quase intransponível. Mesmo assim, tenho esperança. Sei que existe e é pequena, mas não posso abrir mão das possibilidades. Não tenho esse direito!

- Ainda assim, o que vejo hoje? O que tenho visto? Apenas a minha própria sombra e o medo que sinto, como se fosse a mão impiedosa do meu pai em minha garganta. – falou, arregalando os olhos que miravam o teto.

- O peso de ser filho é terrível, no meu caso. Meu pai é muito grande para mim. Sua presença é muito forte. Sinto que me esmaga com sua indestrutível superioridade. Com sua vontade de me ver um homem forte e corajoso. Coisas que não sou.

- Ele me cobra todos os dias. Todos os dias. Pergunta onde deixei minhas responsabilidades para com os negócios. Diz que sou um fracasso. Que não valorizo a liberdade que ele me proporcionou. Mas... liberdade? Que liberdade?

- A que teve ao me deixar fora do quarto, com frio e sede, quando eu era apenas um menino chato e chorão, gritando no meio de uma noite chuvosa? A que me ajudou a ser esse nada incontestável, que ressalva sempre que toca no assunto com os parentes à mesa do jantar nos domingos? – questionou o analisado, esbravejando no divã.

- Muitas vezes sonho com ele a me perseguir, doutor. Sonho que estou saindo de uma floresta muito densa, após correr por metros e metros. No final, respiro fundo ao ouvir o clique de um revólver. Depois fecho os olhos e acordo quase sem ar. – diz o jovem escritor, encenando o seu susto.

- Daí para a frente não há mais retorno, ponho na mesa a culpa por todos os meus erros. Estou imerso em silêncio. Até sinto o meu medo dissolver-se dentro dele. Ah, você não sabe a energia que reside no silêncio! – murmura, com um leve sorriso na face.

- Deves perceber que de erro em erro a verdade vai-se revelando. – comentou o médico, enquanto fazia anotações em seu caderno.

- A verdade para mim, doutor, é sempre um abismo. Se não me libertar, irá me destruir. Assim como meu pai tem tentado destruir a minha felicidade.

O analista enfim olhou para o relógio de bolso e informou ao novo paciente que a sessão estava encerrada. O jovem levantou-se um tanto lentamente, como se quisesse permanecer deitado mais um instante. Já de pé, o médico achegou-se frente a ele e, antes que se retirasse, lhe disse:

- A felicidade, caro Franz, é um problema individual. Nesse campo, nenhum conselho é lá muito válido. Afinal, cada um deve procurar, por seus próprios meios, tornar-se feliz. No mais, em última instância, precisamos amar. Amar para não adoecer.

O escritor, por alguns segundos e em silêncio, olhou fixamente no fundo dos olhos do médico. Depois estendeu-lhe a mão, apertou-a com firmeza, despediu-se, vestiu o casaco, pôs o chapéu na cabeça e deixou o consultório com a mesma discrição com que entrara. Logo após sua saída, aparece a secretária para avisar que aquele tinha sido o último atendimento do dia.

- Dr. Freud, o paciente Franz Kafka terá uma nova sessão na quinta-feira da próxima semana, nesse mesmo horário. Achei a expressão daquele jovem meio perdida, o semblante pesado. O senhor acha que ele vai retornar?

- Deixemos isso para uma outra hora, Anna! A resposta à sua pergunta é tão incerta quanto saber se amanhã um de nós dois irá acordar resfriado. A única certeza que tenho agora, e posso lhe garantir, é que estou me dirigindo ao café. Queres me acompanhar?

terça-feira, 24 de agosto de 2021

NEM MORTA (Um conto de Rogério Rocha)

 

    
    
Mulher deitada – William Côgo

Imagem: Internet - William Côgo

 

O sinal de aviso tocou novamente. É a décima chamada de hoje.

Júlio pôs-se de pé, quase como num susto. Levantou a cabeça, respirou fundo, olhou para o alto. Além de um teto branco, nada havia para se ver.

A noite começara há pouco e mais corpos haviam chegado. Dessa vez dois indivíduos de trinta e poucos anos, mortos num acidente de carro. Enfim, a primeira ocorrência cujos óbitos não decorriam da Covid-19.

Seis dias na semana, ao longo de quinze anos, Júlio Viana tem estado em atividade. Trabalhou em muitos lugares, mas, depois, entrou num ciclo de arranjar empregos que ninguém queria. Para sobreviver, foi agente funerário, esteve um tempo no serviço de verificação de óbitos e depois no preparo para sepultamentos. Uma carreira nada convencional, sem visibilidade, reconhecimento ou coisa do gênero.

O fato é que, ultimamente, estava cansado de tudo. Sensação que só aumentava, na medida em que lembrava de todas as chances que desperdiçou, o tempo dispendido com coisas fúteis e que nada adicionaram à sua vida, a acomodação e o marasmo a que se acostumou.

Odiava a profissão quando nela iniciou e, ainda hoje, tem esse mesmo sentimento, apenas com a adição de uma admirável dose de resiliência (o que contrasta abertamente com sua ânsia de mudança). Para além disso há o medo: o medo, ingrediente que se misturou ao cotidiano conturbado que a peste impôs.

O cansaço aumentava e a paciência se extinguia. As cobranças, a sobrecarga, o rumo incerto de sua vida, a solidão pela qual optara. O calafrio que ia e vinha, sua nuca que doía, os olhos vermelhos, as dores nas costas...

Todos os dias, agora, são quase invariavelmente turbulentos. Onde antes tudo era silêncio, hoje é silêncio, dor, desolação. Antes o nó nas tripas, agora o nó na garganta. Mortes a granel, choro, ranger de dentes e uma moléstia de origem obscura que acabou por transformar completamente o turno da noite, que se tornou um pandemônio.

Ao entrar na sala de necropsia, a máscara o sufocava. Ele a ajeita em seu rosto suado. Ela o oprime. Dificulta a sua respiração. Seus pensamentos, em devaneio, o desnorteiam. Imagens, rostos, palidez, rigores, passagens, rasgos nas peles, na alma, cavidades escavadas, projéteis... o tempo a escorrer pelas retinas, as narinas que nada sentem, memórias que piscam e se apagam, cansaço, cansaço...

Faz um pouco de calor e, talvez por isso, odeie ter de usar tantos equipamentos de proteção. As camadas de vestimenta que o recobriam – o macacão, a touca, a viseira – deixavam a impressão de que estava a salvo. Que dentro daquele pequeno inferno ia tudo bem. Lá fora estava pior, pode alguém pensar.

Sobre o grande balcão metálico do centro da sala estavam os cadáveres de uma mulher e um homem. Sobre eles, a luz fria de uma luminária clean.

Aproximou-se dos dois para começar seu trabalho e retirou o manto que os encobria. Diante de si uma mulher loira, de pele branca e bela compleição física, com os olhos perdidos no nada. Além da rigidez de seu silêncio, no sono eterno, a expressão de pavor na contração dos músculos da face, que ficou como amarga lembrança de uns poucos segundos de reação antes do choque.

Tinha escoriações no tórax e sangue pelo rosto, que lhe caíra justamente em decorrência do traumatismo que sofrera no crânio.

Na medida em que Júlio o retirava da face da morta com um pano umedecido em álcool, um novo quadro se revelava. Aos poucos, sua memória passou a buscar um rosto como aquele, de alguém que conhecera um dia. A familiaridade dos traços da face, ainda que mais maduros, e alguns detalhes como a estatura, os lábios, a curvatura do nariz, as curvas do quadril e o formato dos seios, levaram sua imaginação aos tempos de estudante.

À medida em que se esforçava em lembrar, ficava mais forte a certeza de que a pessoa ali deitada fora uma paixão platônica chamada Lúcia. Colega de classe por quem nutria um sentimento tão idealizado que somente tivera, no tempo em que frequentaram as mesmas aulas na faculdade, apenas duas ou três chances de conversar com ela.

Impactado pela situação, o preparador sentiu uma tontura súbita; suas pernas fraquejaram, seu corpo tremeu. Com os olhos cheios de lágrimas e o coração disparado, afastou-se do cadáver por uns instantes, dando as costas àquela cena. Apesar da experiência que o trabalho lhe dera, e a frieza necessária para tratar com pessoas mortas, não esperava defrontar-se com igual situação.

Ignorando completamente o homem que jazia ao lado dela, para quem sequer olhara, Júlio voltou-se novamente para a mesa, pôs as mãos sobre o corpo de Lúcia e o percorreu como que num gesto de oleiro, moldando lentamente suas curvas, tateando suas cavidades, tocando as pernas, os braços, os seios com que tanto sonhara... Em seguida, encostou a cabeça sobre eles e chorou novamente.

Depois, então, voltou-se tristemente para ela, a mirar aqueles olhos já sem brilho, num rosto tão bonito. Tirando as luvas, tocou sua face pela primeira e última vez. Por fim, a beijou lentamente, tocando com ternura seus lábios naqueles frios lábios, e lembrou da vez que lhe pedira um beijo, depois de dançarem uma música na festa de formatura do curso, tendo ouvido daquela boca, ali semiaberta, a seguinte frase: “Eu, te beijar? Nem morta, cara! Nem morta!”

Como são tristes as ironias do destino.

Júlio então cobriu o cadáver de Lúcia, desligou a luz e, antes de sair, deixou sobre a mesa do diretor sua carta de demissão. Decidira abandonar o trabalho. Ao ir embora, desconsolado, levou consigo a amargura de um péssimo dia e o início de uma tosse seca que, com o passar do tempo, tenderia a piorar.

 

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

ASSINADO, ALFREDO [conto de Rogério Rocha]


Quanto mais conheço os homens, mais me aproximo das mulheres - O outro lado  da notícia

por Rogério Rocha

 

Nina escamoteava com êxito sua homossexualidade, vivendo 10 anos em relação conjugal com Alfredo. Contudo, amava mesmo era Selma.

Amava e muito. Era com ela que suas excitações se concretizavam. Era sempre a ela que recorria, em saídas anônimas, quando dos encontros movidos a álcool e beijos de paixão. Seu universo de mentiras mixava dramas e sonhos, realidade e esperanças. Um dia, entretanto, imaginava poder ainda desfraldar de vez aos olhos da sociedade a verdade que escondera.

Afinal, embora enfeixada por ciúmes, a relação de Nina com o esposo lhe era útil. Um verdadeiro presente para a ex-menina pobre que encontrara num homem de condições econômicas bastante favoráveis o porto seguro para as antigas carências materiais, para o desejo de felicidade, conforto e ascensão social. Algo que enfim tivera nessa uma década.

Mas como na vida tudo está atado à inexorável ordem do que lhe é finito, um dia descobre-se ali adiante uma última estrada, um último gole, o capítulo fatal daquele enredo. Com Nina não seria de outra forma.

Após anos de desconfianças, o respeitado cirurgião plástico, professor universitário, 15 anos mais velho que a esposa, teve acesso aos indícios e depois às provas da recorrente infidelidade que sofrera. Caíra enfim o pano das aparências. Em seu lugar viu-se surgir um espetáculo de fotos, imagens, e-mails, vídeos, áudios e ligações telefônicas conseguidas por um investigador particular que Alfredo contratara.

O efeito daquele vendaval motivou a ira, depois a decepção, a amargura, a dor e, enfim, o pior de todos os desejos: o de vingança. Mas quando não se tem coragem para desvirtuar uma biografia com a cessação do problema por meio do atingimento do seu causador, busca-se debelar a causa.

O marido de Nina fez de tudo. Inclusive clonar o número do telefone celular da esposa para corresponder-se com a amante dela. E foi por meio de mensagens de texto e da posse da informação sobre o endereço de Selma que pôde, então, encerrar um drama dando início a outros.

Domingo, 10 horas da manhã, prédio onde mora a amante. Nina chega sorridente, transparece em sua face aquela satisfação que temos ao rever alguém especial. Passa pela portaria, chama o elevador, sobe ao décimo andar, caminha até a porta, insere e vira a chave da porta, abre-a e entra.

O apartamento está arrumado e com as janelas abertas. Joga sua bolsa sobre o sofá da sala de estar. As cortinas brancas balançam suaves ao vento. A tv da sala, ligada num canal de filmes antigos, passa Casablanca.

Nina chama pelo nome do seu amor. Uma, duas, três vezes. O silêncio do ambiente contrasta com o seu sorriso. A intimidade a leva até o fim do corredor e o acesso ao quarto principal é tranquilo. Selma está lá, sobre a cama, deitada na posição de costume.

- Oi, amor! Dormindo até essa hora? – perguntou Nina.

Ao dar conta da cena tétrica, o sorriso congelou-se no rosto, esmaeceu e apagou-se numa fração de segundos. Apagado também estava o olhar de Selma. Perdido num ponto qualquer do teto. No pescoço abria-se um rasgo, de um lado a outro, abaixo do maxilar. No travesseiro o sangue não tão recente. Ao lado do corpo um bilhete com uma letra que lhe era familiar, dizendo: “Agora conheço teu segredo. Não caberá mais em teu coração, nem dentro das tuas mentiras. Eu te odeio! Assinado, Alfredo.”

Postagens populares

Total de visualizações de página

Páginas