Polarizadas ou convergentes e capazes de dialogar, a análise freudiana e a síntese religiosa aproximam-se ou distanciam-se a gosto dos fregueses
Ricardo Torri de Araújo
Tome as palavras “psicanálise” e “religião”. Escreva uma frase. Uma frase que faça sentido, é claro! Uma frase pertinente, defensável. O que você escreveria? Que verbo colocaria entre os substantivos “psicanálise”, “religião”? Que termo usaria primeiro? Que palavra depois? A mim, ocorrem cinco possibilidades. Melhor dizendo: tenho conhecimento de que, pelo menos, cinco frases já foram consistentemente escritas com essas duas palavras.
Vou começar pela mais inesperada delas. Esta: “A religião influenciou a psicanálise”. Esta frase não me teria ocorrido se outra pessoa não a tivesse formulado. Na verdade, não apenas um, mas dois autores, por razões distintas, subscreveram essa frase. Os dois são judeus: David Bakan e Gérard Haddad. Em Sigmund Freud e a tradição mística judaica (1958), Bakan defende a tese de que, ao criar a psicanálise, Freud foi grandemente influenciado pelo pensamento místico judaico, em particular, pela cabala. Em O filho ilegítimo (1981), por sua vez, Haddad sustenta o parecer de que, na invenção da psicanálise, Freud esteve sob a influência do Talmud e do Midrásh judaicos. Segundo Bakan, a psicanálise herdou principalmente conteúdos do judaísmo; de acordo com Haddad, a afinidade entre a psicanálise e o judaísmo diz respeito, sobretudo, a aspectos formais.
Certamente, a psicanálise deve muito à judeidade de Freud. Mas parece pouco provável que deva algo ao judaísmo como religião. A condição judaica de Freud foi importante para a criação da psicanálise na medida em que, como judeu, ele estava preparado para assumir uma posição minoritária. Independência de julgamento e tenacidade: eis o que Freud aprendeu com o fato de ser judeu. Nesse sentido, não foi por acaso que o descobridor da sexualidade infantil, o desbravador do “sexto continente” e o autor da teoria da etiologia sexual das neuroses tenha sido um homem acostumado a estar na oposição.
Segunda frase: “A psicanálise e a religião concordam entre si”. O maior representante desse ponto de vista foi um amigo pessoal de Freud: o pastor luterano OskarPfister, o “pai” do diálogo entre a psicanálise e a religião. No dia 9 de outubro de 1918, provocativo, Freud perguntou a Pfister por que a psicanálise precisou esperar por um judeu completamente ateu para ser criada. Passadas três semanas, surpreendentemente, o pastor respondeu que, de saída, Freud não era judeu e, em segundo lugar, que tampouco era ateu. Um homem que busca a verdade e combate pelo amor só pode estar muito próximo de Deus, argumentou Pfister. O pastor acrescentou: “Jamais houve cristão melhor”.
Embora não seja nem de longe o único, Pfister é, sem dúvida, o campeão do concordismo. Ele não apenas defendeu a compatibilidade entre a psicanálise e a fé cristã, mas fez do inventor da psicanálise uma espécie de cristão anônimo, “batizou” Freud. Não falta, porém, quem considere que a harmonização entre a psicanálise e a religião é uma operação que faz violência tanto a uma como à outra. A conciliação só é possível ao preço de uma adulteração de, pelo menos, uma das duas grandezas em jogo – ou ainda: de ambas!
Terceira possibilidade: “A psicanálise apenas purifica a religião”. Esta afirmação é, na verdade, uma tese auxiliar daquela que acabamos de considerar. A tensão entre a psicanálise e a religião – argumenta-se – é aparente; a psicanálise concorre apenas para a depuração da religião, não para a sua aniquilação, vindo, assim, em última análise, prestar-lhe um serviço involuntário. De novo, Pfister é o melhor porta-voz desse parecer. Em 1928, em A ilusão de um futuro – a sua réplica a O futuro de uma ilusão (1927), de Freud –, Pfister descreveu o método psicanalítico como “um instrumento maravilhoso para purificar e fazer avançar a religião”. Pretende-se que esse raciocínio valha seja para a experiência da análise, seja para o embate teórico com a psicanálise, isto é, tanto o crente que se deita no divã de um analista, quanto o teólogo que enfrenta o desafio que o pensamento de Freud representa sairiam ganhando com a psicanálise, não abandonariam a religião, mas, pelo contrário, teriam a sua fé depurada, amadurecida, tornada adulta, menos infantil.
De novo, seria muito conveniente – para a religião, entenda-se – se fosse assim. Mas não parece que as coisas se deem sempre desse jeito. Mais razoável é admitir que tudo pode acontecer com a fé de quem entra em contato com a psicanálise – seja com o divã do analista, seja com os livros de Freud. Tudo! Pode-se perder a fé; pode-se purificá-la; pode-se, nesse sentido, fortalecê-la; pode-se até adquirir a fé – ou recuperá-la – com a psicanálise. Em O dia em que Lacan me adotou (2002), Haddad, por exemplo, conta que recuperou a fé fazendo análise com o grande mestre parisiense. Mas não é todo dia que isso acontece.
Penúltima frase: “A psicanálise e a religião são incompatíveis entre si”. Psicanálise e religião são como “óleo e água”: não se misturam. Quando Hélio Pellegrino morreu – Pellegrino era psicanalista, marxista e cristão! –, um grupo de amigos decidiu homenageá-lo com um livro de artigos sobre psicanálise e religião. Deram-lhe o nome Hélio Pellegrino. A-Deus (1988). O artigo de Joel Birman teve por título: “Desejo e promessa, encontro impossível”. Segundo Birman, há uma polaridade insofismável entre a psicanálise e a religião; as duas coisas são essencialmente divergentes. E essa incompatibilidade reside fundamentalmente em que a religião é orientada, em suas práticas sociais, pela dimensão da promessa, ao passo que a psicanálise pretende apenas levar o sujeito ao encontro da verdade singular do próprio desejo.
Psicanálise e religião – desejo e promessa. Esse binômio pode ser multiplicado. A psicanálise e a religião não se dão. Porque a psicanálise (psico + análise) faz análise; a religião, síntese. A psicanálise desliga; a religião (do latim religare) liga. A psicanálise está do lado do inconsciente; a religião, do eu. A psicanálise está interessada no descentramento do sujeito; a religião, no seu centramento. Na psicanálise, trata-se do sujeito barrado; na religião, do indivíduo (in + dividuus = indivisível). Para a psicanálise, o sujeito é clivado; para a religião, ele é uno. A psicanálise tem a ver com o que é parcial; a religião, com o total. A psicanálise é “sexofílica”; a religião, não raro, “sexofóbica”. A psicanálise é arqueológica; a religião, teleológica. A psicanálise leva o sujeito a confrontar-se com o desamparo; a religião, pelo contrário, lhe oferece proteção. Mais! O que a religião e a psicanálise fazem com o real da castração é diferente. A religião vela, mascara, encobre, tampona a castração; a religião tapa o furo, obtura a falta, preenche o vazio, sutura a divisão, responde ao enigma, dá sentido ao sem-sentido, nomeia o inominável. A psicanálise… tudo ao contrário!
Admitir que há um problema – e um problema sério – entre a psicanálise e a religião não significa, porém, descartar o contato, o diálogo, a relação entre uma coisa e outra. Nas décadas de 1960 e 1970, por exemplo, chegou a haver 12 jesuítas – como o papa Francisco – na Escola Freudiana de Paris, o grupo de Lacan. E não me parece que esses senhores ignorassem as antinomias acima enumeradas. Mais recentemente, o também padre jesuíta Carlos DomínguezMorano publicou um livro intitulado: Psicanálise e religião (2000). O subtítulo da obra é Diálogo interminável. Sim, diálogo. Mas, interminável. Entre a psicanálise e a religião, não há possibilidade de síntese. Resta, pois, a manutenção de um questionamento mútuo. A relação entre a psicanálise e a religião está destinada a permanecer como questão sempre aberta. Ou seja, como um diálogo sem fim.
Por fim, a quinta e última frase: “A psicanálise é, ela mesma, uma religião”. Certa vez, o próprio Freud observou que o marxismo acabou ficando muito parecido com aquilo que combatia – ele pensava na religião. Não se poderia dizer o mesmo da psicanálise? Há, de fato, semelhanças não desprezíveis entre a psicanálise e a religião.
Embora possa parecer estranho, no movimento psicanalítico há “deuses”. Numa carta que escreveu a Pfister, em 26 de fevereiro de 1911, Freud fez referência à “deusa Libido”; em O futuro de uma ilusão (1927), por sua vez, ele falou em “nosso Deus Logos”. Há uma “Sagrada Escritura”: as obras completas de Freud ou os Escritos (1966) de Lacan, por exemplo. Há “dogmas”. Em Memórias, sonhos, reflexões (1961), Jung escreveu: “Tenho ainda uma viva lembrança de Freud me dizendo: ‘Meu caro Jung, prometa-me nunca abandonar a teoria sexual. É o que importa, essencialmente! Olhe, devemos fazer dela um dogma, um baluarte inabalável’. Ele me dizia isso cheio de ardor, como um pai que diz ao filho: ‘Prometa-me uma coisa, meu caro filho: vá todos os domingos à igreja!’”. Há “papas”. Certa vez, Binswanger perguntou a Freud por que Jung e Adler, os seus alunos mais antigos e, talvez, mais bem dotados intelectualmente, o deixaram. Freud respondeu que eles quiseram se tornar papas. Há “cardeais”. Em 1912, por iniciativa de Jones, após as dissidências de Adler e Stekel e durante a crise que terminaria com a defecção de Jung, foi instituído um comitê secreto com seis membros, verdadeiro “colégio de cardeais”, em torno de Freud. Há “profetas”. No Hospital Psiquiátrico de Burghölzli, onde Jung trabalhava, diziam que Freud era Alá, e Jung, o seu profeta. Também se comparou Jung a Jesus, e Freud a João Batista. Há “missionários”. Freud esperava que Jung promovesse a difusão da psicanálise para além dos meios judaicos em que ela se encontrava inicialmente confinada. Na expressão de Fromm, Jung seria uma espécie de “Paulo da nova religião”. Há “heresias”. Numa carta a Pfister, datada de 24 de janeiro de 1919, Freud descreveu como “heréticas” as opiniões do pastor sobre a constituição e o significado da pulsão sexual; em Um estudo autobiográfico (1925), Freud se referiu a Adler e a Jung como os dois “hereges”. Há “excomunhões”. A segunda cisão do movimento psicanalítico francês, aquela que excluiu Lacan, ocorrida em 1964, ficou conhecida como a “excomunhão”. Há “católicos” e “protestantes”. Pode-se comparar a Associação Internacional de Psicanálise à igreja católica e os lacanianos aos protestantes. De fato, a primeira, fundada pelo próprio Freud, tem um caráter oficial; o cisma lacaniano, por sua vez, resultou numa verdadeira pulverização do movimento psicanalítico. Há Weltanschauung (cosmovisão). Apesar do que Freud escreveu, a teoria psicanalítica pode perfeitamente funcionar como uma visão globalizante. Segundo François Roustang – que foi psicanalista e padre jesuíta –, há psicanalistas que só entendem de psicanálise; para eles, a psicanálise é tudo, um discurso totalizante, análogo ao discurso religioso.
Essa lista poderia ser aumentada: no movimento psicanalítico, há também “oráculos”, “anátemas”, “conversões”, “noviços”, “liturgia”, “moral”, “hierarquia”, “intolerância” etc. Mas o que acima está elencado já basta. Não parece haver nenhuma impropriedade em afirmar que a psicanálise, muitas vezes, tem funcionado como uma religião. Talvez isso explique, ademais, o ateísmo de muitos seguidores de Freud. São ateus porque professam outra espécie de “religião”.
Como se vê, as relações entre a psicanálise e a religião dão o que pensar. O que pensar, o que falar, o que escrever. São seis, portanto, e não apenas cinco, as minhas frases sobre a matéria. Mais uma: “Psicanálise e religião dá o que pensar”.
Ricardo Torri de Araújo
é padre jesuíta, professor do Departamento de Psicologia da PUC-Rio e autor de Deus analisado: os católicos e Freud (Loyola).
Fonte: Revista Cult - Ed. 190