por Verônica Mambrini
Quem tem tempo hoje em dia para segurar
uma porta aberta para alguém, dar passagem a outros carros num trânsito
cada vez mais maluco, ou cumprimentar as dezenas de pessoas que se chega
a encontrar num dia? É difícil ser gentil, mas mais difícil ainda é
conviver com a falta de gentileza dos outros. Principalmente ao dar com
uma porta fechada na cara, ter a lataria do carro amassada por um
apressadinho ou passar pela sensação de ser invisível. A ideia de que
ser gentil vale a pena e traz benefícios tem sido comprovada por
diversos estudos.
Além disso, vários projetos têm se dedicado a multiplicar essa virtude.
Esses pequenos atos fazem parte da
rotina do empresário Ricardo Christe, 36 anos. Quando chega a um
restaurante ou precisa ser atendido em um balcão, a primeira coisa que
faz é procurar o nome do atendente num crachá, para cumprimentá-lo. "Eu
acredito em melhorar como ser humano", diz. "A forma mais difícil de se
transformar é no cotidiano." Para ele, que olha com desconfiança a
sociedade cada vez mais ensimesmada, ouvir mais e se interessar por quem
está ao seu redor é o componente básico da gentileza. "As pessoas estão
tão ilhadas nos próprios problemas que não conseguem olhar em volta.
Todo o resto fica irrelevante", afirma Christe.
O professor de psicologia da
Universidade do Estado da Califórnia Robert Levine fez uma experiência
que comprovou que o cotidiano das grangrandes cidades não faz nada bem à
cortesia. Levine observou a relação entre pressa e gentileza em 36
cidades americanas, avaliando a frequência de gestos como devolver uma
caneta que caiu "acidentalmente", ajudar uma pessoa cega a atravessar a
rua ou colocar na caixa de correio uma carta "perdida". Nova York,
terceira cidade mais rápida no estudo, foi considerada a menos gentil.
RoRochester, no mesmo Estado, com um ritmo de vida bem mais lento, foi a
mais prestativa. A experiência está relatada no livro "A Geografia do
Tempo", de Levine.
Mas, afinal, vale a pena ser gentil?
Para a ciência, a resposta é sim. Em um estudo da Universidade da
Califórnia, a psicóloga Sonja Lyubomirsky pediu aos participantes que
praticassem ações gentis durante dez semanas. Todos registraram aumento
na felicidade durante o estudo. Os que praticaram ações variadas, como
se oferecer para ajudar a lavar a louça, fazer elogios ou segurar a
porta aberta para um estranho passar, registraram níveis mais altos e
prolongados de felicidade, em comparação com quem repetiu sempre a mesma
atitude com diferentes pessoas. "Gentileza e boa vontade estão
relacionadas à felicidade e as pessoas que tentam ser mais gentis no dia
a dia tendem a experimentar mais emoções positivas e se tornaram mais
alegres", afirma Sonja. O mecanismo que explica essa relação foi mais
esclarecido por um estudo da Universidade Hebraica, em Israel, de 2005. A
gentileza está ligada ao gene que libera a dopamina, neurotransmissor
que proporciona bem-estar.
Para algumas pessoas, ser gentil não é
uma escolha, mas um ofício. É o caso de Carlos de Sá Barbosa, 35 anos,
funcionário da Pel Consultoria, responsável pela segurança do Hospital
Copa d'Or, no Rio de Janeiro. "Trabalhamos com um público estressado.
Ninguém vai a um hospital a passeio", diz. Na rotina do supervisor de
segurança, sorrisos e ouvidos dispostos a escutar são fundamentais.
"Você está aqui para resolver o conflito, e não aumentá-lo", diz.
Existem técnicas para não estressar mais a pessoa, como nunca abordar um
cliente nervoso pedindo calma, sempre olhar nos olhos do interlocutor e
dar uma atenção especial a quem está mais exaltado. "Eu trabalho na
área da supervisão - lido com 55 funcionários sob minha
responsabilidade, além do público externo. Se não gostar de pessoas, não
dá certo", afirma Barbosa. Marcos Simões, da RH Fácil, empresa que
treinou a equipe do Copa d'Or, dá esse tipo de treinamento há 20 anos.
"As técnicas existem, mas é importante ter um interesse real no cliente e
saber ouvir com atenção", afirma. A gentileza profissional pode ter um
roteiro, mas sem envolvimento sincero não convence.
O professor de filosofia da Universidade
Presbiteriana Mackenzie Jorge Luiz Rodriguez Gutierrez prefere pensar
na gentileza não como um comportamento, mas como uma virtude. "Não só a
gentileza parece menos cultivada, mas em geral hoje não se fala muito
das virtudes. Parecem esquecidas", diz Gutierrez. Ele ressalta que ela só tem valor positivo quando associada a conceitos como generosidade ou misericórdia. "Em filmes, geralmente os nazistas que dirigem campos de concentração são gentis. Por si só, a gentileza é neutra", diz.
Para que essa virtude faça diferença, na
escola Projeto Vida, em São Paulo, ela é ensinada junto com valores
éticos e faz parte das atividades do dia a dia.
Cecília Fonseca, 5 anos, está aprendendo a compartilhar e a ser gentil.
"Quero que a Cecília saiba ouvir, que
possa falar, que saiba respeitar e conviver com os amigos", diz Edilene
Fonseca, 41 anos, mãe da menina. Todo dia, os pequenos podem levar
frutas de casa para oferecer aos colegas, em uma bandeja comunitária.
"As crianças pequenas são muito
egocentradas, é uma característica da faixa etária. O grande desafio é
fazê-las enxergar o outro", explica Mônica Padroni, coordenadora da
escola. "Damos um sentido maior à gentileza. A polidez é ligada à
convenção social, não ao respeito, à generosidade e à justiça, virtudes
que valorizamos."
Pesquisas sobre o valor da gentileza,
das boas maneiras e da educação na sociedade contemporânea e a promoção
desses valores é o principal objetivo da Iniciativa pela Gentileza, da
Universidade Johns Hopkins. "Podemos escolher a gentileza porque temos
livre-arbítrio. O problema é que você pode ter sido educado em condições
que não conduzem a isso", diz Pier Massimo Forni, coordenador do
projeto. "Por isso, a orientação e o exemplo dos pais são tão
importantes." O segundo livro do autor sobre o assunto, "The Civility
Solution: What to Do When People Are Rude" (A solução da gentileza: o
que fazer quando as pessoas são rudes, em tradução livre), está em
processo de tradução para o português. Para Forni, a gentileza é lançar
um olhar benevolente aos outros.
Nos anos 80, José Datrino, de túnica
branca e longa barba e conhecido como Profeta Gentileza, espalhava pelo
Rio de Janeiro inscrições como "Não usem problemas, não usem pobreza.
Usem amorrr e gentileza" (sic).
O pesquisador em filosofia e arte
Leonardo Guelman é autor de "Univvverrsso Gentileza", no qual analisa as
inscrições e conta a história de Gentileza. "Ele foi alguém que apontou
uma crise atual nas relações humanas, e propôs como alternativa a
gentileza", afirma Guelman. A mensagem está virando um projeto voltado
para jovens, em escolas públicas. "Criamos um material pedagógico para
ser trabalhado nos colégios, para gerar uma cultura da gentileza, sobre a
obra dele. A cidade tem que se humanizar", afirma Guelman. Como dizia o
Profeta, em sua frase mais famosa, "gentileza gera gentileza".
Fonte: ISTOÉ N° Edição: 2082
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Participe do nosso blog, comentando, compartilhando e deixando o seu recado.