quarta-feira, 16 de março de 2022

Sobre a Predestinação dos santos, de Santo Agostinho (por Leandro Bachega)

 

Resumo

O presente artigo pretende expor o contexto em que foram escritas as obras De praedestinatione sanctorum e De dono prerseverantiae (429), de autoria de Agostinho, bispo de Hipona (354-430), bem como analisar brevemente seu conteúdo. Os monges franceses Próspero e Hilário, preocupados com o avanço do semipelagianismo oriundo do mosteiro de João Cassiano, em Marselha, pedem ao bispo de Hipona um esclarecimento acerca da doutrina da salvação, do papel de Deus e do homem no processo em direção à fé, e explicações a respeito das capacidades humanas, após a Queda, sobre o conhecimento de Deus. A origem da questão, no entanto, era ainda consequência dos embates entre Pelágio e Agostinho, e continuava a desafiar o trabalho do bispo africano.

Palavras-chave: Pelagianismo; liberdade; graça; pecado original; semipelagianismo; predestinação.

Contexto histórico

Pelágio (360-418) foi um cristão leigo britânico, conhecido por seu zelo em relação à vida e conduta cristãs. Mudou-se para Roma no mesmo período em que Agostinho também se dirigia para a Itália, mas, ao contrário deste, permaneceu por cerca de 30 anos na capital do Império, até que o saque de Alarico à Roma e as constantes invasões subsequentes forçaram Pelágio e outros a fugirem da região. O religioso britânico primeiro desembarcou na África, passando por Cartago e pela Hipona de Agostinho, tendo finalmente se fixado em Jerusalém, junto com seu discípulo Celéstio.

A teologia de Pelágio afirmava que os homens eram capazes, por si mesmos, de resistir às tentações e levar uma vida santa. Era radicalmente oposta ao conceito da Queda[1] como condição que teria alastrado o pecado original por toda a humanidade, e que impedia a vontade humana acerca do início da fé (a esse respeito, não estava sozinho: a ideia do pecado original também não era aceita pela maior parte da igreja oriental[2]). Segundo sua doutrina, Adão havia sido criado mortal, e, portanto, este não morreu por conta de sua desobediência. Além disso, se as almas tinham origem no próprio Deus, no momento do nascimento de um ser humano, não seria correto afirmar que esta nova alma já viesse do seio divino contaminada pelo mal.

Da negação do pecado original, as demais doutrinas de Pelágio eram uma consequência lógica: enfatizavam firmemente o livre-arbítrio humano e que a “graça dependia, em parte, de um atributo natural da pessoa, em parte, da revelação da vontade de Deus através da lei”[3]. Graça, para Pelágio, era a liberdade humana e a lei divina: a possibilidade de decisão, diante da verdade cristã, dependia completamente do homem, não sendo necessária nenhuma intervenção divina anterior, e, se o homem cometia pecado, era por influência da sociedade corrompida, e não resultado de sua própria vontade degenerada.

Durante sua estada em Roma, Pelágio – “levado à ira por uma cristandade inerte, que se desculpava alegando fragilidade da carne e a impossibilidade do cumprimento dos mandamentos opressivos de Deus”[4] –, ficou incomodado com a indiferença dos cristãos em relação à pureza de suas vidas e, intrigado, passou a pesquisar o motivo da situação de descaso com a santidade da igreja. Quando leu a seguinte oração de Agostinho, nas Confissões (escritas a partir de 397), entendeu ter encontrado o motivo de tanto desdém por parte dos cristãos:

Mas toda a minha esperança está em tua misericórdia, sobremaneira grande. Concede o que ordenas, e ordenas o que queres. Prescreveste-nos a continência. E, quando percebi, disse alguém, que ninguém pode ser continente, se Deus não lho der, isso mesmo também era sabedoria, saber de quem vinha esse dom.[5]

Pelágio questiona a petição de Agostinho, pois não considerava que fosse necessária uma graça especial para que Deus capacitasse o homem a obedecer aos mandamentos. E, se Agostinho dizia que o pecado é inevitável, por que haveria o homem de ser responsabilizado por cometê-lo? Esse tipo de raciocínio estaria levando os cristãos a viverem uma vida devassa, uma vez que, se (entendiam que) não haviam sido tocados por Deus para a vida santa, por que se preocupariam em vivê-la, uma vez que isso lhes seria impossível? Pelágio não pensava da mesma forma: segundo o monge britânico, uma vez que as Escrituras requerem das pessoas que creiam, se arrependam e sigam os mandamentos, seria consequentemente lógico que essas mesmas pessoas tivessem a capacidade, por si mesmas, de responder aos preceitos do evangelho. Como vimos, Pelágio entendia por graça os dons já dados por Deus ao homem no momento de sua criação, ou seja, o livre-arbítrio, a razão, as Escrituras, dons que são oferecidos a todos os homens. Portanto, de acordo com Pelágio,

Se Deus ordena que as pessoas creiam em Cristo, então elas devem ter o poder de crer em Cristo sem a ajuda da graça. Se Deus ordena que os pecadores se arrependam, eles devem ter a habilidade de se inclinarem para obedecerem ao comando. A obediência não precisa, de forma alguma, ser “concedida”.[6]

Pelágio defendia três aspectos que eram inerentes à natureza humana: o poder (posse), oriundo de Deus; o querer (velle); e o realizar (esse) – sendo os dois últimos próprios do homem. Não aceitando a concepção do pecado original, Pelágio acreditava que a liberdade da vontade humana era o seu principal e supremo bem, a partir do qual o homem poderia prestar um culto voluntário a Deus. Essa mesma vontade poderia pender, a qualquer momento e igualmente, para o bem ou para o mal, sem que houvesse uma inclinação anterior e inerente para um dos lados: quando pecam, os homens são levados por influência de terceiros ou de demônios, mas o pecado, segundo Pelágio, era inclusive evitável.

Em Roma, a doutrina pelagiana pouco chamou atenção como heresia; na verdade, seu autor era um mestre reconhecido, e mesmo Agostinho havia tecido elogios a alguns de seus escritos[7]. A crise teve início quando Celéstio, discípulo de Pelágio, questionou o valor do batismo infantil em meio aos debates correntes em Cartago: calcado na doutrina de seu mestre, Celéstio negou que as águas batismais tivessem a função de perdoar ou transmitir a graça divina às crianças, uma vez que, acreditava, o homem nascia sem qualquer tipo de culpa intrínseca ou herdada de Adão. Teve frustrada sua tentativa de tornar-se sacerdote, sendo denunciado como propagador de heresia pelo sínodo realizado em Cartago entre 411 e 412. Juntamente com outros cinco bispos, Agostinho enviou um relatório a respeito da doutrina pelagiana ao papa Inocêncio I, que, apoiado pela decisão do Concílio de Cartago (417), condena Pelágio e Celéstio por heresia[8]. Pouco mais tarde, em sua obra De gratia Christi et de peccato originali (Sobre a graça de Cristo e o pecado original) (418)[9], Agostinho expôs os ensinos e contradições de Pelágio e Celéstio.

A resposta de Agostinho se fez, primeiramente, pela defesa do pecado original e pela incapacidade (por consequência da Queda) da vontade humana de dirigir-se voluntariamente em direção a Deus. Essa abordagem pode ser vista tanto na leitura que Agostinho faz dos textos bíblicos – principalmente dos escritos paulinos – quanto em sua própria experiencia de conversão (“[…] via a lei sem poder cumpri-la. E não apenas viu a lei, mas viu a lei cumprida sob seus olhos por outros, enquanto, com toda sua alma desejando imitá-los, foi necessário confessar-se incapaz”)[10], na qual Agostinho aparece relutante, descrente, até ser convencido pelos sermões de Anselmo e pela profunda angústia que sentia, aplacada somente no momento em que se entrega ao chamado divino.

Se a vontade humana está condenada e é incapaz de, por meios próprios, buscar o auxílio divino, deduz Agostinho, o livre-arbítrio[11] é irreal: o otimismo pelagiano é aqui substituído por um pessimismo[12] em relação às capacidades e intenções do homem. Com isso, Agostinho concebe a graça como a intervenção de Deus na vontade humana, que é regenerada e passa a desejar, crer e obedecer aos mandamentos divinos. Por conseguinte, a vontade restaurada, a razão dirigida e a capacidade para observar os mandamentos divinos são todos frutos diretos da graça de Deus. Em uma de suas cartas, o bispo de Hipona deixa clara a sua opinião a respeito da intervenção divina como único acesso a Cristo:

Qual homem, refletindo sobre sua fraqueza, ousaria atribuir sua castidade e inocência às suas próprias forças, amando-te menos, como se não lhe fosse tão necessária sua misericórdia, pela qual redimes os pecados a quem se converte a ti? Não me despreze, pois, quem, chamado por ti, seguiu tua voz e evitou os pecados que lê em minhas lembranças e confissões (…)[13]

Outra questão trazida por Agostinho – implícita no trecho acima – é a predestinação dos santos. Se é Deus quem regenera a vontade dos homens e os chama para si, mas nem todos apresentam a inclinação para a beata vita, a conclusão é a de que Deus escolhe aqueles a quem concederá graça, sem nenhuma condição prévia senão a misteriosa vontade divina. Se todos os homens nascem em condição de pecado, e isso os separa da santidade de Deus, a condenação eterna é a aplicação da justiça divina; contudo, àqueles que foram escolhidos, Deus concede misericórdia:

Esta é a predestinação dos santos e não outra coisa, ou seja, a presciência de Deus e a preparação dos seus favores, com os quais alcançam a libertação todos os que são libertados. Os demais, porém, por um justo juízo divino, são abandonados na massa da perdição, onde foram abandonados os tírios e os sidônios, os quais também poderiam crer, se tivessem presenciado os maravilhosos sinais de Cristo. Mas como não lhes foi dado crer, foi-lhes negada a motivação da fé.[14]

Agostinho explicitou sua polêmica posição em diversas obras e cartas, principalmente após a controvérsia com Pelágio e a avaliação da igreja. Contudo, suas doutrinas não haviam sido totalmente aceitas pelo clero cristão, mesmo depois da condenação do pelagianismo pelo poder central. No norte da África, foi necessário que Agostinho escrevesse cartas ao mosteiro de Hadrumeto, próximo a Cartago, para esclarecer seu posicionamento, pois o conceito de predestinação trouxe dúvidas a muitos cristãos. O conjunto de cartas é hoje conhecido como a obra De gratia et libero arbítrio (A graça e a liberdade), de 427, e os questionamentos se referiam à liberdade humana, à eleição divina, ao papel da graça, e como tudo isso se relacionava na salvação dos homens.

No entanto, de todos os seus escritos a respeito da eleição divina, De praedestinatione sanctorum (Sobre a predestinação dos santos) e De dono prerseverantiae (Sobre o dom da perseverança), ambos de 429, são os que mais oferecem explicações a respeito do assunto – e também as últimas publicações do bispo de Hipona. Os livros foram escritos a pedido de dois monges franceses, Próspero e Hilário, em reação à disseminação do pelagianismo em um monastério em Marselha, onde o monge João Cassiano (considerado o precursor do monasticismo ocidental) procurava equilibrar as doutrinas de Agostinho com a pregação de Pelágio, defendendo que, embora os homens fossem carentes da graça divina, caberia ao indivíduo o passo em direção a Deus, em direção à conversão – a graça seria útil na evolução da vida cristã, mas não caberia a ela a iniciativa da fé. Essa posição ficou conhecida como semipelagianismo, dada a sua proximidade com o pensamento de Pelágio.

A disputatio entre semipelagianos e agostinianos não acabou com os escritos de Agostinho. O bispo italiano Juliano de Eclano deu continuidade à polêmica, posicionando-se, desde o início, a favor de Pelágio e debatendo com um Agostinho idoso e preocupado com a invasão de Hipona pelos vândalos; ele morreria em 430, com uma resposta inacabada a Juliano. A discussão teológica, porém, continuou viva no seio da igreja até o Concílio de Orange, em 529, quando o semipelagianismo foi finalmente condenado como heresia, embora a Igreja Católica nunca tenha aderido à totalidade das doutrinas defendidas por Agostinho.

Análise das obras

A predestinação dos santos conserva teor pastoral e teológico. Nela, Agostinho procura esclarecer importantes doutrinas da fé cristã, que àquela altura da vida da igreja, ainda estavam em formação. O bispo começa dizendo que havia tratado muitas daquelas questões em escritos anteriores, mas atende aos irmãos de fé franceses, detalhando a forma como entendia a ação divina na salvação humana. Essas explicações são ricamente baseadas em suas interpretações de passagens da Bíblia – principalmente das epístolas paulinas –, e do pensamento de grandes vultos do passado recente da igreja (como Santo Ambrósio e São Cipriano de Cartago).

Durante a obra, Agostinho esclarece pontos de interesse teológico – tais como a diferença entre predestinação e graça, a natureza da fé, o destino das crianças que morrem sem o batismo[15]–, interpreta passagens das Escrituras a partir de sua exegese e reafirma como tudo o que há de bom na vida do cristão é oriundo da graça divina – e não de méritos, ou de boas ações que, por presciência, Deus saiba que o crente fará. Agostinho faz ainda um mea culpa por, no passado, ter pensado e escrito de forma semelhante a seus adversários, como já havia registrado em suas Retratações.

A primeira preocupação de Agostinho é esclarecer como se dá o princípio da fé. O bispo de Hipona reafirma a incapacidade da vontade humana para que se dirigisse a Deus (ou ao bem), e que Deus escolhe incondicionalmente homens e mulheres, a quem concede a graça. Os escolhidos têm, então, suas vontades regeneradas, tornando-se capazes de escolher a verdade e agir de acordo com ela, ou seja, a vida convertida a Cristo e a consequente salvação após a morte. A fé, portanto, é um dom de Deus, dada sem nenhum merecimento prévio por parte do indivíduo[16], contrariamente à crença pelagiana de que “a graça de Deus é-nos concedida de acordo com nossos méritos”[17].

É importante salientar aqui como a epistemologia agostiniana tem impacto sobre sua teologia. A razão tem um papel fundamental na busca pela verdade (isto é, Deus); no entanto, Agostinho estabelecerá seu alcance. Ela pode e deve investigar e deduzir a verdade, mas aí repousa seu limite. Mesmo os filósofos pagãos, desprovidos de fé, intuíram, e todos os homens podem, por meio da investigação racional, chegar à conclusão da existência de Deus, sem que com isso creiam: a verdade é um dado revelado (por meio da fé), e sua posse resulta não somente em um conhecimento, mera especulação filosófica, mas em uma vivência e conversão.

Quem não vê que primeiro é pensar e depois crer? Ninguém acredita em algo, se antes não pensa no que há de crer. Embora certos pensamentos precedam de um modo instantâneo e rápido a vontade de crer, e esta vem em seguida e é quase simultânea ao pensamento, é mister que os objetos da fé recebam acolhida depois de terem sido pensados. Assim acontece, embora o ato de crer nada mais seja que pensar com assentimento. Pois, nem todo o que pensa, crê, havendo muitos que pensam, mas não creem; mas todo aquele que crê, pensa, e pensando crê e crê pensando.[18]

A filosofia agostiniana está intimamente ligada à sua vida, descrita em detalhes por ele mesmo, na primeira autobiografia da história, o livro Confissões. Sua intenção era alcançar a sabedoria, e, nesse intento, enveredou-se por algumas doutrinas populares em sua época. No cristianismo, Agostinho descobre que a verdade está atrelada à beata vita, à beatitude e vida feliz, e que é alcançada mediante uma graça divina especial que restaura o querer humano, corrompido pelo pecado e inclinado somente ao mal. A vontade de crer, da qual Agostinho fala, é o caminho que leva do limite da razão e intelecção (o pensar) à verdade propriamente dita.

Quanto ao conceito de graça, embora Agostinho não nos dê uma definição exaustiva, parece querer explicar toda boa dádiva que Deus dá aos homens, “a presença e o poder divino atuante e, consequentemente, presente no mundo”[19]. Estabelece uma diferenciação entre a “graça que distingue os bons dos maus, não a que é comum aos bons e aos maus”, reconhecendo que mesmo eleitos recebem dádivas divinas, como os bens da terra, a saúde, e são beneficiados por uma ordem moral que ainda habita os homens, a despeito de sua condição corrompida: “deixado a si mesmo, o homem possuiria propriamente apenas o poder de fazer o mal, a mentira e o pecado”.[20] Contudo, devido à graça de Deus,

Permanece no homem (…) um pensamento que, embora entrevado, continua capaz de conhecer o verdadeiro e de amar o bem, ao adquirir progressivamente, por um exercício lento, as artes, as ciências e as virtudes; porque há virtudes naturais mesmo no homem decaído. Alguns romanos, por exemplo, fizeram prova de força, de temperança, de justiça ou de prudência[21]. É necessário ver nisso igualmente vestígios de uma ordem destruída, ruínas cuja subsistência torna possível uma restauração e que Deus conserva com esse fim; em todo caso, quer se trate de um resto de disposição habitual à virtude ou de uma força excepcional para executar um ato heroico, elas são um dom de Deus no homem que as realiza ou que as testemunha.[22]

O tema que perpassa a discussão e as obras, além da graça, é a liberdade, e a base de cada uma das posições está em sua antropologia. Agostinho propõe uma humanidade cujas capacidades intelectivas e volitivas foram comprometidas. Se, em seu estado de natureza, o homem podia não pecar (pois possuía um livre-arbítrio íntegro, conforme Deus o criara), após a Queda, sua natureza corrompida o forçava a não poder não pecar; uma vez agraciado com a fé, o homem não pode pecar, pois Deus o esclarece a respeito do bem e do mal, e o ajuda a guardar-se do último[23].

É disso que trata o livro Sobre o dom da perseverança, obra que complementa Sobre a predestinação dos santos, ainda respondendo àqueles que defendiam ser o homem capaz tanto de iniciar a sua fé, quanto de manter-se nela. Segundo Agostinho, quando um indivíduo é eleito, Deus garante, também por meio de sua graça, que o crente permaneça em uma vida pia e santa, ou seja, que persevere no cumprimento da vontade de Deus, revelada nas Escrituras. A seus opositores, o bispo de Hipona demonstra, por meio da oração de Cristo, como a perseverança é um dom que os cristãos pedem a Deus (“e não nos exponhas à tentação, mas livra-nos do Maligno”), afirma que a pregação do evangelho não é invalidada por causa da predestinação, nem leva o cristão a um estado de estagnação espiritual.

Conclusão

A ideia de graça, de predestinação e de incapacidade humana para dirigir-se a Deus, tal qual Agostinho escreveu, não é plenamente aceita pela Igreja Católica[24]. Os herdeiros mais diretos das doutrinas agostinianas foram Lutero e Calvino[25], e, posteriormente, o movimento jansenista. No entanto, em recentes publicações, os dois últimos papas citam os perigos do pelagianismo para a vida cristã. O Papa emérito Bento XVI fala do “pelagianismo dos piedosos” em sua obra Guardare Cristo: esempi di fede, speranza e carità, de 2009, e critica religiosos que buscam justificação por meio de suas obras de caridade. Já o Papa Francisco alertou recentemente para os perigos do neopelagianismo:

“Prolifera em nossos tempos um neopelagianismo em que o homem, radicalmente autônomo, pretende salvar-se a si mesmo sem reconhecer que ele depende, no mais profundo do seu ser, de Deus e dos outros. A salvação é então confiada às forças do indivíduo ou a estruturas meramente humanas, incapazes de acolher a novidade do Espírito de Deus”.[26]

O homem contemporâneo acredita em sua autossuficiência, ao mesmo tempo em que se sente sozinho, cegado por um otimismo pelagiano. O historiador Michael Oakeshott fala de um estilo de política “pelagiano”, que procura a salvação na terra por meio de uma possível e progressiva perfeição da humanidade, através de seu próprio esforço[27]. Agostinho, por outro lado, apadrinha aqueles que nutrem reservas em relação ao homem, às suas capacidades. Diz o verso bíblico que é “maldito o homem que confia no homem”[28]; o bispo de Hipona acreditava tanto nisso que começou as suspeitas a partir de seu próprio eu.

Bibliografia

AGOSTINHO. A Graça I. São Paulo: Paulus, 1998.

AGOSTINHO. A Graça II. São Paulo: Paulus, 2002.

AGOSTINHO. Confissões. Tradução de Lorenzo Mammì. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017.

BÍBLIA – Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

BETTERSON, H. Documentos da igreja cristã. São Paulo: ASTE, 2001.

BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 2017.

COSTA, M. R. N. Introdução ao pensamento ético-político de santo Agostinho. São Paulo: Loyola, 2009.

FITZGERALD, Allan (Org.). Agostinho através dos tempos. Tradução de Cristiane Negreiros Ayoub, Heres Drian de O. Freitas. São Paulo: Paulus, 2018.

GILSON, Etienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. Tradução de Cristiane Negreiros Ayoub. São Paulo: Paulus, 2006.

HARNACK, Adolph. History of dogma. New York: Dover, 1961.

LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola, 2011.

MCBRIEN, Richard P. Os papas: os pontífices de São Pedro a João Paulo II. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

OAKESHOTT, Michael. A política da fé e a política do ceticismo. Tradução de Daniel Lena Marchiori Neto. São Paulo: É Realizações, 2018.

OLSON, Roger. E. História da teologia cristã: 2000 anos de tradição e reforma. Tradução de Gordon Chown. São Paulo: Editora Vida, 2001.

SPANNEUT, Michel. Os padres da igreja: séculos IV-VIII. Tradução de João Paixão Netto. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

SPROUL. R. C. Sola Gratia: o debate sobre o livre-arbítrio na história. Tradução de Mauro Meister. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001.


[1] Segundo a doutrina do pecado original, após o pecado de Adão, todos os seus descendentes tiveram a vontade corrompida. Adão tinha liberdade na vontade para pecar ou evitar o pecado, mas, após sua Queda em pecado, ele e seus descendentes passaram a ser escravos de uma vontade sempre enviesada para o mal e, principalmente, incapaz de dirigir-se (querer) a Deus.

[2] “(…) toda a igreja oriental mantinha um conceito essencialmente sinergístico do relacionamento entre Deus e os seres humanos na salvação, no qual a graça exercia o papel de destaque, mas a decisão e esforço humanos deviam cooperar com a graça para resultar na salvação”. OLSON, Roger. E. História da teologia cristã: 2000 anos de tradição e reforma. Tradução de Gordon Chown. São Paulo: Editora Vida, 2001, pg. 286.

[3] Idem, pg. 272.

[4] HARNACK, Adolph. History of dogma. New York: Dover, 1961, pg. 174.

[5] AGOSTINHO. Confissões. Tradução de Lorenzo Mammì. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017, pg. 278.

[6] SPROUL. R. C. Sola Gratia: o debate sobre o livre-arbítrio na história. Tradução de Mauro Meister. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, pg. 30.

[7] “Agostinho sempre rendeu belos tributos às exortações de Pelágio: elas se destacavam por ser ‘bem redigidas e diretas’, por sua ‘facundia’ (eloquência) e sua ‘acrimonia’ (acidez)”. BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 2017, p. 426.

[8] Mais tarde, o papa Zósimo, que substitui Inocêncio, revoga a condenação de Pelágio e Celéstio; contudo, tempos depois, Zósimo cede à pressão dos bispos africanos (que apelaram ao imperador Honório) e volta atrás em sua decisão. Agostinho insistiu que Zósimo enviasse às igrejas do ocidente e do oriente um documento (chamado Epistula tractoria) que condenasse os pelagianos. BETTERSON, H. Documentos da igreja cristã. São Paulo: ASTE, 2001.; MCBRIEN, Richard P. Os papas: os pontífices de São Pedro a João Paulo II. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

[9] Outras obras de Agostinho que tratam da questão pelagiana são Do Espírito e da letra (412), Da natureza e da graça (415) e Da graça e do livre-arbítrio (427).

[10] GILSON, Etienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. Trad. Ayoub, C. N. A. São Paulo: Paulus, 2006, p. 300.

[11] No entanto, nem sempre Agostinho pensou assim. Em sua obra O livre-arbítrio (388), Agostinho admitiu que o homem possui livre-arbítrio e capacidade para buscar a Deus de forma voluntária (sinergismo); posteriormente, reconhece o equívoco e passa a abordar toda a conversão como fato iniciado e consumado por Deus (monergismo).

[12] Lima Vaz reforça o impacto da obra epistolar paulina e demais Escrituras como fundamentais para a compreensão de Agostinho acerca do pecado original, recusando as acusações de influência maniqueísta em seu pensamento: “Alguns críticos quiseram ver nos traços pessimistas da visão agostiniana do homem uma influência persistente do maniqueísmo ao qual Agostinho aderiu em sua juventude. Essa interpretação, no entanto, é dificilmente aceitável, em primeiro lugar pelo caráter radical da crítica a que Agostinho submeteu a doutrina maniqueísta e, em segundo lugar, pelo fato de que o pessimismo em Agostinho não tem nenhum resquício dualista, pois envolve o homem todo, sendo igualmente o homem todo objeto do desígnio e da ação salvífica de Deus”. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola, 2011, p. 67.

[13] AGOSTINHO. Confissões. Tradução de Lorenzo Mammì. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017, pg. 69.

[14] AGOSTINHO. De praedestinatione sanctorum. XIV, 35.

[15] Segundo Agostinho, toda a descendência de Adão foi contaminada pelo pecado, e isso naturalmente não exclui as crianças, que já nascem propensas ao pecado (Confissões, I, 7; A natureza e a graça, VIII, 9). O batismo, contudo, é um meio de graça para perdão de pecados. Agostinho entendia que o batismo, ministrado pela igreja, era a ação que removia os pecados do convertido, assim como das crianças. Portanto, entendia, as crianças batizadas antes da morte eram salvas.

[16] Aqui, Agostinho ecoa fortemente a passagem da epístola de São Paulo aos Efésios 2.8,9: “Pela graça fostes salvos, por meio da fé, e isso não vem de vós, é o dom de Deus: não vem das obras, para que ninguém se encha de orgulho”, entre outras, que permeiam toda a obra.

[17] AGOSTINHO. De praedestinatione sanctorum. II, 3.

[18] Idem, p. 153.

[19] FITZGERALD, Allan (Org.). Agostinho através dos tempos. Tradução de Cristiane Negreiros Ayoub, Heres Drian de O. Freitas. São Paulo: Paulus, 2018, p. 463.

[20] GILSON, Etienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. Tradução de Cristiane Negreiros Ayoub. São Paulo: Paulus, 2006, p. 288.

[21] Etienne Gilson se refere aqui às “quatro virtudes cardeais gregas”, as quais Agostinho converteu em virtudes morais cristãs. Ver COSTA, M. R. N. Introdução ao pensamento ético-político de santo Agostinho. São Paulo: Loyola, 2009, p. 67.

[22] GILSON, Etienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. Tradução de Cristiane Negreiros Ayoub. São Paulo: Paulus, 2006, p. 287, 288.

[23] Conforme Agostinho em sua obra A correção e a graça, cap. 33. AGOSTINHO. A Graça II. São Paulo: Paulus, 2002, p. 119.

[24] “Tanto Lutero quanto Jansênio hauriram honestamente de sua obra a maioria de suas teses, e a Igreja Católica jamais fez seu cada pormenor de cada obra de Agostinho. Mas continua sendo verdade que esse doutor deu à graça um lugar central no cristianismo ocidental e que é o maior especialista nesse assunto em toda a história da teologia antiga”. SPANNEUT, Michel. Os padres da igreja: séculos IV-VIII. Tradução de João Paixão Netto. São Paulo: Edições Loyola, 2002, pg. 219, 220.

[25] Martinho Lutero era um monge agostiniano, e Agostinho foi o autor mais citado pelo teólogo João Calvino em seus escritos.

[26] Disponível em: http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20180222_placuit-deo_po.html#_ftn5. Consulta em 10/04/2020.

[27] OAKESHOTT, Michael. A política da fé e a política do ceticismo. Tradução de Daniel Lena Marchiori Neto. São Paulo: É Realizações, 2018.

[28] Jeremias 17.5.

 

Artigo publicado originalmente em: https://offlattes.com/archives/6078

sexta-feira, 4 de março de 2022

A poesia é (d)ele: 41 anos de carreira de Luis Augusto Cassas

 


Por Rogério Rocha
 
 

Luís Augusto Cassas [São Luís – MA, 02 de março de 1953] começou a destacar-se no cenário de nossa literatura com a geração dos anos 70 do século passado. Ao seu lado estavam nomes como Cunha Santos, Chagas Val e Alex Brasil. Uma época que presenciou o aparecimento do movimento Antroponáutico e da nova poesia do Maranhão, trazendo nomes como Viriato Gaspar, Valdelino Cécio, Morano Portela e, posteriormente, Rossini Corrêa e Laura Amélia Damous.

A figura de Augusto Cassas ajudou a consolidar o modernismo na literatura maranhense, preparando, então, terreno para as mudanças que implicariam na recepção dos novos referenciais da linguagem que teriam lugar na poesia pós-moderna do século XXI.

Trata-se, na verdade, de um daqueles autores que cresceram ao ponto de não mais caber nos parcos limites de sua própria cidade. O abandono da vida provinciana (que em nossa terra teima em persistir) foi, quem sabe, a declaração de independência que ajudou a fazer de sua obra um monumento de requintada arquitetura, alçando seu nome ao âmbito nacional.

Com o êxito alcançado em face do reconhecimento – vindo tanto da parte dos críticos quanto de seus pares - afirmou-se como um escritor de DNA contemporâneo. Traço que, aliás, é elemento constitutivo de sua vasta produção, alinhada com o mundo, suas novidades e tendências, arriscando-se nos experimentos que entendeu necessários sem, contudo, perder a força das características de estilo, já demonstradas em seu “República dos becos” (1981, Civilização Brasileira).

Enquanto Cassas promovia a busca poética da essência do humano e o estabelecimento de um equilíbrio entre imanência e transcendência, sagrado e profano, carnal e espiritual, vimos surgir, por exemplo, trabalhos como “Rosebud”, “Liturgia da Paixão”, “Ópera Barroca”, “O Shopping de Deus & a Alma do Negócio”, “Deus Mix: Salmos Energético de Açaí c/ Guaraná e Cassis” e “Evangelho dos Peixes para a Ceia de Aquário”.

Poeta com mais de 24 livros publicados, cuja escrita apresenta efeitos ora psicoterapêuticos, ora cinematográficos, é astro de primeira grandeza, traçando, “a serviço da luz e do verso”, nas entranhas do seu mundo, a órbita de um lirismo que a si mesmo coube instituir. Eis aí Luís Augusto Cassas, numa definição que dá conta, não só, da importância de sua bibliografia e do seu percurso literário, mas também de sua filosofia de vida.

O escritor, que aniversaria este mês, traz na bagagem, além da existência – que, ao longo do tempo, tem-lhe deixado “mais leve e mais livre” – todo um conjunto de símbolos, imagens, eus, espaços, vivências, sentimentos e ideias.

Por fim, e para mostrar que a tarefa do autor está bem longe do seu encerramento, ao ponto de, inclusive, ainda render bons frutos, merecem destaque as obras “Paralelo 17” e a novíssima “Quatrocentona: Código de Posturas & Imposturas Líricas da cidade de São Luís do Maranhão”, lançada no ano de 2021 pela Arribaçã Editora.

São 41 anos de carreira dedicados ao ofício de compreender o mundo através da poesia (esse alimento de toda alma inquieta), em busca de verdades essenciais e da possibilidade imprevisível de um reencantamento do olhar, cuja via parece encontrar-se na simbiose homem-verso.

domingo, 9 de janeiro de 2022

OS 20 LIVROS MAIS VENDIDOS EM 2021

LISTA DE LIVROS MAIS VENDIDOS

Fake News. Modernidade, Metodologia e Regulação - 2ª Edição (2021)

Associado Amazon: rhcrmeusite74-20

 

A digitalização dos conteúdos e a expansão do mundo tecnológico vinculado à internet está mudando o Estado e a sociedade. As novas possibilidades de desenvolvimento comunicativo ampliam os espaços de liberdade, mas também criam riscos, incluindo a divulgação de 'fake news'. 

Paulo Brasil Menezes, de forma clara e diferenciada, analisa essas manifestações e estuda a capacidade que a desinformação tem de deturpar o ecossistema do discurso on-line, bem como de dificultar o funcionamento dos processos democráticos. 

O autor aborda, ainda, novas reflexões sobre a possibilidade e a necessidade de sua regulação jurídica, incluindo, em particular, a autorregulação regulada. Eis aqui, portanto, uma ótima sugestão de obra da área jurídica que traz um tema abrangente e atual, que interessa a todos, devendo, por isso receber a atenção da ciência do direito e dos pesquisadores da academia.

 Se você tem interesse em adquirir o livro, é só clicar no link abaixo.  

 


sábado, 8 de janeiro de 2022

O LIVRO DA LITERATURA - Introdução à Literatura Universal

O livro da literatura é uma viagem pelas grandes obras da humanidade, desde a Ilíada à Paixão Segundo G. H., e explora os romances, os contos e as poesias mais importantes de cada época.

Uma obra de divulgação literária que vale a pena ter em sua estante.

Vai perder a chance de tê-la em casa? COMPRE clicando no link ABAIXO e boa leitura!

GRANDES LIVROS EM OFERTA NA AMAZON

Essa informação é pra você que quer comprar LIVROS e renovar a lista de leitura pra 2022.

A Amazon está com vários livros em OFERTA. Quer ver? Tem livros BARATOS mesmo!

Corra lá, ESCOLHA e COMPRE os seus!

Para isso, basta acessar o link disponível aqui embaixo e boas compras.

click aqui para os livros em oferta Amazon


terça-feira, 2 de novembro de 2021

PERDIDOS NA NOITE (um conto de Rogério Rocha)

Foto tirada no(a) Rua Grande por Ernanig em 10/11/2013  

 Foto: Internet - Foursquare

 

 

Zé Lipaté e Maninho voltavam do Reviver em altas horas. Madrugada de bêbados no Centro velho da cidade. Hippies, prostitutas, gays e turistas haviam ficado para trás. Passavam já do Largo do Carmo e iam a passos rápidos rumo a suas casas, quando resolveram atravessar a Rua Grande. Queriam chegar à Rua do Passeio. Depois desceriam para as bandas da Madre Deus, onde moravam.

No meio da maior rua do comércio popular de São Luís, deserta àquela altura, conversavam sobre os resquícios da noitada, o som na galeria em que estavam, umas garotas que encontraram por lá, quando viram sair do canto da rua Godofredo Viana um velho muito feio. Um traste fedorento que assustou os dois amigos ao pigarrear e cantar uma música das antigas, ao passo em que seguia, um tanto manco, o rumo da calçada da dupla, chegando perto e perguntando:

- Quê qui cêis fazem três horas da madrugada no meio da rua, ças crianças? Cês são muito pepêto pra dar banda em minha área mora dessas!

- Porréessa, rapá! Pra lá, mala velha! – disse Lipaté, espantado.

- Ignora, brodi! Ignora! – retocou Maninho.

- Mas gente, cês passaqui assim de boa, sem me prestá menage!?

- Ménage???Ménage é o carai! Tira logo pra fora fedô! – esbravejou Maninho.

Os dois seguiam seus rumos em passos ainda mais rápidos, no sentido da Rua do Passeio, que, infelizmente, parecia que nunca chegava.

Lá pelo meio da Rua Grande eram ainda seguidos pelo habitante da noite, que ora ia pra um lado, ora pra outro, chafurdando com os garotos, rindo e tombando sem perder o passo do acompanhamento.

Maninho então pensava de si para si enquanto olhava de esguelha o amigo de jornadas, tentando, também às pressas, encontrar um modo de se livrar daquele traste.

- Peste, capa o gato que é! Tá me enchendo já! Se tu não fô imbora logo eu juro que te jogo dentro da fogueira santa de Israel. Copiou? – falou sério Lipaté.

- Ouviu aí, né?! – reforçou Maninho.

- Vou secês dé um quarqué cois pra mim. Um mimo quarqué já vale. Senão vô continuá companha cês atééééé...

Os amigos bêbados entreolharam-se ao lembrarem da metade de um litro de catuaba que havia dentro da mochila de Maninho. Rápido a retiraram de dentro e a ofereceram para o enjoado.

- Toma, pô! Taí, ó! Taí! É da boa, viu! Pode bebê quinda tem metade da garrafa.

Recebendo a garrafa nas mãos e soltando um grito de contentamento, pulou de euforia, gargalhou e chamou umas perdidas que estavam ali por perto e, do nada, saíram, quase ao mesmo tempo, de ruas transversais por onde haviam acabado de passar. Naquela hora, surgiram duas desgrenhas da mesma qualidade do amargoso, juntando-se aos três, logo após.

Ao tempo em que aquelas criaturas começaram a disputar a pobre garrafa de catuaba, Maninho e Lipaté trataram de correr. Saíram a todo gás, com medo do que poderia vir depois. Deixaram para trás os funestos habitantes do nada no meio do silêncio da Rua Grande.

Depois de chegarem nas imediações do Hospital Socorrão I, cansados, mas sorridentes, os jovens trocavam gozações.

- Porra, Mano! Agora temo história pacontá, ó! Tá doido, doido!

- Rapá, ças coisas só acontece com a gente mesmo! Vou te dizê!

- Não é ??!!! Mas daqui pra ali agora é na fé, bicho. Depois dessa o caminho tá limpo e é todo nosso.

- Tá é certo, ó! Depois duma porra dessa, o quê de ruim pode acontecer, né!?

Instantes depois de virem ao mundo o som dessas palavras, viram surgir do rumo do Caminho da boiada um homem com um charuto na boca, barba branca e chapéu na cabeça, que resolveu ficar encostado no canto do edifício Malvina Aboud. Parou e permaneceu lá – justamente onde passariam – olhando em suas direções. Enquanto isso, as luzes dos postes das redondezas começaram a piscar. 

Pelo jeito, a noite ainda lhes traria algumas emoções.

domingo, 31 de outubro de 2021

O ENCONTRO DE OUTONO (um conto de Rogério Rocha)

vienna monovisions | David Weintraub
Foto: David Weintraub - Internet


O ano de 1919 trouxe a Viena um início de inverno moderado, com temperaturas que muito lembravam a do recém-findado outono.

Com os treze graus centígrados daquela manhã nublada, o consultório do respeitado doutor era um abrigo mais que bem-vindo.

Chegou na hora marcada. Na rua pouco movimentada, ficou a observar os relógios na vitrine de uma loja no prédio ao lado do seu destino. Por alguns poucos minutos titubeou, não sabendo se entrava ou não. Da calçada divisou, ao final da avenida, a catedral gótica da cidade. Com uma expressão congelada no rosto, ouviu o primeiro toque do sino, que badalava as três horas da tarde.

Respirou fundo, tirou o chapéu, encarou a porta diante de si, bateu levemente e, logo a seguir, pode entrar.

Sem perder tempo, mas com grande discrição, apresentou-se à secretária na antessala e, após a confirmação do seu nome, dirigiu-se ao consultório. O gabinete do médico neurologista, iniciador de pesquisas sobre novas técnicas para a compreensão da psique humana, era sóbrio e acolhedor, com uma decoração clássica, alguns pequenos quadros na parede, tapetes persas, mobília de madeira em tons amarronzados, com uma estante cheia de livros e prateleiras que continham pequenas peças de arte africana, asiática e outros minúsculos elementos cênicos.

O doutor cumprimentou seu novo paciente com um breve aceno de cabeça e logo estendeu o braço, apontando-lhe o divã.

Após tirar o casaco e acomodá-lo num local apropriado, o jovem escritor deitou-se no local indicado. Fora do seu campo de visão, o médico encontrava-se calmamente sentado em sua poltrona, com um caderno de anotações ao lado de uma pequena mesa. Na ocasião, orientou o paciente a falar com liberdade o que lhe viesse à mente, sem se importar com narrativas lineares.

Após acender um charuto, o analista perguntou-lhe:

- Sente-se confortável?

- Aqui, deitado? Sim, estou bem! – respondeu com um semblante tenso.

- E para falar? Está pronto?

- Depende! Sobre o que devo falar primeiro?

- O que quiser. Sinta-se livre para começar. Quero que caminhes até sua verdade.

- Minha verdade! Talvez ela esteja escondida dentro do meu medo. Do medo de mim, da vida que tenho levado, do meu futuro e... do meu pai.

Enquanto o jovem falava sobre suas angústias e desejos, o terapeuta via surgir, em meio às verbalizações carregadas de tensão, sinais de um conflito existente com a figura paterna.

Ouvia os relatos do paciente sem intervir. Vez por outra, contudo, pedia um breve esclarecimento sobre algum ponto ou fazia questionamentos bem sintéticos, a fim de ajudá-lo a lidar com os incômodos. Afinal, havia um peso na narrativa daquele homem. Era como um fardo gigante, um estado de permanente sofrimento que decorria de traços de sua história familiar e que seu analista buscava atentamente identificar em algum ato falho ou lapso da linguagem.

Mas, enfim, eis que a palavra pai se revelara, abraçada a um indisfarçável desconforto, captado ao ver-se o semblante e ouvir-se a voz do analisando.

- Acabei de escrever uma carta para ele. Sim! Uma longa carta. Mas, sinceramente, não sei se a lerá. Na verdade, não sei sequer se chegará às mãos dele. Aquelas mãos que, se pudessem, com certeza me despedaçariam. – disse, com a voz trêmula.

Com o charuto entre os dedos indicador e médio da mão esquerda, o condutor da sessão ouvia o que era dito, fazia anotações (a fim de ajudar no processo de memorização do caso) e breves comentários. Enquanto isso, o paciente começava, num crescendo do tom da voz, a externar fatos que o impediam de ser ele mesmo e que estavam ligados ao seu relacionamento com o velho genitor.

- Ele parece um Deus. Lá em casa é como o vejo. Uma espécie de carrasco que vive para me perseguir, para tentar me intimidar, para me pressionar, dia e noite. – ressaltou o paciente.

- Há muitos pormenores que não consigo contar... nesse medo que eu carrego do meu pai. Mas odeio quando ele me desqualifica e condena o meu futuro. E faz isso na frente de todos. Sim, eis o meu fabuloso pai!

- De tanto ouvir seus sermões públicos, acredito piamente em todos os argumentos que usa. Por causa dele, só tenho a verdadeira sensação de mim mesmo quando estou infeliz.

- Para piorar, agora quer me impedir de casar com a mulher que me ama de verdade. Quer estragar minha única fortaleza: o amor. – disse, com a voz levemente embargada.

- Somos de carne e osso, mas a vida nos trata, por vezes, como se fossemos de ferro. – comentou calmamente o analista.

Depois de um breve silêncio, o jovem retomou sua fala:

- O muro que meu pai ergueu entre mim e Julie é quase intransponível. Mesmo assim, tenho esperança. Sei que existe e é pequena, mas não posso abrir mão das possibilidades. Não tenho esse direito!

- Ainda assim, o que vejo hoje? O que tenho visto? Apenas a minha própria sombra e o medo que sinto, como se fosse a mão impiedosa do meu pai em minha garganta. – falou, arregalando os olhos que miravam o teto.

- O peso de ser filho é terrível, no meu caso. Meu pai é muito grande para mim. Sua presença é muito forte. Sinto que me esmaga com sua indestrutível superioridade. Com sua vontade de me ver um homem forte e corajoso. Coisas que não sou.

- Ele me cobra todos os dias. Todos os dias. Pergunta onde deixei minhas responsabilidades para com os negócios. Diz que sou um fracasso. Que não valorizo a liberdade que ele me proporcionou. Mas... liberdade? Que liberdade?

- A que teve ao me deixar fora do quarto, com frio e sede, quando eu era apenas um menino chato e chorão, gritando no meio de uma noite chuvosa? A que me ajudou a ser esse nada incontestável, que ressalva sempre que toca no assunto com os parentes à mesa do jantar nos domingos? – questionou o analisado, esbravejando no divã.

- Muitas vezes sonho com ele a me perseguir, doutor. Sonho que estou saindo de uma floresta muito densa, após correr por metros e metros. No final, respiro fundo ao ouvir o clique de um revólver. Depois fecho os olhos e acordo quase sem ar. – diz o jovem escritor, encenando o seu susto.

- Daí para a frente não há mais retorno, ponho na mesa a culpa por todos os meus erros. Estou imerso em silêncio. Até sinto o meu medo dissolver-se dentro dele. Ah, você não sabe a energia que reside no silêncio! – murmura, com um leve sorriso na face.

- Deves perceber que de erro em erro a verdade vai-se revelando. – comentou o médico, enquanto fazia anotações em seu caderno.

- A verdade para mim, doutor, é sempre um abismo. Se não me libertar, irá me destruir. Assim como meu pai tem tentado destruir a minha felicidade.

O analista enfim olhou para o relógio de bolso e informou ao novo paciente que a sessão estava encerrada. O jovem levantou-se um tanto lentamente, como se quisesse permanecer deitado mais um instante. Já de pé, o médico achegou-se frente a ele e, antes que se retirasse, lhe disse:

- A felicidade, caro Franz, é um problema individual. Nesse campo, nenhum conselho é lá muito válido. Afinal, cada um deve procurar, por seus próprios meios, tornar-se feliz. No mais, em última instância, precisamos amar. Amar para não adoecer.

O escritor, por alguns segundos e em silêncio, olhou fixamente no fundo dos olhos do médico. Depois estendeu-lhe a mão, apertou-a com firmeza, despediu-se, vestiu o casaco, pôs o chapéu na cabeça e deixou o consultório com a mesma discrição com que entrara. Logo após sua saída, aparece a secretária para avisar que aquele tinha sido o último atendimento do dia.

- Dr. Freud, o paciente Franz Kafka terá uma nova sessão na quinta-feira da próxima semana, nesse mesmo horário. Achei a expressão daquele jovem meio perdida, o semblante pesado. O senhor acha que ele vai retornar?

- Deixemos isso para uma outra hora, Anna! A resposta à sua pergunta é tão incerta quanto saber se amanhã um de nós dois irá acordar resfriado. A única certeza que tenho agora, e posso lhe garantir, é que estou me dirigindo ao café. Queres me acompanhar?

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Quem levará o Nobel de Literatura de 2021?

 

Rogerio Rocha

Por Rogério Rocha

O Prêmio Nobel é constituído por seis prêmios concedidos todo ano em várias categorias, sendo conferido a pessoas que tenham dado alguma contribuição relevante à humanidade em sua área de atuação. São seis as categorias: medicina, física, química, literatura, paz, economia.

Nesse artigo quero falar sobre um dos prêmios. Especificamente o Nobel de Literatura, que será entregue no dia 7 de outubro.

Para início de conversa é bom lembrar que faz quase uma década que a Academia Sueca não premia alguém de fora do eixo América do Norte/Europa. Tal fato, em tese, depõe contra o caráter supostamente “inclusivo” da instituição, razão pela qual, segundo os analistas, a partir de alguns indícios, possivelmente o(a) escolhido(a) da vez seja um não ocidental ou alguém de outro continente. 

Mas afinal, a pergunta é: quem levará o prêmio de 10 milhões de coroas suecas (o equivalente a 980 mil euros) para casa? As cartas já estão na mesa. Ou melhor, os nomes, as carreiras, os lobbies e os livros.

Como não sou vidente, nem tenho pretensão de evocar dos meus ancestrais algum poder mental escondido, não posso cravar quem vai vencer. Ainda mais ao lembrar que os “critérios” de escolha dos eleitos passa longe do simples mérito literário, sendo composto de um bom número de variáveis sobre as quais, pelo menos para mim, recaem dúvidas mais do que fundadas.

Querem entender o que estou falando? Anotem aí! Nomes como Jorge Luís Borges, Carlos Drummond Andrade, Franz Kafka, Leon Tolstói, Marcel Proust e Philip Roth – reconhecidamente notáveis escritores e cujas obras ultrapassam as quadras internas da geografia de seus países de origem, nunca foram lembrados pelos suecos, desde 1901, quando a premiação teve início.

Este ano, muitos são cotados para suceder a norte-americana Louise Glück, vencedora da última edição. Dentre os favoritos estão Jamaïca Kincaid (uma caribenha estadunidense), César Aira (da Argentina), Mia Couto (de Moçambique) e o japonês Haruki Murakami. Também figuram dentre prováveis candidatos à máxima láurea das letras mundiais o polêmico francês Michel Houellebecq (indico a leitura de “Submissão”, um livro impactante), a canadense Margareth Atwood (muito em voga pelo seu ótimo “O conto de Aia”, adaptado para uma série), o americano Don Delillo (autor de livros como “Americana” e “Ruído de fundo”) e a inquietante Joyce Carol Oates, dona de uma bibliografia que (pasmem!) ultrapassa os cem livros.

Caso optem por eleger o vencedor ou vencedora, como apontam alguns, de países ainda não contemplados com a premiação, temos aqui dois nomes importantes a serem observados: o queniano Ngugi wa Thiong’o (um forte candidato), que aborda as tensões raciais e a violência em seus escritos, e a jovem escritora Chimamanda Ngozi Adichie, cuja visibilidade midiática tem passado pela visão pós-colonial e pela defesa do feminismo.

Temos aí, então, um mosaico humano que traz as figuras que poderão compor a lista de escolha de onde será definido o nome do homem ou mulher a receber o Nobel de Literatura de 2021. Se tenho favoritos? Sim. São eles: Michel Houellebecq, Margareth Atwood e Ngugi wa Thiong’o. 

É isso! Agora nos resta esperar para saber se a Academia Real de Ciências Sueca e a Fundação Nobel irão nos surpreender este ano.

terça-feira, 24 de agosto de 2021

NEM MORTA (Um conto de Rogério Rocha)

 

    
    
Mulher deitada – William Côgo

Imagem: Internet - William Côgo

 

O sinal de aviso tocou novamente. É a décima chamada de hoje.

Júlio pôs-se de pé, quase como num susto. Levantou a cabeça, respirou fundo, olhou para o alto. Além de um teto branco, nada havia para se ver.

A noite começara há pouco e mais corpos haviam chegado. Dessa vez dois indivíduos de trinta e poucos anos, mortos num acidente de carro. Enfim, a primeira ocorrência cujos óbitos não decorriam da Covid-19.

Seis dias na semana, ao longo de quinze anos, Júlio Viana tem estado em atividade. Trabalhou em muitos lugares, mas, depois, entrou num ciclo de arranjar empregos que ninguém queria. Para sobreviver, foi agente funerário, esteve um tempo no serviço de verificação de óbitos e depois no preparo para sepultamentos. Uma carreira nada convencional, sem visibilidade, reconhecimento ou coisa do gênero.

O fato é que, ultimamente, estava cansado de tudo. Sensação que só aumentava, na medida em que lembrava de todas as chances que desperdiçou, o tempo dispendido com coisas fúteis e que nada adicionaram à sua vida, a acomodação e o marasmo a que se acostumou.

Odiava a profissão quando nela iniciou e, ainda hoje, tem esse mesmo sentimento, apenas com a adição de uma admirável dose de resiliência (o que contrasta abertamente com sua ânsia de mudança). Para além disso há o medo: o medo, ingrediente que se misturou ao cotidiano conturbado que a peste impôs.

O cansaço aumentava e a paciência se extinguia. As cobranças, a sobrecarga, o rumo incerto de sua vida, a solidão pela qual optara. O calafrio que ia e vinha, sua nuca que doía, os olhos vermelhos, as dores nas costas...

Todos os dias, agora, são quase invariavelmente turbulentos. Onde antes tudo era silêncio, hoje é silêncio, dor, desolação. Antes o nó nas tripas, agora o nó na garganta. Mortes a granel, choro, ranger de dentes e uma moléstia de origem obscura que acabou por transformar completamente o turno da noite, que se tornou um pandemônio.

Ao entrar na sala de necropsia, a máscara o sufocava. Ele a ajeita em seu rosto suado. Ela o oprime. Dificulta a sua respiração. Seus pensamentos, em devaneio, o desnorteiam. Imagens, rostos, palidez, rigores, passagens, rasgos nas peles, na alma, cavidades escavadas, projéteis... o tempo a escorrer pelas retinas, as narinas que nada sentem, memórias que piscam e se apagam, cansaço, cansaço...

Faz um pouco de calor e, talvez por isso, odeie ter de usar tantos equipamentos de proteção. As camadas de vestimenta que o recobriam – o macacão, a touca, a viseira – deixavam a impressão de que estava a salvo. Que dentro daquele pequeno inferno ia tudo bem. Lá fora estava pior, pode alguém pensar.

Sobre o grande balcão metálico do centro da sala estavam os cadáveres de uma mulher e um homem. Sobre eles, a luz fria de uma luminária clean.

Aproximou-se dos dois para começar seu trabalho e retirou o manto que os encobria. Diante de si uma mulher loira, de pele branca e bela compleição física, com os olhos perdidos no nada. Além da rigidez de seu silêncio, no sono eterno, a expressão de pavor na contração dos músculos da face, que ficou como amarga lembrança de uns poucos segundos de reação antes do choque.

Tinha escoriações no tórax e sangue pelo rosto, que lhe caíra justamente em decorrência do traumatismo que sofrera no crânio.

Na medida em que Júlio o retirava da face da morta com um pano umedecido em álcool, um novo quadro se revelava. Aos poucos, sua memória passou a buscar um rosto como aquele, de alguém que conhecera um dia. A familiaridade dos traços da face, ainda que mais maduros, e alguns detalhes como a estatura, os lábios, a curvatura do nariz, as curvas do quadril e o formato dos seios, levaram sua imaginação aos tempos de estudante.

À medida em que se esforçava em lembrar, ficava mais forte a certeza de que a pessoa ali deitada fora uma paixão platônica chamada Lúcia. Colega de classe por quem nutria um sentimento tão idealizado que somente tivera, no tempo em que frequentaram as mesmas aulas na faculdade, apenas duas ou três chances de conversar com ela.

Impactado pela situação, o preparador sentiu uma tontura súbita; suas pernas fraquejaram, seu corpo tremeu. Com os olhos cheios de lágrimas e o coração disparado, afastou-se do cadáver por uns instantes, dando as costas àquela cena. Apesar da experiência que o trabalho lhe dera, e a frieza necessária para tratar com pessoas mortas, não esperava defrontar-se com igual situação.

Ignorando completamente o homem que jazia ao lado dela, para quem sequer olhara, Júlio voltou-se novamente para a mesa, pôs as mãos sobre o corpo de Lúcia e o percorreu como que num gesto de oleiro, moldando lentamente suas curvas, tateando suas cavidades, tocando as pernas, os braços, os seios com que tanto sonhara... Em seguida, encostou a cabeça sobre eles e chorou novamente.

Depois, então, voltou-se tristemente para ela, a mirar aqueles olhos já sem brilho, num rosto tão bonito. Tirando as luvas, tocou sua face pela primeira e última vez. Por fim, a beijou lentamente, tocando com ternura seus lábios naqueles frios lábios, e lembrou da vez que lhe pedira um beijo, depois de dançarem uma música na festa de formatura do curso, tendo ouvido daquela boca, ali semiaberta, a seguinte frase: “Eu, te beijar? Nem morta, cara! Nem morta!”

Como são tristes as ironias do destino.

Júlio então cobriu o cadáver de Lúcia, desligou a luz e, antes de sair, deixou sobre a mesa do diretor sua carta de demissão. Decidira abandonar o trabalho. Ao ir embora, desconsolado, levou consigo a amargura de um péssimo dia e o início de uma tosse seca que, com o passar do tempo, tenderia a piorar.

 

Postagens populares

Total de visualizações de página

Páginas