Ayrton Senna foi muito mais do que um amigo para Erik Comas. O
brasileiro salvou a vida do então piloto francês, em 1992, ao socorrê-lo
após batida violenta contra o muro durante treino no GP da Bélgica.
Senna não teve dúvida ao passar pelo local segundos após o acidente:
parou sua McLaren e correu em direção a Ligier/Renault, que vazava
combustível e estava prestes a explodir.
Percebendo que Erik
Comas estava desacordado no cockpit, Senna desligou a ignição do carro
do companheiro e evitou o risco de a Ligier pegar fogo. Quis o destino
que dois anos depois o drama tivesse papel invertido.
O último piloto a se aproximar da Williams destruída com Senna foi justamente Erik Comas. Em entrevista ao UOL Esporte,
o ex-piloto francês reverencia Senna pelo ato heroico em 1992, mas
ainda se remói por não ter conseguido ajudar o amigo em estado
gravíssimo após acidente na curva Tamburello, em Ímola, em 1994.
A bordo de uma Larrousse/Ford, Comas bem que pensou em repetir o gesto
feito pelo colega dois anos antes: sair em disparada para salvá-lo. Mas
os fiscais de prova impediram que o francês deixasse o cockpit. Com o
carro parado a metros da Williams e de Senna, Comas assistiu a todo
atendimento médico impressionado com a gravidade da batida.
A
prova em Ímola estava suspensa para o atendimento de Senna. Nenhum carro
tinha autorização para seguir caminho; mas Comas descumpriu a ordem e
continuou na pista, parando apenas quando chegou à área do desastre, com
o helicóptero já na pista.
"É difícil aceitar que alguém que
salvou sua vida dois anos antes estava agora a poucos metros de mim,
ferido gravemente. Eu tinha que deixar o carro e ir lá para ajudar de
alguma maneira. Mas os médicos não deixaram. Eu entendi que ele estava
morrendo ou estava morto. Sou cristão, não praticante, e senti uma
radiação enorme. Eu tive a sensação de que o Senna estava indo para o
céu. Eu nunca tinha visto isso", descreve Comas.
Senna foi
levado de helicóptero ao hospital. Impedido de prosseguir caminho com a
Larousse, Comas teve de retornar aos boxes com a ambulância então
colocada para resgatar o piloto brasileiro. Horas mais tarde veio a
confirmação do falecimento.
Abalado, Comas se recusou a
continuar na prova. O GP foi vencido por Michael Schumacher. No fim
daquele ano, o francês decidiu largar a Fórmula 1.
"Foi difícil
ver falecer a pessoa que salvou a minha vida. Eu me senti horrível. Não
queria dirigir mais. Fui convencido pela equipe a ficar até o fim da
temporada. Mas depois parei com a Fórmula 1", destacou o francês, que
anos depois correria por competições de turismo.
Morando na Suíça e sócio de empresa de carros históricos, o francês de
50 anos se emocionou ao narrar a tentativa de Senna em resgatá-lo do
carro, em 92, e chama o piloto brasileiro de "herói".
UOL
Esporte – Dois acidentes, dois episódios envolvendo você e Ayrton
Senna. Qual a lembrança que fica após ser salvo por Senna e, dois anos
depois, assistir ao atendimento médico a poucos metros do brasileiro?
Erik Comas
– É difícil aceitar que alguém que salvou sua vida dois anos antes
estava agora a poucos metros de mim, ferido gravemente. Eu tinha que
deixar o carro e ir lá para ajudar de alguma maneira. Mas os médicos não
deixaram. Eu entendi que ele estava morrendo ou estava morto. Sou
cristão, não praticante, e senti uma radiação enorme. Eu tive a sensação
de que o Senna estava indo para o céu. Eu nunca tinha visto isso.
UOL Esporte – Como você conseguiu dirigir o carro até o local do acidente com o Senna em Ímola mesmo com a pista interditada?
Erik Comas
– Foi uma grande confusão dentro da equipe no momento da paralisação.
Havia uma incerteza. Não sabiam se era para eu seguir ou parar nos
boxes. Eu continuei na pista e só fui entender a gravidade quando me
deparei com o helicóptero no chão e médicos tentando salvar o Senna.
UOL Esporte – Você se sente frustrado por não ter retribuído em 1994 o gesto de Senna de dois anos antes?
Erik Comas
– Sim. Eu me sinto envergonhado e com certa culpa por isso. Em Spa
Francorchamps, em 92, o Senna apareceu logo depois do meu acidente,
chegando antes dos médicos. Ele parou o carro e veio ao meu carro
desligar o interruptor principal, evitando explosão. Já no acidente
dele, em Ímola, ele já estava sendo atendido quando cheguei. Os médicos
eram mais competentes e eu nada pude fazer.
UOL Esporte – Você teve contato com o Senna antes da largada em Ímola?
Erik Comas
– Eu encontrei ele rapidamente em um espaço reservado aos pilotos. Eu e
ele não estávamos bem por tudo o que havia ocorrido nos treinos [morte de Roland Ratzenberger e grave acidente com Rubens Barrichello]. Eu pela primeira vez vi um Senna impactado, preocupado.
UOL
Esporte – Por que você decidiu ficar fora da relargada após o acidente
do Senna? Schumacher e Hakkinen, por exemplo, continuaram a prova e
foram para o pódio.
Erik Comas – Os
outros corredores não sabiam do estado do Senna, mas eu sabia que ele
tinha morrido porque presenciei. Era impossível eu continuar depois de
tudo o que eu vi. Não dava. Eu não tinha condições de correr depois de
um fim de semana triste.
UOL Esporte – O que ocasionou a batida que vitimou Senna?
Erik Comas – Não foi erro dele. Alguma coisa dentro do carro quebrou segundos antes do acidente.
UOL Esporte – Como você define a atitude tomada por Senna, que se arriscou correndo na pista para desligar o seu carro?
Erik Comas
– O Senna era tão generoso que para ele foi um ato normal ter me
salvado em 1992. Mas para mim ele é um heroi. Havia líquido vazando no
meu carro após a batida e um grande risco de explosão. O Senna sabia
disso, mas agiu por instinto ao ir em direção ao meu carro. Hoje talvez
eu não estaria aqui contando isso se não fosse o Senna.
UOL Esporte – Você lembra de detalhes do seu acidente em 1992?
Erik Comas
– Eu não me lembro de nada. Minha memória só se recorda de segundos
antes de eu perder o controle do carro. Fiquei desacordado, mas meu pé
continuava no pedal. A chance de explosão era grande. Não vi o Senna me
socorrendo. E quando os médicos chegaram, ele permaneceu ali perto para
conferir se eu estava bem.
UOL Esporte – O carinho pelo Ayrton Senna já existia antes do acidente na Bélgica, em 1992?
Erik Comas
– Sim. Minha admiração por ele começou já no meu ingresso à Fórmula 1. O
Senna foi o primeiro e único piloto a me felicitar pelo meu título na
Fórmula 3000. Ele disse: 'Seja bem vindo. Parabéns pelo título'". Eu
fiquei impressionado. Aquilo para mim foi algo especial, porque ele teve
a sensibilidade de recepcionar um jovem piloto.
UOL Esporte – Você tem planos de vir ao Brasil para prestar homenagem no cemitério?
Erik Comas
– Eu prefiro ir à Ímola, no espaço que é dedicado a ele. Para mim este
lugar é especial, porque eu estava lá e ali foi o último lugar em que eu
o vi.