O STF (Supremo Tribunal Federal), no dia 13/06/2019, através da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), proposta pelo partido PPS (Partido Popular Socialista), fundamentada na “omissão do Poder Legislativo”, equiparou o crime de homofobia e transfobia ao crime de racismo, insculpido na Lei nº 7716/1989. Não obstante o entendimento de nossa Corte Superior, acreditamos que tal equiparação viola expressamente os princípios da legalidade e da reserva legal, bem como afronta diretamente o princípio da Separação de Poderes, em uma flagrante violação à sistemática jurídica brasileira, conforme exporemos a seguir.
2. Princípio da Legalidade e da Reserva Legal
O princípio da legalidade e da reserva legal vêm disposto no art. 5º, inciso XXXIX, de nossa Carta Magna:
XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;
Não obstante já previstos em nossa Lei Maior, o art. 1º, do Código Penal, enfatiza:
Art. 1º – Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.
De acordo com nossa legislação pátria, não podemos falar em crime ou pena, sem que lei anterior os definam como tal. Ou seja, a lei deve ser a única fonte do Direito Penal, não dando espaço para que a liberdade dos cidadãos seja suprimida pelo livre arbítrio de quaisquer autoridades que sejam. Nesse mesmo sentido, Paulo Bonavides nos ensina que
O princípio da legalidade nasceu do anseio de estabelecer na sociedade humana regras permanentes e válidas, que fossem obras da razão, e pudessem abrigar os indivíduos de uma conduta arbitrária e imprevisível da parte dos governantes. (…), evitando-se assim a dúvida, a intranquilidade, a desconfiança e a suspeição, tão usuais onde o poder é absoluto…
Muitos autores remontam a origem dos princípios da legalidade e reserva legal à Carta Magna Inglesa, do ano de 1215, editada pelo Rei João Sem Terra, que em seu art. 39 dispos que
Nenhum homem livre será detido, nem preso, nem despojado de sua propriedade, de suas liberdades ou livres usos, nem posto fora da lei, nem exilado, nem perturbado de maneira alguma; e não poderemos, nem faremos pôr a mão sobre ele, a não ser em virtude de um juízo legal de seus pares e segundo as leis do país.
A inteligência do citado artigo impressiona, tendo em vista o período em que foi escrito.
Apesar de à época viger uma monarquia, o rei, utilizando-se de seu poder absoluto, editou uma lei que limitou seus próprios poderes de ação contra a menor das minorias: o indivíduo, obrigando-se a se submeter às leis consagradas da comunidade e do país.
Seguindo a lógica da Carta Magna Inglesa de 1215, o Brasil, desde o Código Criminal do Império, de 1830, até a reforma da parte geral do Código Penal de 1940, efetuada no ano de 1984, previu expressamente o princípio da legalidade e da reserva legal, dando a todos os cidadãos brasileiros a segurança jurídica de que ninguém poderia ser punido por um tipo incriminador que não estivesse previsto antecipadamente em lei.
Neste mesmo sentido, analisando a importância dos princípios em tela, Ferbauch assevera:
I) Toda imposição de pena pressupõe uma lei penal (nullum poena sine lege). Por isso, só a cominação do mal pela lei é que fundamenta o conceito e a possibilidade jurídica de uma pena. (…) Por fim, é mediante a lei que se vincula a pena ao fato, como pressuposto jurídico necessário. III) O fato legalmente cominado (o pressuposto legal) está condicionado pela pena legal (nullum crimen sine poena legali). Consequentemente, o mal, como consequência jurídica necessária, será vinculadomediante leia uma lesão jurídica determinada.
Ou seja, consoante Ferbauch, a lei é PRESSUPOSTO JURÍDICO NECESSÁRIO para que o Estado possa punir um indivíduo sob seus domínios, limitando, assim, seu poder, além de abarcar seus cidadãos com a segurança jurídica.
3. Violação ao princípio da legalidade, ao princípio da reserva legal e ao princípio da separação de poderes
Acreditamos que qualquer grupo, através dos meios disponíveis e legais previstos em um Estado Democrático de Direito, pode lutar para que leis sejam promulgadas em seu benefício – ainda que de conteúdo incriminador e repressivo -, desde que, repise-se: observem o trâmite necessário disposto em nossa Constituição para que uma lei seja promulgada e passe a viger.
Entretanto, no caso em tela, vemos um grupo minoritário, usando do Judiciário (que, em tese, só deveria aplicar as leis e dar a elas a melhor interpretação) PARA CRIAR UMA LEI DE CARÁTER PENAL, QUE PODE ATENTAR DIRETAMENTE CONTRA A LIBERDADE DOS INDIVÍDUOS.
Ou seja, ao atender o pedido efetuado pelo PPS (Partido Popular Socialista) na ADO nº 26, o Judiciário, usurpando a função conferida ao Poder Legislativo, inovou legislativamente, ultrapassando os seus limites institucionais, já que, de acordo com o art. 22, inciso I, da Constituição Federal, é de competência da União (Congresso Nacional) a edição de leis de cunho penal.
Nesse sentido, elucidativa a lição de Guilherme de Souza Nucci:
Ao cuidarmos da legalidade, podemos visualizar os seus três significados. No prisma político, é a garantia individual contra eventuais abusos do Estado. Na ótica jurídica, destacam-se os sentidos lato e estrito. […] Neste último enfoque, é também conhecido como princípio da reserva legal, ou seja, os tipos penais incriminadores somente podem ser criados por lei em sentido estrito, emanada do Poder Legislativo, de acordo com o processo previsto na Constituição Federal.
Apesar do cediço conhecimento desses princípios pela comunidade jurídica, vemos que, na prática, eles foram totalmente ignorados pelo nosso Supremo Tribunal Federal.
4. Conclusão
Há, por conseguinte, notória violação por parte do STF aos princípios da legalidade e da reserva legal, além de afronta direta ao princípio da Separação dos Poderes, todos previsto em nossa Constituição Federal, ao equiparar crimes de cunho homofóbico e transfóbico ao crime de racismo, em uma flagrante inovação legislativa.
No mais, frise-se: todos os grupos têm o direito de lutar para que leis que os protejam sejam editadas, entretanto, como operadores do direito, não podemos compactuar com atuações que envilecem princípios de nosso ordenamento jurídico, sob pena de abalarmos a ordem do Estado Democrático de Direito.
No curso da operação zelotes, investiga-se a possibilidade de ter havido a “compra” de medidas provisórias[1]. Nas delações havidas no curso da operação “lava jato”, sugere-se que a Odebrecht teria também pago pela aprovação de leis[2].
A
comprovação da ocorrência desses eventos levantará dúvidas não apenas a
respeito da legitimidade do processo legislativo praticado na nossa
jovem democracia, mas também suscitará indagações a respeito da higidez
dos atos normativos editados pelo Congresso Nacional em vista da mácula
em sua formação.
É certo que, numa democracia, espera-se que a
política seja utilizada como mecanismo de defesa de interesses, numa
sociedade pluralista, que conduz à formação das regras que nortearão a
nossa vida em sociedade. É nesse contexto que surge aquilo que Jeremy
Waldron chamou da contingência do Direito: o Direito, no Estado moderno,
está sujeito a modificações, que devem ocorrer ordinariamente no meio
político, pelos representantes legitimamente eleitos, no exercício
regular de seus mandatos (observadas, por óbvio, as regras do jogo
estabelecidas pelo Direito)[3].
Essa
defesa de interesses degenera-se em corrupção quando se perde a ideia
de bem comum que deve conduzir o processo legislativo e que constitui
premissa norteadora da formação da vontade política e das leis.
Por
isso, a ocorrência de “compra de leis”, além de colocar em xeque as
bases em que se assentam o Estado de Direito, põe em discussão a
possibilidade de aplicação de sanções jurídicas para o parlamentar e
para a lei fruto da manifestação de vontade viciada. Surge, portanto,
indagação sobre os efeitos dessa prática nefasta nos institutos da
imunidade parlamentar e do controle de constitucionalidade.
Como
se sabe, é para resguardar o adequado funcionamento da democracia que se
conferiu a imunidade ao parlamentar no exercício de seu múnus público.
No Brasil, a imunidade parlamentar não tem sido considerada barreira
para a responsabilização penal dos parlamentares. De fato, é certo que
hoje se entende que o parlamentar, no exercício de suas funções, está
sujeito a um regime de responsabilidade não apenas eleitoral (perante os
eleitores), mas também disciplinar e mesmo penal.
No que se
refere à responsabilidade disciplinar, prescreve o art. 55, §1º, da
Constituição Federal que “é incompatível com o decoro parlamentar, além
dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas
asseguradas a membros do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens
indevidas”.
Na Ação Penal 470[4]
(conhecida como processo do “mensalão”), o Supremo Tribunal Federal
entendeu configurada a responsabilidade penal dos parlamentares e a
prática de ilícito penal, tendo em vista a “comprovação do amplo esquema
de distribuição de dinheiro a parlamentares, os quais, em troca,
ofereceram seu apoio e o de seus correligionários aos projetos de
interesse do Governo Federal na Câmara dos Deputados”.
Dissociando
a discussão do período pré-eleitoral e afastando a tese do crime
eleitoral de “caixa 2”, entendeu-se que “os parlamentares receberam o
dinheiro em razão da função, em esquema que viabilizou o pagamento e o
recebimento de vantagem indevida, tendo em vista a prática de atos de
ofício”.
A questão é saber se o vício de vontade do parlamentar,
se a corrupção da sua ação macula a validade da lei, por
inconstitucionalidade. A inconstitucionalidade é um vício que deriva de
uma relação de desvalor, que se configura pela desconformidade de
determinado ato com a Constituição, atribuindo-se a esse vício uma
sanção, ordinariamente associada à declaração de sua nulidade.
Há
inconstitucionalidade formal quando não se observam as regras
constitucionais “respeitantes à produção e à revelação de um acto
jurídico-público”[5]
(observância dos procedimentos necessários para a aprovação do texto
normativo, como iniciativa, quórum e rito). A inconstitucionalidade
material se manifesta quando ocorre uma lesão direta a “um enunciado
substantivo da normação constitucional”[6].
Nesse
juízo de desconformidade, assume-se que, em princípio, a vontade do
legislador é irrelevante (até porque, dado que a lei é fruto do concurso
de vontade de diversos agentes e decorre de um complexo processo, a
ideia de vontade do legislador é uma ficção jurídica). Nesse sentido, há
orientação antiga do Supremo Tribunal Federal de que “eventuais vícios
que se possam verificar nos motivos do ato estatal não contagiam as
normas nele veiculadas[7]”.
Esse
pensamento poderia conduzir à conclusão de a corrupção de um
parlamentar não seria juridicamente relevante para a realização do
controle de constitucionalidade. Certamente, dado o contexto político e
constitucional que vivemos, essa orientação será desafiada.
Nos
autos da ADI 4.885, por exemplo, a AMB e a Anamatra postulam o
reconhecimento da inconstitucionalidade formal da EC 41/2003, que
instituiu o Fundo de Previdência para os servidores públicos, por
entender que os atos criminosos praticados por parlamentares,
constatados na já mencionada Ação Penal 470, importariam em violação ao
art. 1º, parágrafo único, da Constituição, porque a Emenda
Constitucional não expressou a efetiva vontade do povo (exercida por
meio de seus representantes); art. 5º, inciso LV, da Constituição, em
vista da ofensa ao devido processo legislativo; e aos arts. 60, § 2º, e
37, caput, da Constituição, porque não se observou materialmente o rito
deliberativo para aprovação das emendas constitucionais e houve ofensa
ao princípio da moralidade.
No parecer que apresentou na ADI, o
procurador-geral da República, apesar de reconhecer que “o vício na
formação da vontade no procedimento legislativo viola diretamente os
princípios democráticos e do devido processo legislativo e implica,
necessariamente, a inconstitucionalidade do ato normativo produzido”,
pugnou pela improcedência da ação.
Segundo o PGR, “por força
desses mesmos princípios, bem como em razão da garantia constitucional
da presunção de não culpabilidade (art. 5º, LVII, da CR), é
indispensável que haja a comprovação da maculação da vontade de
parlamentares em número suficiente para alterar o quadro de aprovação do
ato normativo, o que não ocorre na hipótese ora analisada”, dado que na
AP 470 “foram condenados sete parlamentares em razão de sua
participação no esquema de compra e venda de votos e apoio político”.
Essa ADI, que se encontra sob a relatoria do ministro Marco Aurélio,
está pendente de julgamento.
No plano da inconstitucionalidade
material, examinando o conteúdo da norma, hoje já se admite que, no
controle de constitucionalidade, se faça um juízo sobre fatos e
prognoses legislativa[8].
É dizer que se leve em consideração, no julgamento de
constitucionalidade, os fatos e o diagnóstico presentes no momento da
elaboração da norma ou mesmo sua motivação.
Nos Estados Unidos, a
possibilidade de realizar juízo de constitucionalidade a partir das
motivações legislativas constitui um tema polêmico na prática
constitucional da Suprema Corte.
Conforme nos relata John Hart
Ely, a recusa do exame das motivações para a apreciação da
inconstitucionalidade de uma dada lei deriva da dificuldade de
determinar se uma motivação ilegítima influenciou uma decisão. Mas
haverá situações em que “não haverá explicação alternativa legítima para
o ato em questão, situações em que portanto é possível deduzir de modo
responsável que o ato teve motivação inconstitucional”[9].
Apresentando
um histórico do controle de constitucionalidade das motivações
legislativas, Caleb Nelson, professor da Universidade da Virgínia,
conclui que, a partir da década de 70 do século passado, a Suprema Corte
expandiu as fontes de informação para passar a consultar dados
relativos ao histórico do processo legislativo, o que até então se
considerava fora dos limites do juízo de constitucionalidade[10].
É
preciso destacar que esse procedimento foi adotado, inicialmente, para
permitir a adequada proteção dos direitos fundamentais, notadamente os
previstos na 14ª Emenda, no que se refere à proteção contra a
discriminação (racial, religiosa e de gênero). Hoje, não obstante tenha
sido superado o dogma de que as motivações legislativas não são
judicializáveis, propõe-se que o exame das motivações legislativas
adquira relevância para o controle de constitucionalidade apenas quando o
ato normativo produz certos efeitos reais não albergados pela
Constituição[11].
Nessa
perspectiva, caberia voltar a nossa indagação, a respeito da
viabilidade de declarar de inconstitucionalidade de uma norma que tenha
atendido os interesses escusos de uma dada empresa.
De um lado,
poderia se argumentar que, se a corrupção tiver sido causa suficiente
para a edição do ato normativo, estaria viciada a vontade dos
representantes e comprometida a motivação legislativa, a justificar o
reconhecimento de sua inconstitucionalidade. Por outro lado, o
atendimento de interesses escusos não significa necessariamente que os
atos de corrupção tenham sido causa suficiente para a edição do ato
normativo e que não se façam presentes razões jurídicas legítimas para a
elaboração de uma lei geral e abstrata sobre determinado tema.
Para
ilustrar, cogite-se da edição de uma lei instituindo programa de
refinanciamento de dívidas tributárias que seja fruto de “atos de
corrupção” de parlamentares. Essa lei pode ter beneficiado a empresa que
a “encomendou” ilegitimamente para determinados parlamentares, mas
também terá alcançado milhares de outros contribuintes que são
totalmente estranhos ao processo de produção da legislação.
Pode-se
opor a essa dificuldade, própria do juízo proferido em controle
concentrado e abstrato de constitucionalidade, que a censura pela edição
de ato derivado de motivação espúria é cabível no controle difuso,
concreto e incidental, com o afastamento da aplicação do ato normativo
inconstitucional para aquele que diretamente deu causa ao vício na
formação da vontade política e dela se beneficiou. Essa discussão
poderia surgir, por exemplo, em ação de improbidade ajuizada contra
aqueles que praticaram tais atos.
De todo modo, cumpre concluir
que o grau de deformação do sistema político alcançou, no Brasil, não
apenas o sistema político-eleitoral, mas também espraiou seus efeitos
para o sistema legislativo, o que pode conduzir a uma nova reflexão
sobre os limites do controle de constitucionalidade, que deve sempre
estar atento aos perigos de uma judicialização excessiva da política.
Sendo ou não motivo de orgulho, cabe-nos reconhecer a possibilidade de o
Direito Constitucional brasileiro oferecer mais uma contribuição
original para o rico debate sobre os limites do controle de
constitucionalidade.
* Esta coluna é produzida pelos membros
do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional
(OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
[3] WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Cap. 1: a indignidade da legislação (especialmente pp. 13-20).
[4]
AP 470, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em
17/12/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-074 DIVULG 19-04-2013 PUBLIC
22-04-2013
[5] MORAIS, Carlos Blanco. Justiça Constitucional. Tomo I (Garantia da Constituição e Controlo da Constitucionalidade). 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p.149.
[6] MORAIS, Carlos Blanco. Justiça Constitucional. Tomo I (Garantia da Constituição e Controlo da Constitucionalidade). 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p.138.
[7]
ADI 432, Rel. Min. Celso De Mello, Tribunal Pleno, julgado em
15/05/1991, DJ 13/9/1991. Nesse caso, o Supremo Tribunal Federal
entendeu que não seria possível exercer juízo de constitucionalidade, em
sede de controle concentrado, de portarias ministeriais a partir de
consideranda do ato estatal.
[8]
Vide decisão monocrática proferida nos autos da ADI 2.548, em
18/10/2005, pelo ministro Gilmar Mendes, na qual se cogitou a “a
possibilidade efetiva de o Tribunal Constitucional lançar mão de
quaisquer das perspectivas disponíveis para a apreciação da legitimidade
de um determinado ato questionado. A constatação de que, no processo de
controle de constitucionalidade, se faz, necessária e inevitavelmente, a
verificação de fatos e prognoses legislativos, sugere a necessidade de
adoção de um modelo procedimental que outorgue ao Tribunal as condições
necessárias para proceder a essa aferição.” (Informativo 406 do STF).
[9] ELY, John Hart. Democracia e Desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 184.
[10] Caleb Nelson, Judicial Review of Legislative Purpose, 83 New York University Law Review, 1784, 2008.
[11] Caleb Nelson, Judicial Review of Legislative Purpose, 83 New York University Law Review, 1784, 2008. pp. 1.850-1857.
Fábio Lima Quintas é
editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional. Doutor em
Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito do Estado pela UnB.
Professor de processo civil e advogado.
ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-091 DIVULG 13-05-2014 PUBLIC 14-05-2014
Parte(s):
PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA GOVERNADORA DO ESTADO DO MARANHÃO ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO MARANHÃO
Ementa
EMENTA
Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 7.716/2001 do Estado do
Maranhão. Fixação de nova hipótese de prioridade, em qualquer instância,
de tramitação processual para as causas em que for parte mulher vítima
de violência doméstica. Vício formal. Procedência da ação.
1.
A definição de regras sobre a tramitação das demandas judiciais e sua
priorização, na medida em que reflete parte importante da prestação da
atividade jurisdicional pelo Estado, é aspecto abrangido pelo ramo
processual do Direito, cuja positivação foi atribuída pela Constituição Federal privativamente à União (Art. 22, I, CF/88).
2.
A lei em comento, conquanto tenha alta carga de relevância social,
indubitavelmente, ao pretender tratar da matéria, invadiu esfera
reservada da União para legislar sobre direito processual.
3.
A fixação do regime de tramitação de feitos e das correspondentes
prioridades é matéria eminentemente processual, de competência privativa
da União, que não se confunde com matéria procedimental em matéria
processual, essa, sim, de competência concorrente dos estados-membros.
4.
O Supremo Tribunal Federal, por diversas vezes, reafirmou a ocorrência
de vício formal de inconstitucionalidade de normas estaduais que
exorbitem de sua competência concorrente para legislar sobre
procedimento em matéria processual, adentrando aspectos típicos do
processo, como competência, prazos, recursos, provas, entre outros.
Precedentes.
Os legisladores brasileiros andam caprichando na produção de leis e projetos de leis que trombam com a Constituição Federal. Essa linha de montagem é ruim porque confunde a população e sobrecarrega a Justiça. Algumas leis passam a vigorar e seguem em frente, e juízes se veem obrigados a aplicá-las somente em parte – ou seja, tornam-se “leis pela metade”, que mais atrapalham do que ajudam o funcionamento do Estado de Direito. Espécie de “leis envergonhadas”.
A grande maioria delas acaba derrubada pelo STF, mas isso só se dá quando são questionadas na Corte por meio de “arguição de descumprimento de preceito fundamental”. O Brasil cabe, assim, na imortal frase do escritor Giuseppe Tomasi di Lampedusa, em seu clássico “Il Gatopardo”: “Tudo deve mudar muito para que tudo fique como está”. O “Anuário da Justiça Brasil” informa que oito em cada dez leis estaduais ou federais são consideradas inconstitucionais pelo STF e o índice geral de inconstitucionalidade bate na casa dos 90%.
Na semana passada, ganhou força nos bastidores parlamentares o projeto que prevê a formação de um banco nacional de DNA de suspeitos de crimes e de criminosos já condenados, e estima-se que ele não sairá por menos de R$ 1 bilhão. Argumenta-se que isso “ajudará a prender criminosos e a soltar inocentes”. Não é bem assim. A Constituição determina que “ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo” (no caso fornecer seu material genético para o banco), assim como igualmente a “presunção da inocência” é preceito fundamental. Quanto a inocentes, se legisladores admitem que há muitos deles nas cadeias, há outros mecanismos constitucionais já vigentes para libertá-los – legais, baratos e eficientes. Ainda no terreno da violência, o governo de São Paulo estabelecera que policiais militares não mais poderiam socorrer vítimas de tiroteios e teriam de chamar o Samu. Dá para imaginar um policial que ficasse olhando de braços cruzados o seu colega ferido enquanto o socorro não chegasse? Mesmo em relação ao infrator, o PM correria o risco de não socorrer e depois ser acusado de omissão? A Justiça, é claro, derrubou a determinação, e a partir da última semana ficou assim: quando der, se chamará o Samu; quando não der, o policial socorre (viu só, Lampedusa? Mexeu-se muito para tudo ficar como estava).
No campo trabalhista, debate-se atualmente como funcionará a questão do FGTS dos trabalhadores domésticos – e quanto mais se discute, mais se caminha para a inconstitucionalidade ao se quebrar o preceito da isonomia. Se a lei é clara quando diz que funcionário demitido por justa causa não tem direito a 40% sobre o Fundo de Garantia, por que há legisladores tentando aprovar um projeto que dá os 40% aos trabalhadores domésticos que percam emprego por justa causa? Se for aprovada, essa será mais uma lei inconstitucional. O estadista unificador da Alemanha Otto von Bismarck dizia, à sua época (século XIX): “Se os homens soubessem como são produzidas a lei e a salsicha, não respeitariam a primeira e não comeriam a segunda”.
O tempo passou, salsichas hoje são feitas atendendo às normas de controle de qualidade e devem ser consumidas – o Brasil orgulha-se de estimar para 2013 a produção de 702 mil toneladas desse produto. Em relação às leis, é claro que elas têm de ser obedecidas. Mas muitas delas continuam a ser produzidas como as salsichas nos tempos de Bismarck.
Antonio Carlos Prado é editor executivo da revista ISTOÉ
Fonte: Revista Istoé, 5 Jun/2013 - Ano 37 - n.º 2272
O
artigo 977 do vigente Código Civil veda a possibilidade da constituição de
sociedade entre os cônjuges casados sob o regime da comunhão universal de bens e o da separação legal, facultando, contudo, aos cônjuges casados nos
demais regimes contratarem sociedade entre si ou com terceiros.
Na
vigência do Código de 1916, nenhuma vedação nesse sentido havia em relação às
referidas situações. A mudança legislativa operada, sob o signo democrático de
um novo momento histórico do país, trouxe consigo algumas infelizes incoerências.
No caso em tela, ao impor tal vedação, nossa Lei Civilista Maior acaba por
prejudicar decisivamente os cônjuges que, porventura, optarem pelos regimes de
bens elencados como incompatíveis com a atividade empresarial.
Tudo
parece indicar que a vontade do legislador tenha sido, a princípio, a de
prevenir que os cônjuges empresários pudessem, em razão da natureza patrimonial
do regime então escolhido, prejudicar terceiros, ferindo seus direitos –
sobretudo os de crédito – ou mesmo burlar dispositivos legais do próprio Código
Civil.
Contudo,
além da já aludida prejudicialidade que recai sobre os cônjuges casados sob o
regime da comunhão universal de bens e o da separação obrigatória, doravante impedidos
de livremente exercer a atividade empresária em sociedade, outro efeito, igualmente
nocivo, pode ser observado. Trata-se, no caso, do que atinge os casais que
contraíram matrimônio sob a forma de tais regimes de bens em época anterior à
entrada em vigência do Novo Diploma Civil e que entre si também hajam
constituído negócio empresarial.
Com
o advento da nova lei, estes, também atingidos pela mudança de curso operada pelo
legislador, conforme o dispositivo do art. 2.031, teriam que adaptar-se às
novas regras até a data de 11 de janeiro de 2007.
Numa
breve e superficial análise, facilmente se percebe que, ao assim dispor, nosso Código
Civil cometeu grande injustiça para com os cônjuges, enquanto
sócios-empresários. Negando-lhes a liberdade
de iniciativa, terminou por ferir relevante princípio do regime
capitalista, presente em grande parte dos modelos de sociedade contemporâneas.
De igual modo, feriu (e fere) o livre
exercício do trabalho, fundamental à manutenção da própria subsistência dos
indivíduos. Sem falar na própria entidade
familiar, visto que, ao negar aos cônjuges o exercício de atividade de
empresa, furta-lhes, por conseqüência, a possibilidade de melhor prover suas
necessidades financeiras e econômicas, bem como a dos seus demais membros.
Digna
de crítica também – ainda falando da reviravolta da lei –, pois atinge
inclusive àqueles que, na constância do Código anterior, regularmente haviam formado
suas empresas, é a imposição da necessidade de passarem por novo processo de validação dos seus atos
constitutivos, tendo em vista o prazo então estabelecido para a referida
adaptação ao novo texto regulamentador.
Ora,
vejamos bem, se respeitados à época os requisitos e exigências da lei vigente
quando do processo de formação daquelas sociedades, entre cônjuges optantes
pelos regimes da comunhão universal e da separação de bens, por que então demandá-los
novamente, após consolidada a validade do referido ato pelo decurso do tempo?
O
que aqui se observa, em nosso entendimento, é que tanto o comando do art. 977, como o do art. 2.031 do Novo Código Civilcausaram sérios transtornos aos sujeitos
por eles atingidos, criando assim uma situação de visível insegurança jurídica e desrespeito às situações constituídas
regularmente, bem como aos atos
jurídicos perfeitos e aos direitos
adquiridos.
Portanto,
é admissível, ao nosso ver, falar-se em inconstitucionalidade
por vício material dos artigos 977 e 2.031, respectivamente, do Código Civil de 2002, visto que os
referidos dispositivos afrontam
princípios e normas claramente previstas em nossa Constituição Federal,
dentre os quais o do livre exercício de profissão ou ofício, o da livre
iniciativa e o da livre associação, afora os demais dispositivos acima
aduzidos.