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domingo, 5 de janeiro de 2020

CRÔNICA SOBRE UM TEXTO SEM ASSUNTO



Hoje acordei bem cedo. Às 6 da manhã.

Não sei a razão, mas apesar de não ser o horário em que acordo normalmente, estava eu lá, acordado.

Deu-me uma vontade danada de ir ao computador, escrever algo. Um texto sobre um assunto interessante, estimulante, motivador. Capaz de provocar o leitor ou apenas fazê-lo refletir.

Talvez sobre algo que pairasse ali, ao instante, perdido em meio às camadas de sutil inconsciência de um dia recém-começado.

Como de costume, liguei o laptop, coloquei-o sobre a mesa de trabalho e abri a janela do escritório, a fim de deixar entrar por ela os primeiros raios de sol do que parecia vir a ser uma bela manhã de domingo.

Sobre os telhados da casa à frente dois pombos cinzentos passeavam impunemente.

Enquanto isso, lá embaixo, no jardim, um filhotinho de gato buscava em vão alcançar a lagartixa que antes caçava um inseto sob as folhas de um arbusto.

Do outro lado do gramado, um cão de guarda, sentado como uma estátua, admirava a cena sem esboçar reação.

No apartamento ao lado, a menininha chorava e pedia a sua avó que lhe desse logo o mingau.

A casa silenciosa era o convite perfeito ao fluir das ideias. Melhor cenário, impossível.

Afinal, estava eu lá, sentado, confortável, consciência plena, em busca de um reles assunto.

Voltando a mim, e ao texto que dali a pouco estava certo que escreveria, lembrei-me de que escritores que se prezam desenvolvem métodos que lhes permitem abordar qualquer assunto a partir de várias perspectivas.

Alguns chegam a divulgar suas técnicas em obras nas quais as expõem quase como se fossem receitas de bolo. Fazes isto e aquilo, vens aqui e vais ali, pões isto, retiras aquilo, pá e pum e já está.

Outros são concisos, objetivos. Secos e cristalinos. Escrevem sem volteios. Lançam todas as suas setas no centro do alvo.

Há os que visam somente a emoção. Capturam o leitor pelo impacto da narrativa, as peripécias de estilo e um final acachapante, com direito a moral da história.

Há ainda os que adotam um tom sapiente. Veem tudo, sabem tudo, desnudam os personagens e desatam a narrativa com maestria digna de prêmio Nobel.

Certa vez disse Clarice Lispector: “Eu queria escrever um livro. Mas onde estão as palavras? Esgotaram-se os significados.”

Ciente que quase a metade da manhã evaporara desde que ali me abanquei, dei-me conta da ótima noite de sono que tivera. Não podia reclamar, era verdade.

Afora um sonho besta sobre afogar-me no meio do oceano e nadar em direção a uma ilha para me salvar das ondas bravias, tive um descanso praticamente santificado.

Ainda assim, a vontade que me assaltara logo cedo parecia não vingar. E a cada duas ou três linhas, pensando nisto e naquilo outro, tome escrever e apagar coisas sem sentido.

Três horas e meia depois de alguns períodos curtos e muitos lamentos, era esquálido o resultado do que escrevera. A peça produzida não refletia a minha alma, a cidade, o dia, um fato, um caso ou acaso digno de que alguém lesse.

Aquele jogo de empurra com as palavras. Pensar, planejar, ruminar e escrever. Redigir, digitar. Vira e volta. Revolta.

Pausa para escovar os dentes, banho, café, suco, passada de olhos nas notícias de um site jornalístico, as fofocas da manhã na tv, etc.

Os empregados do condomínio todos em ação. Cães a passear com seus donos. Crianças brincando com seus pais. Carros saindo e chegando. Portas que abrem e fecham. Gente que cozinha e gente que cochila ainda.

Volto à mesa angustiado. Vejo a escrita inacabada.

Revigoro as forças olhando pela janela. Vou até a sacada.

Olho os jovens que jogam bola no campinho aqui ao lado. As pessoas que caminham para os ginásios. Grupos de jovens que vão para os colégios. Bicicletas que carregam botijões de água. Motos e entregadores de comida. Alguém no andar de baixo ouve música mais alto que o normal. Os gatos rolam sobre a grama do jardim, aos pulos, uns sobre os outros, como se o tempo não valesse nada.

Torço, retorço, insisto. Mais um pouco, mais um pouco... Mais isto e aquilo e aquilo e aquilo... Quase lá... Está bom! Não! Não está! Esta palavra calha melhor, aquela não. Fica assim, está bonito. É sonora esta passagem. Emociona. Eu sinto, eu sinto... Eu sinto nascer de mim. Pronto! Pronto!

Chego ao final do texto um tanto decepcionado, devo confessar.

Afinal, mesmo após uns bons parágrafos criados e deletados, não consegui escrever sobre o tal tema interessante que buscava no início, quando a manhã apenas sorria.

Aliás, dou-me conta de que não havia texto.

Em verdade, em verdade vos digo: não havia assunto. Nunca houve, em nenhum momento.

Não houve título, tema, história, enredo, acontecimento nenhum. Nada. Nada. Nada.

Só houve vontade. O dolo, a intenção, a pulsão de escrever, escrever, escrever... e sentir.

Compreendo agora porque há gente que escreve coisas que prendem a nossa atenção com todo tipo de conteúdo. Tolices. Baboseiras sem forma e sem fundo.

Alguns até fazem bem. E o resultado é como um bolo bonito, daqueles que hoje postamos fotos no Instagram. Aquela cobertura maravilhosa, mas o recheio... insípido.

Outros fazem mágica. Chegam a tirar grandes coelhos de cartolas imaginárias.

Contudo, notem, mesmo a breve falta de inspiração serviu-me. Percebem?

Chegado a esta altura, após digitar, deletar, digitar e empacar, fazer e refazer, atrás de um tema, buscando o assunto, tenho a crônica aqui esculpida. Deitada em esplêndido berço, armado sobre o nada inequívoco de quando não se tem o que dizer.

Aliás, a propósito, o grande mestre Carlos Drummond de Andrade já dizia que os cronistas escrevem sobre qualquer coisa. Sobre coisas deste mundo ou de qualquer outro possível. E arrematava, afirmando que o cronista, com ou sem assunto, sempre comete as suas croniquices.

Enfim, eis aqui, viva e clara, para quem quiser ler, minha crônica sobre um texto sem assunto.

Sobre o qual nem imaginei ser possível.

Um texto sobre mim, sobre o sentir. Um texto qualquer. Um texto sobre nada. Um texto que nunca escrevi.

Ou escrevi?

Rogério Henrique Castro Rocha
São Luís, 05/01/2020.




sábado, 8 de setembro de 2012

VAMOS REINVENTAR SÃO LUÍS!



Por Rogério Henrique Castro Rocha



Tenho uma ideia! Proponho reinventar São Luís!

Reinventemos, a partir desta data, a ilha em que vivemos!

Vamos todos refundá-la! Seu renascimento deverá, contudo, seguir determinados princípios, pautar-se por certos critérios!

Comecemos por riscar das páginas dos livros os falsos herois, os líderes de fachada, os usurpadores. Deixemos a eles apenas a memória daquilo que devamos saber para, assim, termos em mente o que não mais deverá ser repetido.

Tiremos do diário recluso do esquecimento as histórias e estórias dos perseguidos, dos banidos, dos mortos, dos massacrados. Ergamos monumentos àqueles que, solidária e solitariamente, contribuíram para a construção de nossa história.

Redesenhemos o nosso espaço, traçando novos caminhos, novas rotas, outras vias, mais simples e singulares, para que saibamos de fato de onde partimos e onde queremos chegar.

Vamos, todos, reconstruir os corroídos monumentos, levantar dos destroços as nossas velhas casas, tingir de novas cores as imagens de desgastados retratos. Tenhamos coragem, gana e garra, para destruir alguns inúteis ornamentos, trazer abaixo os palacetes fantasmagóricos, que nos contam coisas que não queremos mais ouvir. Somente assim, sem medo, sem peias, teremos a chance de moldar o novo.

Enriqueçamos, com multicultural felicidade, o nosso código genético, forjando os neoludovicenses, somando os sangues e as peles, recompondo fenótipos, para forjarmos o povo de amanhã.

Celebremos com aqueles que, vindos de todos os cantos do país, de vários recantos do mundo, escolheram morar nessas plagas, começar uma nova vida, empreender projetos de crescimento pessoal e social.

Tenhamos claro, de hoje em diante, que não é preciso apenas, como alguém já disse, “amar a cidade”. É necessário, é urgente, inadiável, agir pela cidade, intervir pela cidade, fazer acontecer aquilo que queremos que seja a cidade.

Convoco, portanto, a todos os irmãos e irmãs desta ilha, aos que a ela estão inexoravelmente ligados, a refundá-la. A recontar seus mitos originários, interpretando-os sob uma nova perspectiva. Para que, então, sucumba, de uma vez por todas, a serpente imaginária. E para que a ilha sobreviva. Para que a ilha permaneça. Para que a ilha enfim seja o doce lugar do nosso futuro.

segunda-feira, 26 de março de 2012

A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA ANTIDROGAS E A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA

Por Rogério Henrique Castro Rocha

 A nova Política Nacional Antidrogas, que culminou na aprovação da Lei n.º 11.343/2006, e que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), está baseada na aplicação da Justiça Restaurativa, substituindo a prática tradicional do encarceramento pela aplicação de penas alternativas (advertência, indicação de frequência a cursos educativos e prestação de serviços), voltadas precipuamente à reinserção social do usuário (dependente ou não) de drogas ilícitas.

A concepção político-ideológica presente na legislação anterior, denominada por alguns de "visão de holofote", situava a discussão sobre as drogas sob a ótica da punição, entendendo que as penas privativas de liberdade resolveriam o problema dos usuários/dependentes. Tal concepção não distinguia o usuário do traficante, dando-lhes, ao final, igual tratamento e dificultando em demasia a perspectiva de recuperação e reinserção do sujeito no seio da sociedade.

Ao abandonar-se a visão meramente punitiva em prol de sanções de caráter educativo, a legislação atual passa a considerar as múltiplas dimensões que envolvem a problemática das drogas.

O ser humano, nesse aspecto, necessita ser visto como pessoa em sua integralidade. Dessa forma, a inter/trans/multidisciplinaridade, integrada aos conhecimentos técnicos do corpo de profissionais envolvidos com a prestação jurisdicional, é de suma importância para se alcançar um resultado satisfatório no enfrentamento de tão complexas questões.

Nesse sentido, é fundamental, ainda, que se busque efetivar a mudança na cultura judiciária em face, sobretudo, da figura de usuários e dependentes de drogas, pois a visão jurídica outrora vigente mostra-se hoje ultrapassada.

O espírito que trouxe a lume a nova lei nos impele, da mesma forma, a uma mudança de olhar acerca da condição dos drogaditos. É necessário ao operador do direito usar de sensibilidade e sabedoria ao distinguir cada sujeito dentro do panorama fático e jurídico do uso de drogas. 

Para tanto, a aplicação da nova lei requer profissionais capacitados nos aspectos jurídico, ético e procedimental, para a realização de um trabalho cooperativo e transdisciplinar.

Igualmente, cabe a magistrados, promotores, defensores públicos, delegados e demais operadores do direito adotarem a postura segundo a qual é melhor conscientizar e tratar os usuários do que encarcerá-los.

Por outro lado, sem a participação do conjunto da sociedade a tarefa do Poder Judiciário se tornará muito mais árdua, com risco de se inviabilizar a efetividade da lei. Razão pela qual a prática desse novo paradigma (restaurativo), aliado à necessária mudança de cultura, talvez sejam os principais desafios à aplicação correta, à disseminação e consolidação de novas práticas junto ao Judiciário e a sociedade.

É essencial, portanto, a construção de um novo paradigma de abordagem e tratamento dos agentes, dando a cada um a devida atenção.  De fato, diferentemente do que vigorara nos antigos regramentos infraconstitucionais, não podemos mais confundir as figuras do usuário, do portador, do dependente e do traficante, como se os mesmos integrassem uma só e única categoria, tomando-os como passíveis das mesmas penalidades. Sob tal aspecto, pelo menos, a mentalidade da nova lei antidrogas mostrou alguma evolução.

Apesar dos pequenos avanços  alcançados pelas inconstantes políticas públicas no setor, observa-se que  ainda uma enorme resistência aos princípios filosóficos e teóricos que fundamentam o novel modelo restaurativo de Justiça. Ainda assim, talvez o passo mais decisivo para a superação desse obstáculo esteja sendo dado agora, quando se começa a construir, consensualmente, uma nova agenda nacional, coordenando ações que envolvem governo e sociedade, capacitando a comunidade jurídica por meio de cursos e treinamentos (como os que são promovidos pelo Conselho Nacional de Justiça), descentralizando ações e, por fim, estreitando os laços com a sociedade e a comunidade científica.

Rogério Henrique Castro Rocha

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