Hoje acordei bem cedo. Às 6
da manhã.
Não sei a razão, mas apesar
de não ser o horário em que acordo normalmente, estava eu lá, acordado.
Deu-me uma vontade danada de
ir ao computador, escrever algo. Um texto sobre um assunto interessante,
estimulante, motivador. Capaz de provocar o leitor ou apenas fazê-lo refletir.
Talvez sobre algo que pairasse
ali, ao instante, perdido em meio às camadas de sutil inconsciência de um dia recém-começado.
Como de costume, liguei o
laptop, coloquei-o sobre a mesa de trabalho e abri a janela do escritório, a
fim de deixar entrar por ela os primeiros raios de sol do que parecia vir a ser
uma bela manhã de domingo.
Sobre os telhados da casa à
frente dois pombos cinzentos passeavam impunemente.
Enquanto isso, lá embaixo,
no jardim, um filhotinho de gato buscava em vão alcançar a lagartixa que antes caçava
um inseto sob as folhas de um arbusto.
Do outro lado do gramado, um
cão de guarda, sentado como uma estátua, admirava a cena sem esboçar reação.
No apartamento ao lado, a
menininha chorava e pedia a sua avó que lhe desse logo o mingau.
A casa silenciosa era o
convite perfeito ao fluir das ideias. Melhor cenário, impossível.
Afinal, estava eu lá, sentado,
confortável, consciência plena, em busca de um reles assunto.
Voltando a mim, e ao texto
que dali a pouco estava certo que escreveria, lembrei-me de que escritores que
se prezam desenvolvem métodos que lhes permitem abordar qualquer assunto a
partir de várias perspectivas.
Alguns chegam a divulgar
suas técnicas em obras nas quais as expõem quase como se fossem receitas de
bolo. Fazes isto e aquilo, vens aqui e vais ali, pões isto, retiras aquilo, pá
e pum e já está.
Outros são concisos, objetivos.
Secos e cristalinos. Escrevem sem volteios. Lançam todas as suas setas no
centro do alvo.
Há os que visam somente a
emoção. Capturam o leitor pelo impacto da narrativa, as peripécias de estilo e
um final acachapante, com direito a moral da história.
Há ainda os que adotam um
tom sapiente. Veem tudo, sabem tudo, desnudam os personagens e desatam a
narrativa com maestria digna de prêmio Nobel.
Certa vez disse Clarice
Lispector: “Eu queria escrever um livro. Mas onde estão as palavras?
Esgotaram-se os significados.”
Ciente que quase a metade da
manhã evaporara desde que ali me abanquei, dei-me conta da ótima noite de sono
que tivera. Não podia reclamar, era verdade.
Afora um sonho besta sobre afogar-me
no meio do oceano e nadar em direção a uma ilha para me salvar das ondas
bravias, tive um descanso praticamente santificado.
Ainda assim, a vontade que me
assaltara logo cedo parecia não vingar. E a cada duas ou três linhas, pensando
nisto e naquilo outro, tome escrever e apagar coisas sem sentido.
Três horas e meia depois de
alguns períodos curtos e muitos lamentos, era esquálido o resultado do que
escrevera. A peça produzida não refletia a minha alma, a cidade, o dia, um fato,
um caso ou acaso digno de que alguém lesse.
Aquele jogo de empurra com
as palavras. Pensar, planejar, ruminar e escrever. Redigir, digitar. Vira e
volta. Revolta.
Pausa para escovar os
dentes, banho, café, suco, passada de olhos nas notícias de um site
jornalístico, as fofocas da manhã na tv, etc.
Os empregados do condomínio todos
em ação. Cães a passear com seus donos. Crianças brincando com seus pais.
Carros saindo e chegando. Portas que abrem e fecham. Gente que cozinha e gente
que cochila ainda.
Volto à mesa angustiado.
Vejo a escrita inacabada.
Revigoro as forças olhando
pela janela. Vou até a sacada.
Olho os jovens que jogam
bola no campinho aqui ao lado. As pessoas que caminham para os ginásios. Grupos
de jovens que vão para os colégios. Bicicletas que carregam botijões de água.
Motos e entregadores de comida. Alguém no andar de baixo ouve música mais alto
que o normal. Os gatos rolam sobre a grama do jardim, aos pulos, uns sobre os
outros, como se o tempo não valesse nada.
Torço, retorço, insisto.
Mais um pouco, mais um pouco... Mais isto e aquilo e aquilo e aquilo... Quase
lá... Está bom! Não! Não está! Esta palavra calha melhor, aquela não. Fica
assim, está bonito. É sonora esta passagem. Emociona. Eu sinto, eu sinto... Eu
sinto nascer de mim. Pronto! Pronto!
Chego ao final do texto um tanto
decepcionado, devo confessar.
Afinal, mesmo após uns bons parágrafos
criados e deletados, não consegui escrever sobre o tal tema interessante que
buscava no início, quando a manhã apenas sorria.
Aliás, dou-me conta de que
não havia texto.
Em verdade, em verdade vos
digo: não havia assunto. Nunca houve, em nenhum momento.
Não houve título, tema,
história, enredo, acontecimento nenhum. Nada. Nada. Nada.
Só houve vontade. O dolo, a
intenção, a pulsão de escrever, escrever, escrever... e sentir.
Compreendo agora porque há
gente que escreve coisas que prendem a nossa atenção com todo tipo de conteúdo.
Tolices. Baboseiras sem forma e sem fundo.
Alguns até fazem bem. E o
resultado é como um bolo bonito, daqueles que hoje postamos fotos no Instagram.
Aquela cobertura maravilhosa, mas o recheio... insípido.
Outros fazem mágica. Chegam
a tirar grandes coelhos de cartolas imaginárias.
Contudo, notem, mesmo a breve
falta de inspiração serviu-me. Percebem?
Chegado a esta altura, após digitar,
deletar, digitar e empacar, fazer e refazer, atrás de um tema, buscando o
assunto, tenho a crônica aqui esculpida. Deitada em esplêndido berço, armado sobre
o nada inequívoco de quando não se tem o que dizer.
Aliás, a propósito, o grande
mestre Carlos Drummond de Andrade já dizia que os cronistas escrevem sobre
qualquer coisa. Sobre coisas deste mundo ou de qualquer outro possível. E
arrematava, afirmando que o cronista, com ou sem assunto, sempre comete as suas
croniquices.
Enfim, eis aqui, viva e
clara, para quem quiser ler, minha crônica sobre um texto sem assunto.
Sobre o qual nem imaginei
ser possível.
Um texto sobre mim, sobre o
sentir. Um texto qualquer. Um texto sobre nada. Um texto que nunca escrevi.
Ou escrevi?
Rogério Henrique Castro
Rocha
São Luís, 05/01/2020.