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domingo, 24 de março de 2013

Crítica da Cultura


Na época da secularização vive-se o silêncio de Deus na cultura
BERNARD LAURET
Durante sua visita à França, em 2008, Bento XVI fez questão de dirigir-se diretamente ao “mundo da cultura”. Foi no colégio dos Bernardinos, uma abadia fundada no século 13 pelos monges Cistercienses que, assim como os Franciscanos e os Dominicanos, queriam fazer-se presentes na Universidade de Paris, “forno onde se assa o pão intelectual do mundo latino”, como dizia o papa Inocente IV. O colégio dos Bernardinos formou clérigos durante séculos, antes de ser confiscado (“secularizado”) pela Revolução Francesa, em 1790. Em 2001, foi comprado novamente pela diocese de Paris e transformado em centro cultural. O local não podia ser mais bem escolhido para significar a contribuição histórica do cristianismo à cultura, mas também seus limites, quer dizer, sua “exculturação” em um contexto  secularizado. Bento XVI fez questão de mostrar, logo de saída, que foram basicamente a busca de Deus e o estudo de sua Palavra que conduziram os monges a desenvolver uma cultura que transformou a Europa. Foi nesse intuito que eles transmitiram a cultura antiga e fundaram escolas e bibliotecas, acolhendo autores cristãos e não-cristãos. Essa cultura intelectual e espiritual era igualmente inseparável do trabalho manual – lavrar as terras e lavrar os textos. Assim, a cultura não pode ser compreendida como uma simples realidade intelectual ou estética, mas sobretudo como uma civilização (Kultur, em alemão).
Mas isso se deu antes da época do Iluminismo (AufklärungEnlightenmentLumières), que capitaneou a emancipação da razão chegada à idade adulta e liberada de toda autoridade que pretendesse manter a Humanidade sob tutela. Daí Bento XVI concluir seu discurso evocando o silêncio de Deus em nossa época. Mas o fez para chamar seus contemporâneos à busca de Deus, conforme o exemplo dos medievais, a fim de que a cultura não seja reduzida apenas às possibilidades do que o ser humano pode fazer ou imaginar. É por isso que Bento XVI não cessa jamais de sublinhar a complementaridade entre razão e fé: a fé sem a razão conduz ao fundamentalismo; a razão sem a fé expõe o ser humano aos fantasmas da onipotência sem limites.
A política ou os perigos de uma deriva cultural
Em 2005, em Subiaco (comuna italiana onde foi fundada a primeira abadia beneditina), ao receber o Prêmio São Bento pela promoção da cultura (no mesmo momento em que os Estados europeus recusavam-se a introduzir na Constituição qualquer referência a Deus e às “raízes cristãs”), Ratzinger fez um discurso delineando o quadro sombrio das ameaças que pesam sobre o mundo de hoje, quando o homem, dotado de um grande poder técnico, parece não “dispor de uma energia moral correspondente”: armas nucleares e biológicas, clonagem, terrorismo, desigualdade na repartição de bens, “choque das culturas”. Ele levanta, pois, a questão dos limites da racionalidade técnica e positivista.
No entanto, Ratzinger não condena os ganhos do Iluminismo no que concerne à liberdade de consciência, à “coexistência de diferentes culturas religiosas” e à separação entre Estado secular (laico) e religião. Ele mesmo reivindica, não sem razão, que esses ganhos têm raízes no cristianismo. Em revanche, recusa que somente os critérios da razão iluminista sejam capazes de julgar a legitimidade das tradições religiosas; evoca precisamente as questões referentes ao aborto, à homossexualidade e à ordenação das mulheres. Recusa “que Deus seja tirado definitivamente da vida pública”, e, por isso, encoraja o cristianismo a encarar o desafio de levantar-se e falar, pois o considera como uma religião da razão, fundada sobre o Lógos criador. Tomando, aliás, o antípoda da máxima de Hugo Grotius (1583-1645) – que queria estabelecer o direito das nações sem recorrer a Deus –, Ratzinger propõe viver a vida tomando Deus como hipótese, para que a razão permaneça aberta a ele. Ele vai além da aposta de Blaise Pascal (1623-1662), que, diante da incerteza, preferia crer em Deus: depois da morte, se ele existir, ganhamos tudo; se não existir, não perdemos nada. Ratzinger vai de fato além e refere-se explicitamente a Immanuel Kant (1724-1804), que havia negado a possibilidade de conhecer Deus segundo a razão pura, mas o postulava no agir moral.
Nesse quadro político, todavia, Ratzinger afirma mais os direitos da religião e seu dever de racionalidade, sem fundamentar os limites respectivos da razão e da fé no contexto da Modernidade. Mas o encontro com Jürgen Habermas (1929-) permite uma abordagem explícita dessa questão.
A difícil partilha entre razão e fé na cultura
Um diálogo direto e insólito foi organizado em 2004, em Munique, entre o então cardeal Joseph Ratzinger e o pensador Jürgen Habermas. Seria de esperar que Habermas, principal herdeiro da “teoria crítica” da primeira Escola de Frankfurt, partilhasse o pessimismo dos fundadores – Max Horkheimer (1895-1973) e Theodor Adorno (1903-1969) – no que toca à cultura e ao que Bento XVI chamará de consequências do desmembramento da razão: o pensamento reificado e instrumentalizador; o pensamento científico que deixa de lado a moral e a estética; a cultura de massas, contrária à emancipação dos indivíduos etc. Ora, Habermas não partilha esse pessimismo. Atento como seus predecessores às ciências humanas, ele vê na diversidade das disciplinas a condição mesma de uma razão competente porque limitada. Entre o sujeito que pensa e a realidade objetiva, há a linguagem – que não é assimilada ao Lógos antigo – e a comunicação. Os meios de comunicação de massa situam-se assim no coração desse processo em que a cultura pode ou ser manipulada pelo dinheiro e pelos poderes ou fazer valer o mundo vivido e a razão emancipadora. ATeoria do agir comunicativo elabora assim as condições de uma ética de comunicação sem dominação externa abusiva. Em que medida seria então possível dar lugar às tradições religiosas, apoiadas sobre uma revelação superior à razão? É o que esclarece o diálogo com Ratzinger. Aparentemente, os dois protagonistas partilham as mesmas convicções sobre um respeito mútuo das competências. Mas eles diferem sobre os fundamentos dessa “autolimitação”. Com efeito, ambos buscavam responder à questão posta pelos organizadores do debate: “o Estado democrático e secularizado nutre-se de pressupostos normativos que ele mesmo é incapaz de garantir?”.
A resposta de Habermas é “não”, e em nome da razão. Mas ele não rejeita por isso a contribuição das religiões ao debate no espaço público. Para ele, a autolimitação da razão não vem de sua incompetência sobre as questões de fundo abordadas também pela religião, mas, ao contrário, da compreensão moderna de sua competência: uma razão não pode ter pretensão de validade a menos que aceite as diversas disciplinas (em particular as ciências humanas) que exercem sua competência em um campo definido e limitado. É justamente porque ela se sabe limitada e falível que a razão pode abrir-se a uma alteridade. “Sem haver intenção teológica no ponto de partida, uma razão que interiorize seus limites vai além de si mesma sobre caminhos rumo a algo de outro que ela mesma”. Essa autolimitação da razão moderna supõe, por outro lado, que as proposições de tipo religioso sejam expressas em uma linguagem argumentada diante da razão e no espaço público.
O raciocínio de Ratzinger segue outro caminho. Partindo da violência infligida à sociedade pelas “patologias” da religião (os fundamentalismos) e pelos excessos da razão técnica (o terrorismo), ele estima que “a razão também deve ser lembrada de seus limites e aprender uma capacidade de escuta com relação às grandes tradições religiosas da Humanidade”. A razão é limitada, aqui, do exterior e não do interior. Ratzinger aceita, pois, uma forma de racionalidade universal, sem referência a uma fé em particular, mas que estaria em correlação com uma dimensão religiosa que se encontra em todas as culturas (a interculturalidade).
Ambos, portanto, abrem caminhos novos de reflexão e ação.
Uma nova abordagem
Foi em seu discurso aos bispos da Ásia, em Hong Kong, 1993, que Ratzinger desenvolveu essa ideia de interculturalidade oposta por ele à noção de “inculturação da fé” em voga depois do Concílio Vaticano II. Segundo sua análise, não existe fé pura, independentemente de uma cultura, e vice-versa. A missão cristã não tem por objetivo transplantar o cristianismo ocidental (fé e cultura mescladas) em outras culturas cuja dimensão religiosa seria ignorada. Essa abordagem das culturas por suas relações mútuas necessárias e o respeito das diversas tradições religiosas relativiza, de um só golpe, o cristianismo sob sua forma ocidental, e eleva ao mesmo tempo a figura de Cristo, Lógos semeado por toda parte. Deixa ao mesmo tempo o desejo de que haja outra coisa do que um choque de culturas e religiões.
Habermas distinguia três abordagens diferentes da validação da verdade (abandonando assim o “credo metafísico” de uma linguagem dominada pela unidade em detrimento da multiplicidade): a relação ao mundo objetivo (a verdade tradicional), as relações entre sujeitos na interatividade (a justeza normativa) e a sinceridade (autenticidade) no discurso de cada um. Essa diferenciação reencontra aquela enfatizada por Ratzinger e que o cristianismo introduz em seu discurso sobre o domínio da criação (relação ao mundo confiado ao ser humano com todas as suas fontes – seculares – da ciência e das técnicas), da revelação (interatividade entre sujeitos e culturas) e da redenção ou salvação (que supõe que o ser humano, falível, encontre a autenticidade pela conversão e o perdão). No entanto, a prática dos Estados e das religiões desafia o pessimismo de um e o otimismo do outro.
Tradução de Juvenal Savian Filho
Bernard Lauret
é filósofo e teólogo, doutor pela Universidade de Munique,
ex-diretor literário das Éditions du Cerf (Paris)

Artigo retirado da Revista Cult, ed. 177.

sábado, 8 de setembro de 2012

VAMOS REINVENTAR SÃO LUÍS!



Por Rogério Henrique Castro Rocha



Tenho uma ideia! Proponho reinventar São Luís!

Reinventemos, a partir desta data, a ilha em que vivemos!

Vamos todos refundá-la! Seu renascimento deverá, contudo, seguir determinados princípios, pautar-se por certos critérios!

Comecemos por riscar das páginas dos livros os falsos herois, os líderes de fachada, os usurpadores. Deixemos a eles apenas a memória daquilo que devamos saber para, assim, termos em mente o que não mais deverá ser repetido.

Tiremos do diário recluso do esquecimento as histórias e estórias dos perseguidos, dos banidos, dos mortos, dos massacrados. Ergamos monumentos àqueles que, solidária e solitariamente, contribuíram para a construção de nossa história.

Redesenhemos o nosso espaço, traçando novos caminhos, novas rotas, outras vias, mais simples e singulares, para que saibamos de fato de onde partimos e onde queremos chegar.

Vamos, todos, reconstruir os corroídos monumentos, levantar dos destroços as nossas velhas casas, tingir de novas cores as imagens de desgastados retratos. Tenhamos coragem, gana e garra, para destruir alguns inúteis ornamentos, trazer abaixo os palacetes fantasmagóricos, que nos contam coisas que não queremos mais ouvir. Somente assim, sem medo, sem peias, teremos a chance de moldar o novo.

Enriqueçamos, com multicultural felicidade, o nosso código genético, forjando os neoludovicenses, somando os sangues e as peles, recompondo fenótipos, para forjarmos o povo de amanhã.

Celebremos com aqueles que, vindos de todos os cantos do país, de vários recantos do mundo, escolheram morar nessas plagas, começar uma nova vida, empreender projetos de crescimento pessoal e social.

Tenhamos claro, de hoje em diante, que não é preciso apenas, como alguém já disse, “amar a cidade”. É necessário, é urgente, inadiável, agir pela cidade, intervir pela cidade, fazer acontecer aquilo que queremos que seja a cidade.

Convoco, portanto, a todos os irmãos e irmãs desta ilha, aos que a ela estão inexoravelmente ligados, a refundá-la. A recontar seus mitos originários, interpretando-os sob uma nova perspectiva. Para que, então, sucumba, de uma vez por todas, a serpente imaginária. E para que a ilha sobreviva. Para que a ilha permaneça. Para que a ilha enfim seja o doce lugar do nosso futuro.

BREVIÁRIO DOS 400 ANOS


Por Manoel Barros Rabelo Neto*



Ando sem rumo pela cidade antiga, passos inexatos, pelas ruas tortuosas e estreitas. A noção de tempo e espaço deixados para trás, caminho com passos vacilantes, incertos, desconexos... lembranças de um tempo que já passou, dos sobrados que murmuram lamentos, das pedras de cantaria que sentiram os pés dos negros sofridos com os açoites inclementes, os mirantes que observavam os contrabandos, os pontais de pombos açorianos que queriam voltar para a terra-mãe, as sacadas que tanto presenciaram os namoros de gargarejo, os frades de pedra que representavam a virilidade dos patrícios, ouço um tropel que de longe se anuncia, de cavalos pretos que soltavam fogo pelas ventas, um séquito de esqueletos, a carruagem de Nha Jansa. Os tambores ecoam no ar da ilha, afinados a fogo, tocados a murro, dançados a coice e chão. Envelheço na cidade que minha vida contém. Somos um, somos o todo, de todos os rostos que nela vagam, dos luminares do sol poente na Beira-mar, dos pregoeiros a gritar suas rimas de vendedores, dos amores havidos e desfeitos no largo do Carmo, da voz poderosa dos amos dos bois que enaltecem tua história em suas toadas. Terra das encantarias, ilha da magia, dos amores, dos azulejos, dos poetas e bardos que se encontravam em tuas vielas e se perdiam na boemia de tuas noites estreladas... vivo e sofro contigo, das dores que tu padeces de gente que não te ama e te engana, que deixa teus sobrados desabarem, tuas ruas sangrarem e tua beleza macular. 400 anos e muitos dos teus filhos ainda não aprenderam a te amar. Te acho sempre bela. Tua beleza se impõe ao escárnio e ao malfeito, meu coração sempre a ti pertenceu, meus sonhos se realizam ante tuas vistas, a tua história embalou versos de romances, de alegrias, de tristezas, de despedidas. Na medida exata tu me encantas, me abraças, me faz sorrir. Quero sempre voltar a ti, minha querida São Luís, te exaltar em cantos e versos e quando não mais aqui eu estiver, que minha posteridade renove esse amor, finque raízes profundas, receba tuas dádivas e ofereça uma prece de agradecimento a Deus pelo teu acolhimento sempre gentil. Ouvi guerreiros Timbiras, meu canto de vida, meu canto de vida, guerreiros ouvi, corram livres as lágrimas que choro, estas lágrimas, sim, que não desonram, são lágrimas de felicidade de alguém que sempre te ama, que clama por bênçãos que caiam sobre ti.


* Bacharel em Geografia (UFMA), servidor público, sindicalista.

sábado, 7 de julho de 2012

Sobre a Condição Mecânica



Em 1962, era lançado o livro ‘Laranja Mecânica’, de Anthony Burgess, que ganhou grande notoriedade com o lançamento do filme homônimo em 1971, sob a direção de Stanley Kubrick.  Embora décadas tenham se passado desde então, as temáticas abordadas pela obra original e pela sua adaptação cinematográfica – dentre as quais figuram o livre-arbítrio e o condicionamento psicológico – permanecem ainda extremamente atuais. Sinal claro disso é a publicação, na edição do mês passado da The New Yorker, de uma seção aberta a comentários de Burgess.
O título da matéria, ‘The Clockwork Condition’ – algo como ‘A Condição Mecânica’ – faz referência à obra mais famosa do autor e ressalta as suas muitas preocupações que serão trabalhadas ao longo do texto, dentre as quais, os perigos e os dilemas morais pertinentes ao condicionamento humano. Burgess começa fazendo uma sinopse de sua obra. Trata-se da trajetória de um delinquente, Alex, que aterroriza as ruas de uma grande cidade à noite, roubando, vandalizando, estuprando e, eventualmente, matando. Ele é preso e punido, mas o Estado não se contenta meramente com a sua prisão e decide aplicar ao anti-herói uma terapia de aversão, que comprovadamente eliminaria quaisquer propensões criminais para sempre.
Alex é, assim, submetido a sessões de terapia, nas quais são injetadas nele substâncias que provocam fortíssimas náuseas, enquanto é forçado a assistir a cenas de violência ao som de música clássica. Conforme esperado, o resultado desse procedimento é que logo ele não consegue mais contemplar cenas de violência sem se sentir desesperadamente mal. Além disso, como o seu desejo sexual sempre esteve associado a traços de agressão, ele não mais consegue ver uma desejável parceria sexual sem ficar enjoado. O tratamento chega até mesmo a privá-lo de um dos seus maiores prazeres: ouvir as sinfonias de Beethoven, que Alex também passa a associar ao seu enorme mal-estar.
É nesse ponto que Burgess, na matéria da The New Yorker, conclui o óbvio – por mais que se queira, homens não são máquinas, e há uma grande dificuldade em isolar alguns impulsos de outros. Para o autor, o Estado passa dos limites quando inibe o prazer experimentado por Alex ao som daquilo que ele considerava a sublimação do belo: a música. Ao tentar inibir instintos violentos, o aparato estatal buscava livrar a sociedade de uma constante ameaça; já a eliminação do seu prazer em ouvir musica clássica em nada melhoraria a sociedade, figurando como um terrível efeito colateral.
É justamente ao som da Nona Sinfonia que Alex, enlouquecido, tenta se suicidar. Diante dessa situação, segmentos da sociedade se compadecem e Alex é submetido a outro tipo de terapia, que o restaura à sua condição anterior de ‘liberdade’. Ao final do romance, o protagonista imagina outros mais elaborados padrões de violência – o curioso, porém, é que Burgess ressalta a sua intenção de que esse fosse um final feliz. Explica-se: seria melhor ser uma pessoa má pelo livre-arbítrio do que ser uma pessoa boa através de lavagem cerebral científica.
O ponto do condicionamento humano, que Burgess chama de lavagem cerebral científica, é justamente um dos mais interessantes e relevantes para os tempos atuais abordados na história. É também em relação a isso que o autor dialoga com B. F. Skinner, na obra deste último ‘Para Além da Liberdade e da Dignidade’. Para Skinner, haveria inúmeros benefícios em um condicionamento positivo do ser humano – ou seja, haveria vantagens utilizando-se apenas estímulos positivos em resposta a comportamentos desejados. Segundo ele, seria evidente que o comportamento humano precisaria mudar; e, para isso, seria também necessário o que chamou de tecnologia de comportamento humano.
O que importaria, portanto, seria a exteriorização do ser humano, particularmente aquilo que faz um item do seu comportamento levar a outro. É em relação a essa exteriorização que o condicionamento positivo agiria: levaria a respostas instintivas condicionadas, não a reações racionais. No argumento de Skinner, apenas o condicionamento negativo transformaria o protagonista de ‘Laranja Mecânica’ em um modelo nauseado de não agressão.  Estabelece-se, assim, um diálogo entre Skinner e Burgess – o primeiro defende a técnica e toma-a como necessária para a sobrevivência da humanidade; o segundo repudia-a em suas versões positiva e negativa, preferindo preservar o campo de escolhas a ceder às mecanicidades do behaviorismo.
Embora a matéria de Burgess adentre algumas outras discussões profundas e dialogue também com outros autores – a exemplo de George Orwell, em seu ‘1984’, trabalhando a o caráter intolerável do fardo de escolher –, aqui o foco será o condicionamento humano. Tal escolha se dá pela pertinência dessa discussão em relação a um assunto já debatido no ERA, em textos de Roberta Avillez e Bennett Foddy  (este último em tradução autorizada): a gamificação. Trata-se de uma tendência de introduzir mecanismos de games na interação de setores da sociedade – tais como o empresarial – com a população.
Por esses mecanismos, pequenas recompensas são distribuídas às pessoas quando elas têm um comportamento desejado; estabelece-se uma espécie de competição entre o público-alvo, com o vencedor sendo aquele que acumulou mais recompensas por agir de um modo valorizado por quem promove esse ‘jogo’ na vida real. Em última instância, o que está em disputa é uma forma de condicionamento humano: apela-se para os instintos mais competitivos do ser humano, de forma que ele busque se destacar no processo e, para isso, aja conforme o esperado para acumular pequenas recompensas.
A gamificação já vem sendo questionada atualmente, especialmente em relação ao seu uso constante pelas grandes corporações. Conforme trabalhado nos textos citados sobre o assunto, parece haver um dilema moral em relação ao uso dessa estratégia para atingir determinados fins. Enquanto a preocupação em relação à gamificação corporativa reside no fato de as pessoas serem condicionadas a fazerem o que seria mais benéfico para as empresas, preocupação semelhante é expressa em ‘Laranja Mecânica’ quanto ao uso do condicionamento pelo governo, mesmo que visando o bem da sociedade.
Seja em uma ou em outra situação, o que está em debate é o limite entre a liberdade de escolher e a resposta mecanicamente condicionada – em uma referência ao título da obra mais famosa de Burgess, a fronteira entre a organicidade do ser humano e a mecanização que se tenta impor a ele. Kubrick, diretor da adaptação cinematográfica desse livro, trata o mesmo como uma sátira social referente à questão da psicologia behaviorista e do condicionamento psicológico como novas armas para um governo totalitarista impor vasto controle sobre os cidadãos e os transformar em pouco mais que robôs.
A referência de Kubrick aos governos totalitários parece se estender a várias esferas do mundo contemporâneo – se o pensamento da época de lançamento do filme era marcado pela preocupação com o totalitarismo, o de hoje volta-se para um condicionamento cada vez maior implantado pelos mais diversos setores sociais, como mostra a questão da gamificação. Parece propício que, logo no início de sua matéria da The New Yorker, Burgess tenha situado o período em que se passa ‘Laranja Mecânica’ da seguinte forma: ‘This city could be anywhere, but I visualized it as a sort of compound of my native Manchester, Leningrad, and New York. The time could be anytime, but it is essentially now’.(Tradução nossa: Essa cidade poderia estar em qualquer lugar, mas eu a visualizei como um misto da minha Manchester natal, Leningrado e Nova Iorque. O tempo poderia ser qualquer um, mas é essencialmente o atual)
Referência:
Anthony Burgess, “The clockwork condition”, The New Yorker, 4 de junho de 2012.
Fonte: era.org.br

segunda-feira, 7 de maio de 2012

A terceira crise do capitalismo


 Por Frei Betto - do Rio de Janeiro

capitalismo
Nos países ricos se acentuam o déficit fiscal, o desemprego (24,3 milhões de desempregados na União Europeia), o endividamento dos Estados
A atual crise econômica do capitalismo manifestou seus primeiros sinais nos EUA em 2007 e já faz despontar no Brasil sinais de incertezas.
O sistema é um gato de sete fôlegos. No século passado, enfrentou duas grandes crises. A primeira, no início do século XX, nos primórdios do imperialismo, ao passar do laissez-faire (liberalismo econômico) à concentração do capital por parte dos monopólios. A guerra econômica por conquista de mercados ensejou a bélica: a Primeira Guerra Mundial. Resultou numa “saída” à esquerda: a Revolução Russa de 1917.
Em 1929, nova crise, a Grande Depressão. Da noite para o dia milhares de pessoas perderam seus empregos, a Bolsa de Nova York quebrou, a recessão se estendeu por longo período, com reflexos em todo o mundo. Desta vez a “saída” veio pela direita: o nazismo. E, em consequência, a Segunda Guerra Mundial.
E agora, José?
Essa terceira crise difere das anteriores. E surpreende em alguns aspectos: os países que antes compunham a periferia do sistema (Brasil, China, Índia, Indonésia), por enquanto estão melhor que os metropolitanos. Neste ano, o crescimento dos países latino-americanos deve superar o dos EUA e da Europa. Deste lado do mundo são melhores as condições para o crescimento da economia: salários em elevação, desemprego em queda, crédito farto e redução das taxas de juros.
Nos países ricos se acentuam o déficit fiscal, o desemprego (24,3 milhões de desempregados na União Europeia), o endividamento dos Estados. E, na Europa, parece que a história –para quem já viu este filme na América Latina– está sendo rebobinada: o FMI passa a administrar as finanças dos países, intervém na Grécia e na Itália e, em breve, em Portugal, e a Alemanha consegue, como credora, o que Hitler tentou pelas armas – impor aos países da zona do euro as regras do jogo.
Até agora não há saída para esta terceira crise. Todas as medidas tomadas pelos EUA são paliativas e a Europa não vê luz no fim do túnel. E tudo pode se agravar com a já anunciada desaceleração do crescimento de China e consequente redução de suas importações. Para a economia brasileira será drástico.
O comércio mundial já despencou 20%. Há progressiva desindustrialização da economia, que já afeta o Brasil. O que sustenta, por enquanto, o lucro das empresas é que elas operam, hoje, tanto na produção quanto na especulação. E, via bancos, promovem a financeirização do consumo. Haja crédito! Até que a bolha estoure e a inadimplência se propague como peste.
A “saída” dessa terceira crise será pela esquerda ou pela direita? Temo que a humanidade esteja sob dois graves riscos. O primeiro, já é óbvio: as mudanças climáticas. Produzidas inclusive pela perda do valor de uso dos alimentos, agora sujeitos ao valor de compra estabelecido pelo mercado financeiro.
Há uma crescente reprimarização das economias dos chamados emergentes. Países, como o Brasil, regridem no tempo e voltam a depender das exportações de commodities (produtos agrícolas, petróleo e minério de ferro, cujos preços são determinados pelas transnacionais e pelo mercado financeiro).
Neste esquema global, diante do poder das gigantescas corporações transnacionais, que controlam das sementes transgênicas aos venenos agrícolas, o latifúndio brasileiro passa a ser o elo mais fraco.
O segundo risco é a guerra nuclear. As duas crises anteriores tiveram nas grandes guerras suas válvulas de escape. Diante do desemprego massivo, nada como a indústria bélica para empregar trabalhadores desocupados. Hoje, milhares de artefatos nucleares estão estocados mundo afora. E há inclusive minibombas nucleares, com precisão para destruições localizadas, como em Hiroshima e Nagasaki.
É hora de rejeitar a antecipação do apocalipse e reagir. Buscar uma saída ao sistema capitalista, intrinsecamente perverso, a ponto de destinar trilhões para salvar o mercado financeiro e dar as costas aos bilhões de serem humanos que padecem entre a pobreza e a miséria.
Resta, pois, organizar a esperança e criar, a partir de ampla mobilização, alternativas viáveis que conduzam a humanidade, como se reza na celebração eucarística, “a repartir os bens da Terra e os frutos do trabalho humano”.
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Gleiser, de “Conversa sobre a fé e a ciência” (Agir), entre outros livros. www.freibetto.org – Twitter:@freibetto.
Fonte: Correio do Brasil

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