Quanto mais leio sobre neurociência, mais me aproximo da perigosa ideia de que a Justiça é uma impossibilidade teórica.
Comecemos abordando um caso que estampou o noticiário das últimas semanas. Falo da famosa marcha da maconha, vetada pelo Judiciário em várias cidades do Brasil. Só em São Paulo isso aconteceu duas vezes em menos de um mês.
A pergunta que não quer calar é: juízes podem ou não proibir a realização de marchas da maconha? A resposta, leitor, depende da sua coloração ideológica, mais especificamente dos trechos da legislação que seu cérebro está disposto a valorizar e quais prefere ignorar.
Os magistrados que optaram por banir o evento se apoiaram no parágrafo 2º do artigo 33 da lei nº 11.343/06, que veda "induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga".
Isso significa que fecharam os olhos para o inciso XVI do artigo 5º da Constituição, que reza: "Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente".
Fizeram ainda vistas grossas ao inciso IV do mesmo artigo, que determina a plena liberdade de manifestação do pensamento, vedando apenas o anonimato. Este mandamento é reforçado pelo artigo 220.
É claro que não existem direitos absolutos, mas os liberais temos um argumento forte aqui ao lembrar que, pelo menos em teoria, normas previstas na Carta prevalecem sobre a legislação infraconstitucional.
Mais do que isso, os defensores da marcha podem arrazoar que os juízes não apenas desconheceram a Constituição como ainda ignoraram a diferença semântica elementar entre instigar à prática de um delito e defender uma mudança nas normas para que o que até então era considerado crime deixe de sê-lo --o propósito declarado da manifestação.
Os magistrados, é claro, podem contra-argumentar afirmando que um ato público pela legalização da maconha acabaria incorrendo em atos de louvor à erva. É possível e até provável, mas, no momento da decisão, isso não era mais do que um exercício de clarividência. Pelo menos sob a ótica liberal, parece pouco para proibir previamente uma manifestação, que, nos termos do mais sagrado dos artigos da Carta, o 5º, prescinde até de autorização.
Se a preocupação é essa, faria mais sentido determinar alguma vigilância, com vistas a punir "a posteriori" quem tivesse extrapolado.
Deixemos, porém, a barafunda jurídica para o Supremo Tribunal Federal que, mais dia menos dia, julgará o caso e nos concentremos na psicologia por trás dos pensamentos conservador e liberal.
Peço agora licença para descrever uma experiência curiosa e elucidativa. O psicólogo Richard Wiseman, da Universidade de Hertfordshire, resolveu espalhar 240 carteiras pelas ruas de Edimburgo. Elas não continham dinheiro, apenas documentos de identidade, cartões de fidelidade, bilhetes de rifa e fotografias pessoais. A única variação eram as fotos. Algumas das carteiras não tinham foto nenhuma (era o grupo controle) e outras traziam imagens que podiam ser de um casal de velhinhos, de uma família reunida, de um cachorrinho ou de um bebê.
A meta do experimento era descobrir se a fotografia afetaria a taxa de devolução das carteiras. Num mundo perfeitamente racional, a imagem seria irrelevante. Devolve-se o objeto perdido porque é a coisa certa a fazer. O trabalho de colocá-lo numa caixa de correio não é tão grande assim e é o que gostaríamos que os outros fizessem, caso fôssemos nós que tivéssemos perdido os documentos.
É claro, porém, que as fotografias influíram nos resultados. Foram devolvidas apenas 15% das carteiras sem foto, pouco mais de 25% das que traziam a imagem dos velhinhos, 48% das da família, 53% das do filhotinho e 88% das do bebê.
O experimento ilustra bem a forma como o cérebro opera. Embora tenhamos nos acostumado a pensar que tomamos decisões pesando os prós e contras de cada uma das alternativas possíveis e com base nisso extraindo uma conclusão, o que os estudos neurocientíficos mostram é que, na maioria das ocasiões, a parte inconsciente de nossas mente chega imediatamente a uma conclusão, mediada por sentimentos, palpites ou intuições. Em seguida a porção racional de nossos cérebros se põe a procurar e elaborar argumentos racionais (ou quase) para justificar essa conclusão. É muito mais uma conta de chegada do que um cálculo honesto.
Quem trabalha bem essa questão é o neurocientista Michael Gazzaniga. Ele localizou no hemisfério esquerdo uma série de estruturas que seriam responsáveis por dar sentido ao mundo. O pesquisador as chama de "intérprete do hemisfério esquerdo", mas um outro nome aceitável é "cérebro sabichão". É ele que busca desesperadamente dar um sentido unificado a todas as nossas experiências, memórias e fragmentos de informação. Ele nos faz deixar de ver as leis que não nos interessam e atribui enorme peso a tudo o que apoia sua tese. Quando a história não fecha, pior para a verossimilhança: o intérprete não hesita em criar desculpas esfarrapadas e explicações que beiram o "nonsense".
Quem resume bem a situação é Robert Wright, em "Animal Moral": "O cérebro é como um bom advogado: dado um conjunto de interesses a defender, ele se põe a convencer o mundo de sua correção lógica e moral, independentemente de ter qualquer uma das duas. Como um advogado, o cérebro humano quer vitória, não verdade; e, como um advogado, ele é muitas vezes mais admirável por sua habilidade do que por sua virtude".
Bem, se somos todos advogados de nossos sentimentos e intuições sobra alguém para julgar de forma isenta as discordâncias entre as pessoas? Se você enfatizar muito o "de forma isenta" a resposta é não. Somos todos prisioneiros de nosso psiquismo. Um juiz perfeitamente neutro e objetivo é impossível, como já apontavam os hegelianos e, principalmente, os marxistas.
Daí não decorre, porém, que não possamos selecionar entre melhores e piores candidatos a magistrado. Uma das mais notáveis características humanas, afinal, é a variedade de tipos psicológicos e de personalidade.
De acordo com Jonathan Haidt, da Universidade de Virgínia, é difícil mas não impossível ir contra nossas conclusões automáticas. As chances aumentam quando a pessoa tem boa capacidade analítica e, principalmente, intuições morais fracas a respeito do mundo. Em poucas palavras, se queremos um juiz que seja pelo menos capaz de ouvir adequadamente as duas partes em um processo, precisamos em primeiro lugar afastar os mais radicais, isto é, aqueles que têm uma opinião forte sobre as coisas. Mais do que um "esteio moral da sociedade" a escolha ideal é alguém que não seja totalmente seguro a respeito de suas próprias ideias. O risco aqui, é claro, é que a última parte a arguir sempre vença. Mas, como eu disse no início, o mundo não é um lugar perfeito, e a Justiça está muito perto de ser uma impossibilidade teórica.
Cuidado. Essa conclusão quase pessimista não implica que devamos abandonar por completo até mesmo a ideia de um sistema judicial. Como a democracia, ela é algo que funciona, ainda que não pelas razões que gostaríamos. O simples fato de transferirmos em comum acordo para um terceiro partido (o Estado) o poder de arbitrar disputas já é um poderoso freio a rixas que não raro descambam para a violência e impasses que desorganizam a sociedade.
Mesmo que as decisões sobre quem tem ou não razão num litígio fossem tomadas por sorteio e não com base em leis, isso já seria preferível a deixar que as partes resolvessem diretamente a contenda. E, no fundo, talvez seja exatamente isso. Como mostram as dissonantes decisões sobre a marcha da maconha Brasil afora, o que acaba determinando se ela pode ou não acontecer, muito mais do que as leis e precedentes, é a definição do magistrado que vai julgar a causa. Se cai com um liberal, tudo bem; se é um conservador, liminar nela. É claro que o processo tende a ficar um bocadinho menos aleatório quando se avança na hierarquia judiciária e aparecem os acórdãos e as súmulas. De toda maneira, não parece um exagero afirmar que, diante da capacidade das pessoas para extrair sua interpretação favorita de não importa qual corpo de texto escrito, leis são bem menos relevantes do que parecem à primeira vista.
Hélio Schwartsman, 44 anos, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha.com.
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