segunda-feira, 6 de junho de 2011

Além da reprodução: o cineclubismo e a socialização da arte cinematográfica

Reproduzo aqui um excelente artigo de autoria de Raíla Silva Maciel, nossa querida ex-aluna, hoje cursando Comunicação Social, habilitação em jornalismo, pela Universidade Federal do Estado do Maranhão. O referido artigo foi recentemente apresentado na Semana de Comunicação Social daquela universidade e tem por objetivo lançar algumas reflexões acerca do movimento cineclubista e da dificuldade de acesso aos produtos da sétima arte por parte das camadas sociais menos favorecidas da sociedade brasileira.











Além da reprodução: o cineclubismo e a socialização da arte cinematográfica


Raíla Silva Maciel[1]

Palavras- chave: arte cinematográfica, socialização, cineclubismo.

Vivemos em uma sociedade pós-moderna cercada pelas possibilidades – positivas e negativas - abertas pelas novas tecnologias. A reprodutibilidade técnica, outrora criticada por teóricos como Walter Benjamin, que anunciava o fim da aura e a dessacralização da obra de arte (BENJAMIN, 1955), ganha agora o caráter digital em que as obras de arte se tornam mais acessíveis com a internet.

No caso específico do cinema, observamos o aumento do acesso à tecnologia digital, que permite a produção de cópias próprias, armazenamento e troca de arquivos e desencadeia um processo marcado pela individualização do consumo que, somado à escassez de espaços para a contemplação coletiva, dificulta a socialização da arte cinematográfica.

Levando-se em consideração a formação cultural que tivemos no processo de modernização da sociedade brasileira, em especial no Maranhão, questionamos a qualidade da experiência artística obtida neste momento, principalmente quando nos voltamos às produções que estão fora do circuito comercial.

Como analisam Fernando Krum e Gilvan Dockhorn, em sua Proposta de Contabilização de Público e Espaços Cineclubistas[2], há uma contradição no que diz respeito ao acesso e à percepção do cinema na sociedade pós-moderna brasileira.

Isso é um paradoxo, pois, o avanço da tecnologia de produção, armazenamento, cópia, circulação e distribuição de conteúdos por um lado ampliou, sem precedentes, a possibilidade de acesso às produções culturais sem intermediários e mais precisamente o acesso à informação. Por outro lado, criou um mecanismo de fruição individualizada, estéril de debate, sendo, o debate e a troca, a base de construção de conhecimento. (KRUM; DOCKHORN, 2010)


O aumento do acesso aos produtos culturais e a intensificação da reprodutibilidade técnica e digital, garantem uma experiência artística satisfatória? Quais as condições sociais, culturais e pedagógicas oferecidas para que esse público estabeleça uma relação interpretativa das dimensões da obra de arte?

Subsídios para uma análise

Para refletirmos sobre essas questões, precisamos analisar os conceitos que estão intrinsecamente ligados ao processo histórico pelo qual passamos. Nestor García Canclini afirma que “a América Latina passou por um modernismo exuberante com uma modernização deficiente” (CANCLINI, 1997, p. 67), disso resultou uma evolução desequilibrada da sociedade em que apenas uma minoria teve acesso, de fato, à democratização da cultura.

Um retrato desse processo pode ser observado na desigualdade com que os brasileiros têm acesso às produções audiovisuais. Um estudo realizado pelo Ministério da Cultura (Minc), em 2010, mostra que a região sudeste do país possui 1244 salas comerciais de cinema, sendo que os estados de São Paulo e Rio de Janeiro concentram 1002 destas salas, enquanto a região norte possui apenas 60, sendo que 25 delas são distribuídas em seis estados (Alagoas, Rondônia, Tocantins, Amapá, Roraima e Acre).

Os dados apontam que apenas 10% dos municípios brasileiros possuem salas comerciais de exibição e a maioria está concentrada nas regiões Sul/Sudeste. Como constatam Fernando Krum e Gilvan Dockhorn “a distribuição da produção audiovisual no Brasil demonstra como a socialização da cultura segue os mesmos parâmetros das demais desigualdades observadas no país” (Krum e Dockhorn, 2010).

No estado do Maranhão, essa demonstração de desigualdade de acesso aos bens culturais imateriais é ainda mais evidente e reforçada por um processo histórico que negligenciou a educação e formação crítica e política. O levantamento do Minc demonstra que apenas 1,38% dos municípios maranhenses possuem salas de exibição comercial, a maior parte concentrada na cidade de São Luís, capital do estado.

 O estudo concluiu ainda que pouco mais de 10% da população brasileira freqüenta as salas de cinema comercial e mais de 60% da população com idade entre 15 e 29 anos nunca foi ao cinema. Em paralelo, houve um aumento do consumo doméstico de produtos audiovisuais. A possibilidade de baixar filmes pelo computador, com baixo custo, faz com que as pessoas vejam mais filmes, embora não permita a discussão e o compartilhamento de idéias.

O que se percebe, no caso particular do Maranhão, é que as pessoas não vão ao cinema, pela falta de condições financeiras e/ou pela falta de hábito. O reflexo de uma educação cultural que distancia o indivíduo das produções artísticas é a falta de investimentos da indústria cultural nos espaços destinados a essa experiência, já que eles se tornam pouco lucrativos.

Possíveis mudanças

Diante deste cenário, questionamos se há a possibilidade de reverter essa realidade, assumindo as contradições e o hibridismo dos diferentes setores sociais. Como pergunta Canclini, “é possível impulsionar a modernidade cultural quando a modernização socioeconômica é tão desigual?” (CANCLINI, 1997, p.70).

Iniciativas que, dentro de suas possibilidades, tentem preencher a lacuna cultural existente, não apenas proporcionando o acesso à arte, mas estimulando a educação, com uma proposta pedagógica diferenciada, tendo a consciência de que é por ela que se constrói o saber humano, podem ser uma alternativa importante.

Sabemos que as transformações econômicas, tecnológicas e sociais buscam a democratização e o desenvolvimento da participação popular. Em certo grau, as produções simbólicas tornaram-se mais acessíveis com a internet e com a concepção de informação trazida pelas novas mídias.

As novas tendências artísticas substituem o individualismo do gênio criador pela criação coletiva, participativa e interativa. Esse processo faz parte da socialização da arte e da democratização da cultura, propostas pela indústria cultural na pós-modernidade. A obra de arte sai do patamar metafísico da produção de um gênio e passa a ser vista como um produto resultante das condições sociais e culturais do momento histórico.

Desse modo, o público é convidado a participar do processo de criação artística e a sua relação com a obra deixa de ser meramente contemplativa. Entretanto, para participar de maneira satisfatória deste novo processo de criação e interpretação da obra de arte, o público precisa ter os subsídios necessários.

Não se trata apenas da possibilidade de reprodução que aumenta o acesso aos bens culturais imateriais, mas é preciso que sejam dadas ao indivíduo elementos que o permitam decodificar os objetos estéticos e interpretá-los, de acordo com seu contexto e com a sua vivência. Desta forma, concordamos que o acesso aos bens simbólicos precisa ir além da reprodução.

Além da reprodução

Tomamos a consciência de que a relação dos indivíduos com a reprodutibilidade das produções artísticas, dentro do atual contexto social e histórico, ultrapassa as questões da dessacralização da obra, tão questionada por Benjamin, no século XX.

Mais do que perda da aura artística, preocupa-nos neste momento a apreensão da obra de arte em suas dimensões estéticas e interpretativas. Segundo Canclini, as definições de aura da obra de arte, defendidas por Benjamin, caducaram (CANCLINI, 1980, pg.10).

Assim, adotamos a concepção de que o gosto pela obra de arte e a sua contemplação possui uma origem social. A experiência estética depende da intervenção do sujeito que a percebe, mas, para isso, o sujeito precisa ter um acervo cultural que o permita assimilar as dimensões simbólicas contidas no objeto.

A fruição estética de uma obra depende da capacidade de percepção da arte, que passa por uma construção pedagógica. Neste ponto ressalta-se o estímulo que o indivíduo deve ter, desde criança, às produções artísticas, na sua formação educacional.

Se forem dadas as condições adequadas e os subsídios necessários ao público, ele terá a capacidade de perceber, de maneira satisfatória, o objeto artístico em todas as suas dimensões: da fruição à interpretação, do contemplativo ao reflexivo.

A proposta cineclubista

O cineclubismo se constitui como uma proposta que pode atenuar as desigualdades de acesso aos produtos audiovisuais, uma vez que se sustenta na democratização do acesso, possibilitada pela apropriação crítica dessa produção simbólica, através da troca e construção de conhecimento contido no diálogo.

Ao mesmo tempo, a prática cineclubista permite a contemplação coletiva da produção artística cinematográfica, estimula a participação criadora, oferecendo subsídios que facilitam a interpretação e a construção de conceitos a partir da análise do objeto.

O cineclubismo garante a aproximação do público com a arte cinematográfica e representa um avanço na consciência política que observa as contradições e diversidades sociais, colocando-se como uma alternativa a esse modelo excludente.

Oferecendo as ferramentas de conhecimento necessárias, a prática cineclubista tem como proposta a formação de público, que vai além do aumento de espectadores, mas permite a contemplação crítica da obra cinematográfica com a interpretação dos conceitos sugeridos na sua concepção e relacionando esses conceitos à sua realidade.

Essas características singularizam a atividade cineclubista das outras formas de exibição audiovisual pautadas pelo mercado, lucro e ausência de reflexão e debate. O cineclube, além, disso propõe produzir, distribuir e modificar a cultura, devolver aos sujeitos sua capacidade de controlar seus meios de produção simbólica. (Krum e Dockhorn, 2010)

Como avalia Canclini, “Se o gosto pela arte, e por certo tipo de arte, é produzido socialmente, a estética deve partir da análise crítica das condições em que se produz o artístico” (CANCLINI,1980, p.11 ). Dessa forma, a prática cineclubista pretende formar um público que reflita seus consumos e, com isso, estimule a produção e a distribuição democrática da arte.


   
REFERÊNCIAS


BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica. Disponível em: http://migre.me/4zPcu. Acessado em 16 de Maio de 2011.

CANCLINI, Nestor Garcia. A socialização da Arte: teoria e prática na América Latina. São Paulo, Cultrix, 1980.

CANCLINI, Nestor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 1997.

Cultura em Números: Anuário de Estatísticas Culturais. 2ª Edição. Brasília: MinC, 2010

KRUN, Fernando; DOCKHORN, Gilvan.  Proposta de Contabilização de Público e Espaços Cineclubistas. Disponível em: http://migre.me/4zrb. Acessado em 15 de maio de 2011.



[1]Acadêmica do sexto período do Curso de Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA); membro do projeto de extensão, Cineclube Casarão Universitário; email: maciel.raila@gmail.com.


[2] Proposta de apresentada pelo Conselho Nacional de Cineclubes (CNC), durante a criação da Federação de Cineclubes do Rio Grande do Sul, que defende a contabilização de público em espaços que desenvolvem práticas cineclubistas no país.


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