sábado, 7 de julho de 2012

Sobre a Condição Mecânica



Em 1962, era lançado o livro ‘Laranja Mecânica’, de Anthony Burgess, que ganhou grande notoriedade com o lançamento do filme homônimo em 1971, sob a direção de Stanley Kubrick.  Embora décadas tenham se passado desde então, as temáticas abordadas pela obra original e pela sua adaptação cinematográfica – dentre as quais figuram o livre-arbítrio e o condicionamento psicológico – permanecem ainda extremamente atuais. Sinal claro disso é a publicação, na edição do mês passado da The New Yorker, de uma seção aberta a comentários de Burgess.
O título da matéria, ‘The Clockwork Condition’ – algo como ‘A Condição Mecânica’ – faz referência à obra mais famosa do autor e ressalta as suas muitas preocupações que serão trabalhadas ao longo do texto, dentre as quais, os perigos e os dilemas morais pertinentes ao condicionamento humano. Burgess começa fazendo uma sinopse de sua obra. Trata-se da trajetória de um delinquente, Alex, que aterroriza as ruas de uma grande cidade à noite, roubando, vandalizando, estuprando e, eventualmente, matando. Ele é preso e punido, mas o Estado não se contenta meramente com a sua prisão e decide aplicar ao anti-herói uma terapia de aversão, que comprovadamente eliminaria quaisquer propensões criminais para sempre.
Alex é, assim, submetido a sessões de terapia, nas quais são injetadas nele substâncias que provocam fortíssimas náuseas, enquanto é forçado a assistir a cenas de violência ao som de música clássica. Conforme esperado, o resultado desse procedimento é que logo ele não consegue mais contemplar cenas de violência sem se sentir desesperadamente mal. Além disso, como o seu desejo sexual sempre esteve associado a traços de agressão, ele não mais consegue ver uma desejável parceria sexual sem ficar enjoado. O tratamento chega até mesmo a privá-lo de um dos seus maiores prazeres: ouvir as sinfonias de Beethoven, que Alex também passa a associar ao seu enorme mal-estar.
É nesse ponto que Burgess, na matéria da The New Yorker, conclui o óbvio – por mais que se queira, homens não são máquinas, e há uma grande dificuldade em isolar alguns impulsos de outros. Para o autor, o Estado passa dos limites quando inibe o prazer experimentado por Alex ao som daquilo que ele considerava a sublimação do belo: a música. Ao tentar inibir instintos violentos, o aparato estatal buscava livrar a sociedade de uma constante ameaça; já a eliminação do seu prazer em ouvir musica clássica em nada melhoraria a sociedade, figurando como um terrível efeito colateral.
É justamente ao som da Nona Sinfonia que Alex, enlouquecido, tenta se suicidar. Diante dessa situação, segmentos da sociedade se compadecem e Alex é submetido a outro tipo de terapia, que o restaura à sua condição anterior de ‘liberdade’. Ao final do romance, o protagonista imagina outros mais elaborados padrões de violência – o curioso, porém, é que Burgess ressalta a sua intenção de que esse fosse um final feliz. Explica-se: seria melhor ser uma pessoa má pelo livre-arbítrio do que ser uma pessoa boa através de lavagem cerebral científica.
O ponto do condicionamento humano, que Burgess chama de lavagem cerebral científica, é justamente um dos mais interessantes e relevantes para os tempos atuais abordados na história. É também em relação a isso que o autor dialoga com B. F. Skinner, na obra deste último ‘Para Além da Liberdade e da Dignidade’. Para Skinner, haveria inúmeros benefícios em um condicionamento positivo do ser humano – ou seja, haveria vantagens utilizando-se apenas estímulos positivos em resposta a comportamentos desejados. Segundo ele, seria evidente que o comportamento humano precisaria mudar; e, para isso, seria também necessário o que chamou de tecnologia de comportamento humano.
O que importaria, portanto, seria a exteriorização do ser humano, particularmente aquilo que faz um item do seu comportamento levar a outro. É em relação a essa exteriorização que o condicionamento positivo agiria: levaria a respostas instintivas condicionadas, não a reações racionais. No argumento de Skinner, apenas o condicionamento negativo transformaria o protagonista de ‘Laranja Mecânica’ em um modelo nauseado de não agressão.  Estabelece-se, assim, um diálogo entre Skinner e Burgess – o primeiro defende a técnica e toma-a como necessária para a sobrevivência da humanidade; o segundo repudia-a em suas versões positiva e negativa, preferindo preservar o campo de escolhas a ceder às mecanicidades do behaviorismo.
Embora a matéria de Burgess adentre algumas outras discussões profundas e dialogue também com outros autores – a exemplo de George Orwell, em seu ‘1984’, trabalhando a o caráter intolerável do fardo de escolher –, aqui o foco será o condicionamento humano. Tal escolha se dá pela pertinência dessa discussão em relação a um assunto já debatido no ERA, em textos de Roberta Avillez e Bennett Foddy  (este último em tradução autorizada): a gamificação. Trata-se de uma tendência de introduzir mecanismos de games na interação de setores da sociedade – tais como o empresarial – com a população.
Por esses mecanismos, pequenas recompensas são distribuídas às pessoas quando elas têm um comportamento desejado; estabelece-se uma espécie de competição entre o público-alvo, com o vencedor sendo aquele que acumulou mais recompensas por agir de um modo valorizado por quem promove esse ‘jogo’ na vida real. Em última instância, o que está em disputa é uma forma de condicionamento humano: apela-se para os instintos mais competitivos do ser humano, de forma que ele busque se destacar no processo e, para isso, aja conforme o esperado para acumular pequenas recompensas.
A gamificação já vem sendo questionada atualmente, especialmente em relação ao seu uso constante pelas grandes corporações. Conforme trabalhado nos textos citados sobre o assunto, parece haver um dilema moral em relação ao uso dessa estratégia para atingir determinados fins. Enquanto a preocupação em relação à gamificação corporativa reside no fato de as pessoas serem condicionadas a fazerem o que seria mais benéfico para as empresas, preocupação semelhante é expressa em ‘Laranja Mecânica’ quanto ao uso do condicionamento pelo governo, mesmo que visando o bem da sociedade.
Seja em uma ou em outra situação, o que está em debate é o limite entre a liberdade de escolher e a resposta mecanicamente condicionada – em uma referência ao título da obra mais famosa de Burgess, a fronteira entre a organicidade do ser humano e a mecanização que se tenta impor a ele. Kubrick, diretor da adaptação cinematográfica desse livro, trata o mesmo como uma sátira social referente à questão da psicologia behaviorista e do condicionamento psicológico como novas armas para um governo totalitarista impor vasto controle sobre os cidadãos e os transformar em pouco mais que robôs.
A referência de Kubrick aos governos totalitários parece se estender a várias esferas do mundo contemporâneo – se o pensamento da época de lançamento do filme era marcado pela preocupação com o totalitarismo, o de hoje volta-se para um condicionamento cada vez maior implantado pelos mais diversos setores sociais, como mostra a questão da gamificação. Parece propício que, logo no início de sua matéria da The New Yorker, Burgess tenha situado o período em que se passa ‘Laranja Mecânica’ da seguinte forma: ‘This city could be anywhere, but I visualized it as a sort of compound of my native Manchester, Leningrad, and New York. The time could be anytime, but it is essentially now’.(Tradução nossa: Essa cidade poderia estar em qualquer lugar, mas eu a visualizei como um misto da minha Manchester natal, Leningrado e Nova Iorque. O tempo poderia ser qualquer um, mas é essencialmente o atual)
Referência:
Anthony Burgess, “The clockwork condition”, The New Yorker, 4 de junho de 2012.
Fonte: era.org.br

Conheça Scott Cleland, o inimigo nº 1 do Google


O Google está em todo lugar e sabe o que você está fazendo agora. Conheça o homem que já escreveu um livro e depôs no Senado americano contra uma das empresas mais admiradas no mundo

por João Mello
Editora Globo
Depois não vai falar que o Scott não te avisou... //Crédito: Reprodução
Imagine a internet como um planeta. Imagine que esse planeta está sob domínio de um ditador malévolo, um facínora completamente louco por poder e onipresente. Medonho, não? E se esse tirano soubesse tudo – absolutamente tudo – sobre você? Não haveria escapatória. Esse cenário apocalíptico não é uma previsão aterradora do futuro, mas uma constatação empírica sobre o que estamos vivendo nesse exato segundo. Ao menos na visão de Scott Cleland.
O economista norte-americano dedica sua vida a mostrar que o Google não é a empresa boazinha que o senso comum costuma crer. Ele diz que nenhuma empresa em toda a História foi tão poderosa e ao mesmo tempo tão repleta de interesse de conflitos. Pra ficar com um exemplo: eles acham o que você procura, mas, sempre que possível, os primeiros resultados serão de produtos do próprio Google. E isso quase sempre é possível: “Eles já criaram, literalmente, 500 produtos em quase todas as áreas que você pode imaginar. E acham que ninguém pode fazer melhor que eles ”ele diz. A arrogância com que trata os concorrentes, a própria ausência de concorrentes – “95% dos brasileiros fazem buscas pelo Google!” – e a falta de transparência em relação ao que, afinal, eles vão fazer com informações pessoais de bilhões de pessoas, são os principais alvos de Scott.
Ele mesmo não consegue fugir da gigante da internet em seu dia a dia. “O Google é brilhante e muito inovador. Não digo para as pessoas não utilizarem. Só digo para não confiarem”, ele diz com bastante frequência. Agora em julho chegou ao Brasil o livro de Scott: “Busque e Destrua”. A obra é uma compilação, item por item, de notícias, estatísticas, processos jurídicos e curiosidades que mostram o lado escuro da empresa. Se a opinião de Scott às vezes resvala na típica paranóia ianque, é porque o tamanho do poder do Google dá margem pra isso. Muita margem.
Confira abaixo como foi nossa conversa com Scott: 

Antes de começar a entrevista, você comentou que o Google acha que todos nós somos idiotas. Por que você diz isso?

Scott Cleland: O Google acredita que sabe tudo. Eles são brilhantes, muito inovadores, fazem coisas maravilhosas. O problema é que eles são muito arrogantes e acreditam que sabem o que é melhor para todo mundo. Você vê o Google criando produtos em quase todas as direções: eles acham que tudo que os outros já fizeram, eles podem fazer melhor. E, de fato, eles fizeram algumas inovações espetaculares...
Quais seriam essas coisas maravilhosas, que você admira o Google por ter feito?
Scott Cleland: Bem, eles já criaram, literalmente, 500 produtos em diversas áreas: e-mail, livros, vídeos, viagens. Agora, até um carro que se auto- dirige eles querem fazer! Sequenciamento de DNA, impressão digital, reconhecimento facial...quase tudo que você conseguir pensar, o Google estará trabalhando naquilo. E, normalmente, eles acham que ninguém faz essas coisas melhor que eles.
E isso não é verdade?
Scott Cleland: Não. Essa arrogância é que cria muitos problemas. Tem uma palavra em inglês, hubris (confiança excessiva), que eu chamo de goobris. Eles são a empresa mais ambiciosa e prepotente que nós já vimos.
Imagino que você ouça essa pergunta o tempo todo, mas eu não posso deixar passar a oportunidade. Quando você precisa procurar por algo na internet, a que site você recorre?
Scott Cleland: Normalmente eu uso Bing. Se mesmo assim eu não achar, posso dar um Google. Eu não digo que o Google é de todo o ruim, o ponto é que eles só contam o lado bom. E tem um lado ruim, tem muitas coisas erradas. E o meu livro é o primeiro a contar o outro lado da coisa. Não estou dizendo que as pessoas nunca devem usar o Google: elas não podem é confiar no Google.
E se você está na frente de um computador e bate aquela vontade de ver um vídeo, ouvir uma música. Como você foge do Youtube?
Scott Cleland: Se só está no Youtube e eu não me importo que o Google saiba, eu assisto lá mesmo. Acontece que as pessoas precisam saber que o Google grava tudo. A internet é uma imensa máquina de copiar e tudo que fazemos na internet o Google pode rastrear, de um jeito ou de outro. O problema é que eles foram os primeiros a perceber que a internet pode copiar tudo. E daí, a missão deles é organizar toda a informação do mundo. Isso inclui sua informação privada, sua propriedade privada. E eles não pedem sua permissão pra isso.
Você pode explicar qual o critério usado pelo Google para mostrar os resultados de busca?
Scott Cleland: Eles sabem o que você procurou antes, quais sites entrou, o que você leu, quais notícias você deu uma olhada. Eles sabem tudo sobre você: o que você quer, o que você pensa, o que você assiste, o que você quer fazer, aonde você quer ir. Eles sabem tudo isso, então os seus resultados não serão iguais aos meus. Isso pode ser bom, mas pode ser ruim. Há quem não ligue para a privacidade, mas os que se importam não têm a opção de tê-la.  
Editora Globo
Quando você cria uma conta no Gmail, em nenhum momento aparece um pedido de autorização para isso tudo?
Scott Cleland: Bem, originalmente, o Google tinha uma configuração de privacidade para cada produto seu. Em janeiro, eles unificaram tudo. A razão pela qual a União Europeia e alguns estados dos EUA estão reclamando é que não foi oferecida ao usuário a opção de recusar isso. Eles dizem “agora vou combinar todas as informações que tenho a seu respeito” e não te deixam dizer não. Eles deveriam deixar.
Se eu deletar minha conta no Gmail, aquela informação toda será, de fato, apagada?
Scott Cleland: Nós não sabemos. Quando Google coleta a informação do mundo todo, eles fazem três cópias. Então, não sabemos se eles apagam todos esses dados.
E como o Google usa minhas informações para lucrar?
Scott Cleland: Eles estão no ramo da propaganda. Eles gostam de dizer que trabalham para os usuários, mas usuários não pagam nada pra ele. Não há nada errado com o ramo da publicidade. Mas eles dizem “Nós somos éticos, somos confiáveis, nosso slogan é: Dont´Be Evil (Não seja mau)”. Porém, eles têm um histórico de fazer muitas, muitas coisas erradas. Eles dizem que não tem um conflito de interesses, mas nenhuma empresa, em toda a História, teve mais conflitos de interesse do que eles.
Então eles pegam o mercado de propagandas, juntam com todas as informações do mundo e criam um negócio novo?
Scott Cleland: Exato. E o problema é que eles são um monopólio global: 95% dos brasileiros fazem busca pelo Google. Ou seja: o mercado de buscas é totalmente controlado por eles. O Google está sendo investigado por autoridades antitruste nos EUA, Europa, Índia, Coreia do Sul, Argentina e também há algumas reclamações aqui no Brasil. Os produtos do Google são os primeiros a aparecer na lista de resultados. Por que isso é importante? Os dois primeiros resultados pegam 50% do mercado. O mundo inteiro fica com o resto. O povo brasileiro deve se perguntar: nós queremos que nossa cultura seja filtrada e organizada pelo Google?
Você consegue nos dar uma noção da quantidade de informação coletada pelo Google?
Scott Cleland: É difícil até de imaginar, mas deixe eu colocar dessa maneira: toda a informação que já foi criada no mundo, do início dos tempos até o ano 2000, tinha 5 petabytes de tamanho. O Google copia 5 PB de informação a cada dois dias. As pessoas não têm ideia de como essa informação é poderosa.
Qual o próximo grande passo do Google?
Scott Cleland: O próximo grande lance é bem perturbador: o nome é Google Now. Agora que eles têm informações de todo mundo, eles acham que pode ser útil dizer o que você deve fazer. Isso pode ser uma boa ideia para várias situações. Você está aqui e quer uma pizza: onde está a pizzaria mais próxima? Isso poderia ser algo simples e prestativo, mas eles também podem te dizer que emprego você deveria ter, o que você deveria fazer hoje. Isso pode ser muito perturbador quando eles sabem tudo sobre você. Eles podem sugerir :“Sabe, aquele amigo seu está logo ali do lado. Você não quer encontrá-lo?”. O CEO da Google disse que a política deles é chegar em cima da linha do perturbador e não ultrapassá-la. Bem, eles cruzam essa linha – e muito! E se eles resolverem decidir em quem você deveria votar? Ou como você deveria usar o dinheiro da sua aposentadoria? Eles podem dizer para você investir em uma empresa...que tal o Google?
O quão perturbador o Google Now pode ser?
Scott Cleland: Ninguém se dá conta de quanta informação eles têm. O que você faz, quais suas amizades, o que você assiste, o que você lê, onde você estava, para onde você pretende ir. É o tipo de informação que a União Soviética sonhava em ter: quais suas visões políticas, seus amigos. Eles têm mais informações sobre eleitores do que qualquer outro órgão. Se eles quiserem, eles podem vender essas informações e manipular uma eleição. Eles podem não fazer isso, mas têm o poder de fazer: e o poder é algo muito tentador de se usar quando você está sendo investigado pelas autoridades. Faz sentido, não faz?
Fonte: revistagalileu.globo.com

Gabriel Garcia Márquez: o outono de um gênio


Por Mauro Santayana
Entre outras dívidas que tenho para com a memória de Jorge Amado está a de ele me ter apresentado, em 1972, em Bad Godesberg, a Gabriel Garcia Márquez. Era um encontro de escritores latino-americanos, patrocinado pelo governo alemão, que eu cobria para este Jornal do Brasil, e pude conhecer, também ali, o genial gualtemateco Miguel Angel Astúrias. Dissera a Jorge de minha admiração por Cién años de soledad, ao manifestar a minha timidez diante do gênio. Jorge sorriu e me confidenciou: “o escritor escreve para ser admirado. Vamos conversar com ele”. Assim, conversamos algum tempo com Gabriel. Ele já se encontrava no planalto de sua glória. Era ainda muito jovem, e exibia, aos 44 anos, o bigode um pouco grisalho.
Gabriel Garcia Márquez
Gabriel Garcia Márquez
Gabriel foi extremamente amável e me disse que éramos colegas. Colegas no jornalismo, o que o autorizava a ver-me também como escritor. O bom jornalismo é sempre boa literatura, disse. E quem não sabe escrever, não faz literatura, nem jornalismo. Só pode ser considerado jornalista ou escritor aquele que vive do que escreve. Ele me surpreendeu pelo bom humor. Antes Astúrias me impressionara pela sobriedade. Enfim, entre um e outro, havia quase trinta anos de diferença.
Não o vi em Praga, quando ali encontrei, em dezembro de 1968, Carlos Fuentes e Julio Cortazar. Ele, naquela noite — que foi a do AI-5 no Brasil — era convidado especial de Milan Kundera. Eles, juntamente com Jean Paul Sartre, haviam sido convidados pelos intelectuais tchecos, para assistir à premiére de Les Mouches, a peça doescritor francês.
Leio, agora, em El Pais, que seu irmão mais moço, Jaime Garcia Márquez, que vive em Cartagena de Índias, conversa com o escritor, pelo telefone, quase todos os dias. A pedido de Gabriel, fala do passado que o irmão está perdendo. O escritor transita em seu labirinto, e o tênue fio de Ariadne é a voz do irmão. Não teremos mais notícias novas do mundo fabuloso que ele criou, tendo como centro a instigante Macondo.
Gabriel está com demência senil, um dos sinônimos da doença de Alzheimer. Com a memória, ele perdeu também as letras. Não escreverá mais — de acordo com a dolorosa conclusão do irmão. Mas ainda o teremos com vida: é o consolo que nos dá Jaime Garcia Márquez. Enquanto procurar o passado, Gabriel, de um mundo que se esvazia, estará voltando ao mundo que criou.
Em Roma, em 1987, José Saramago, outro que deixou o jornalismo pela literatura, me disse que gostaria de morrer quando estivesse buscando a frase ideal para colocar na boca de um personagem estúpido: “Quando não conseguir mais isso, estará na hora de morrer”. Mas Saramago era homem de uma Europa sempre angustiada. Gabriel é homem de nossa América, e, por isso, insiste em recuperar a vida que se esmaece, porque na vida, em nossa geografia humana, sempre habita a alegria da esperança. 
Fonte: Jornal do Brasil

terça-feira, 3 de julho de 2012

A mente doentia dos criminosos bárbaros


JAIRO BOUER é médico formado pela USP, com residência em psiquiatria. Trabalha com comunicação e saúde. E-mail: jbouer@edglobo.com.br (Foto: Camila Fontana/ÉPOCA)
Por Jairo Bouer
Duas adolescentes matam uma colega de 13 anos e arrancam o coração de dentro de seu peito. Uma mulher traída dá um tiro no marido, decepa cabeça e braços, retalha o restante do corpo, acondiciona os pedaços em três malas e sai espalhando as partes pela cidade.
Filmes de terror? Não, apenas noticiário das últimas semanas do país. Para além da violência cotidiana, esses crimes recentes expõem requintes de frieza e crueldade que mexem até com os mais indiferentes.
Embora nenhuma forma de violência mereça justificativa, é mais compreensível para o senso comum que alguém, em momento de intenso desespero, seja capaz de um ato impensado. Essa, aliás, é uma das formas de violência mais difíceis de evitar. É como tentar prevenir o imprevisível. Será que muita gente em situação-limite não estaria sujeita a agir de forma nunca antes imaginada? Não há como saber. Mas, quando há um elemento a mais do crime, como premeditação, esse sentimento é substituído por espanto e indignação.
Decapitar um inimigo e pendurar a cabeça no alto de um poste, retalhar um corpo humano, valer-se da condição de médico para abusar sexualmente de pacientes fragilizadas emocionalmente são crimes que guardam um parentesco. Parece haver um método, uma programação, um desfrute da ocasião. É como se o autor da ação transformasse a tragédia em parque de diversões e passasse a sentir certo prazer naquele momento.
O matador em série (serial killer, em inglês) é alguém que usa um padrão na forma de atacar e matar. É comum que esses criminosos tenham, como base, uma disfunção ou distúrbio conhecidos como psicopatia (que podem ser de vários tipos). Agem acima do bem e do mal. A construção do que é certo ou errado é muito peculiar. Consideram-se grandiosos, plenos de razão. Foi com tom de superioridade que o jovem norueguês que matou 77 pessoas em 2011 deu seu depoimento.
No caso de autores de crimes bárbaros isolados, há, em linhas gerais, alguns quadros psiquiátricos e características mais comuns. Um deles é o surto psicótico, desencadeado por uma variedade de motivos, que leva alguém a agir de acordo com uma percepção delirante da realidade (como se sentir perseguido). Outro é o transtorno de personalidade (como em algumas psicopatias), que faz alguém agir de forma fria e violenta em situações vistas como extremas. Para essas pessoas, decepar o marido ou tirar o coração da amiga são ações feitas com tranquilidade fora do comum. Elas têm um tipo de funcionamento psíquico que não é regra, e sim absoluta exceção. Em geral, podem responder por seus atos, já que escolhem praticar ou não uma ação.  
Fonte: revistaepoca.globo.com/Vida-util/jairo-bouer/noticia/2012/07/mente-doentia-dos-criminosos-barbaros.html

Alvo do Fla, Sampaoli é expulso e vê La U ser campeã chilena nos pênaltis


Cotado para assumir o Flamengo, o técnico argentino Jorge Sampaoli faturou o Campeonato Chileno de forma dramática nesta segunda-feira, com direito a gol nos acréscimos e decisão por pênaltis. O Universidad de Chile bateu o O 'Higgins por 2 a 1 e, por conta da derrota pelo mesmo placar no jogo de ida, decidiu o duelo nos pênaltis, vencendo o desempate por 2 a 0. Em um jogo muito violento dentro de campo, com 10 cartões (sendo dois vermelhos), sobrou até para Sampaoli, que foi expulso no início da segunda etapa.
Jose Rojas com a taça de campeão da La U Chile (Foto: EFE)Expulso no segundo tempo, Jose Rojas ergue a taça de campeão chileno (Foto: EFE)
La U ganha o inédito tricampeonato chileno, somando 16 conquistas na história da competição. Antes, havia tido a chance em três oportunidades: 1966, 1995 e 2001, perdendo para Universidade Católica, Colo Colo e Wanderers, respectivamente. Já o O 'Higgins segue sem nenhum título nacional.
Mesmo com o título, o técnico argentino, que tem contrato com os chilenos até o fim de 2013, vai se reunir agora com dirigentes do Universidad de Chile para falar sobre a reformulação do elenco nesta terça-feira e pode até deixar o cargo.
- Tenho uma reunião com o presidente nesta terça-feira e teremos várias coisas a esclarecer - limitou-se a dizer o técnico, após a partida.
Jorge Sampaoli técnico da La U é expulso final Chile (Foto: EFE)Sampaoli foi expulso na final desta segunda (EFE)
Cartões e pênaltis em campo
Dentro de campo, o que mais chamou a atenção foi a indisciplina. No início do segundo tempo, o capitão de La U, José Rojas, se estranhou com Barroso, e o juiz mandou os dois para o chuveiro. O mesmo destino tiveram os treinadores das duas equipes, expulsos em diferentes momentos da etapa final. Além disso, o árbitro distribuiu outros oito cartões amarelos - cinco para o O'Higgins e três para La U.
Os dois primeiros gols da partida foram marcados em cobranças de pênaltis. Fernández abriu o placar para o O 'Higgins aos 31 do primeiro tempo, enquanto Charles Aránguiz deixou tudo igual aos 22 da etapa complementar. Já nos acréscimos foi a vez de Marino virar a partida e levar o duelo para a disputa de pênaltis.
Após o apito final, Aránguiz e Ruidíaz marcaram os dois únicos gols da disputa de pênaltis, e coube ao goleiro Johnny Herrera o papel de herói ao defender duas cobranças e ver os rivais errarem o alvo em outras duas oportunidades.
Fonte: globoesporte.globo.com/futebol

Tributo muito bom a um filme muito ruim














Sábado, 7 de julho, uma multidão vai se reunir no Cine Windsor, em São Paulo, para um tributo a um filme horroroso.
Na ocasião, será exibido um ótimo documentário sobre este filme horroroso.
O filme é “Coisas Eróticas”, dirigido por Rafaelle Rossi e lançado nos cinemas de São Paulo em 7 de julho de 1982. O documentário se chama “A Primeira Vez do Cinema Brasileiro”.
Até o próprio Rafaelle Rossi – que morreu em 2007 – sabia que seu filme não prestava: “Coisas Eróticas foi meu pior filme”, disse.
Por que então homenagear um filme tão ruim?
Fácil: porque a importância de “Coisas Eróticas” não é estética, é sociológica.
“Coisas Eróticas” foi o primeiro filme de sexo explícito brasileiro e um marco na história da Boca do Lixo e do cinema independente nacional.
O documentário, dirigido por Hugo Moura, Denise Godinho e Bruno Graziano, conta não só a saga da produção do filme, mas a história do cinema da Boca e da transição da pornochanchada para o sexo explícito, no início dos anos 1980.
É um período muito interessante e pouco explorado do nosso cinema, em que o enfraquecimento da Censura e a esperteza dos produtores, que passaram a usar mandados de segurança para liberar os filmes, fizeram nascer uma verdadeira indústria do sexo explícito.
Paradoxalmente, o sexo explícito acabou matando a Boca do Lixo, como explica muito bem Carlão Reichenbach, em uma de suas últimas entrevistas.
O filme também resgata a figura de Rafaelle Rossi, um diretor medíocre e conhecido trambiqueiro da Boca, “homenageado” no documentário por vários atores e técnicos, que aparecem contando os canos que tomaram do homem. Divertidíssimo.
Não estarei em São Paulo sábado, ou não perderia a estréia do documentário.
Fui entrevistado para o filme e dei um depoimento sobre um dos astros de “Coisas Eróticas”, Oásis Minitti, um guerreiro da época em que não existia o Viagra para ajudar os atores.
Oásis vivia na redação no “Notícias Populares”, sempre disposto a ficar pelado e tirar fotos para divulgar um novo filme ou peça. Assim que ele pintava na redação – e “pintava” é a palavra certa – os fotógrafos já sabiam o que lhes esperava: ver Oásis batendo continência. Era hilariante.
Aqui vai a programação de sábado no Cine Windsor, com entrada franca:
19h: exibição do documentário “A Primeira Vez do Cinema Brasileiro”.
20h30: coquetel de intervalo.
21h: mesa de debate com a presença de Eduardo Rossi (filho do Raffaele), Fábio Fabrício Fabretti (escritor e biógrafo da Jussara Calmon), Walder Laurentis (ator de “Coisas Eróticas”) e Débora Muniz (atriz da Boca e que falará sobre o período de transição entre pornochanchada e o pornô).
22h: exibição de “Coisas Eróticas”.
aqui, o trailer do documentário (só para maiores de 18 anos, por favor).
Não há programa melhor para este sabadão. Sério.

Fonte: andrebarcinski.blogfolha.uol.com.br

Site da Folha bate recorde mensal e diário de audiência em junho


O site da Folha bateu novamente no mês passado seu recorde de audiência, com 252 milhões de páginas vistas. A melhor marca até então era a de maio passado (242 milhões de páginas).
No acumulado do primeiro semestre, o crescimento da audiência em relação ao mesmo período do ano passado é de 34%.
Em junho, a Folha passou a cobrar pelo acesso frequente ao conteúdo de seu site. O modelo, chamado de "muro de cobrança poroso", começou a vigorar no dia 21.
O sistema adotado pelo jornal, que segue uma tendência mundial, permite a leitura gratuita de até 40 reportagens por mês --sendo que no 21º clique se pede um cadastro simples ao internauta.
Somente assinantes da Folha e do UOL têm acesso a mais de 40 textos por mês.
E apenas assinantes da Folha podem ler a réplica digital do jornal (edicaodigital.folha.com.br) e ler sem restrições o aplicativo para tablets e celulares (que pode ser acessado no navegador de internet do aparelho, digitando app.folha.com).
Na semana passada, depois da introdução do modelo de cobrança, o site já bateu duas vezes (na quarta e na quinta-feira) o que era seu recorde diário de audiência no período anterior.
Com o novo modelo, a versão do jornal na internet ganhou o conteúdo completo da edição impressa.
O site da Folha é o mais acessado dos jornais brasileiros. Para medir sua audiência, o jornal usa o serviço da Omniture, empresa especializada no acompanhamento de sites e que tem entre seus clientes publicações do grupo Time-Warner, a Bolsa Nasdaq e a Microsoft.
Alex Argozino/Editoria de Arte/Folhapress


Fonte: www1.folha.uol.com.br

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Como as traições tem influenciado o rumo da história

Como as traições tem influenciado o rumo da história

A história está cheia de casos de pessoas muito confiáveis que se revelaram capazes de delatar e prejudicar os melhores amigos e a pátria. Conheça a sórdida - e ambígua - saga da traição

Álvaro Oppermann | 20/06/2012 12h9
Um dos episódios mais bem guardados da Revolução Cubana tinha no bojo uma traição em família. E só veio à tona em outubro, quando Juanita Castro lançou o livro de memórias Fidel y Raúl, mis Hermanos. La Historia Secreta, co-escrito com a jornalista María Antonieta Collins. Quinta dos sete filhos de Ángel Castro e Lina Ruz González, Juanita traiu seus irmãos trabalhando para a CIA entre 1961 e 1964, em plena Havana. "Foi uma relação estreita com o arqui-inimigo dos Castro", diz a jornalista sobre a informante de 76 anos, que vive no exílio há 45, primeiro no México e depois nos Estados Unidos. Nesse período, ela nunca falou com os irmãos.

A traição está entre os capítulos mais sombrios - e saborosos - da História ocidental. A própria Bíblia cita vários casos, nenhum tão peculiar quanto aquele em família. Primogênito de Adão e Eva, Caim ficou enciumado da predileção de Deus por seu irmão caçula. Levou Abel para um campo deserto, onde o matou. À traição, subentende-se. "Agora és maldito e expulso do solo fértil que abriu a boca para receber de tua mão o sangue de teu irmão", ordenou Javé ao assassino. "Na cultura do Ocidente não existe delito mais grave que o de defraudar a confiança adquirida", afirma José Manuel Lechado, em Traidores que Cambiaron La Historia ("Traidores que mudaram a História", inédito no Brasil). Mas, sob perspectivas distintas, certos personagens desleais podem até ser heróis. "Na visão dos ingleses, George Washington (protagonista da independência americana) foi um grande traidor", diz Lechado. Seja bem-vindo à narrativa dos atos sorrateiros. E cuidado com quem está às suas costas. Já diz o ditado: "Deus me livre dos amigos, porque os inimigos eu sei quem são".

A palavra "traição", muito além da infidelidade conjugal, mudou de sentido ao longo do tempo. "Hoje ela é acima de tudo um crime contra o Estado. Mas nem sempre foi esse o caso", afirma Alan Orr em Treason and the State ("A traição e o Estado", sem edição em português). Na Antiguidade, trair era agir contra os deuses. Foi o pecado que cometeu, na visão de seus súditos, o faraó Akenaton. No século 14 a.C., ele aboliu a antiga religião egípcia e seu panteão para determinar a adoração monoteísta a Aton e proclamar-se único representante dele. Na Batalha das Termópilas (480 a.C.), entre espartanos e persas, o grego Efialto entregou aos inimigos o segredo de uma estreita passagem entre as montanhas, até a retaguarda grega. Por sua perfídia, vista como uma ofensa direta ao deus da guerra, Ares, Efialto foi amaldiçoado.

Trair começou a ganhar status laico e jurídico na Roma antiga. Segundo o historiador do direito Simon Hirsch, os romanos inventaram o conceito de crimen maiestatis (lesa-majestade) para atos contra a soberania de Estado, o que incluía excentricidades como destruir a estátua do imperador.

Ilustrações: Murilo Maciel

Na Europa, durante a Idade Média, o conceito passou a se referir ao atentado contra a vida do senhor feudal, do rei ou do papa. Mas e se um rei se insurgisse contra o papa? Isso seria traição? E o barão que se rebelasse contra o monarca? No século 13, a opinião dominante entre os juristas era a de que, em ambos os casos, a quebra de hierarquia configurava o delito. No imaginário do aldeão médio, contudo, não havia pior infame que Judas Iscariotes. Com um beijo, entregou Jesus por 30 moedas de ouro. O cristianismo transformou a traição em pecado gravíssimo. Mas o ato do apóstolo demorou a se disseminar. "Até a década de 60 do século I, diferentes memórias parecem sugerir, no seu todo, que os cristãos desconheciam o tema da traição de Jesus", diz André Chevitarese, professor de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A malhação de Judas só começou por volta do século 4.

Óleo fervente e veneno

Foi na Inglaterra de Henrique VIII que a traição ganhou sua acepção moderna, de crime contra o Estado. O tema é especialmente caro aos ingleses, que usam três palavras para designá-lo: treason, de uso jurídico, e treachery e betrayal, de uso comum. Segundo Orr, o conceito legal moderno nasceu das formulações dos juristas das eras Tudor (século 16) e Stuart (século 17). Ainda não havia separação clara entre Estado e monarca, mas a nova concepção já era diferente da medieval. O crime contra o Estado (que incluía o rei e altos cargos eclesiásticos) era chamado de Alta Traição (High Treason). Em 1530, um cozinheiro condenado por tentar envenenar o bispo de Rochester foi jogado num panelão de óleo fervente. Os reis utilizavam a mesma regra para neutralizar inimigos. Ela ensejou várias condenações irregulares, como a de Ana Bolena, segunda esposa de Henrique VIII, em 1536. Também havia uma "traição menor" (Petty Treason), que contemplava, entre outros delitos, o de mulheres que matavam maridos. Essa lei só foi abolida em 1828.

O método mais usado para se livrar de pessoas indesejadas era o veneno. Só em Paris havia cerca de 30 mil "especialistas" que ofereciam seus serviços por encomenda. Envenenado, sir Thomas Overbury foi vítima do mais mirabolante caso de Alta Traição, em 1613, contra o rei James I da Casa de Stuart. Tudo não passou de uma tramoia de Lady Frances Howard. Desejando casar-se com o conde de Rochester, Robert Carr, sofreu a enfática oposição de Overbury, amigo íntimo do assediado. Ela persuadiu o rei a dar um cargo para o desafeto bem longe dali - na Rússia. Desesperado, Thomas recusou a "promoção". A dama, então, convenceu James I de que a negativa do nobre fora motivada por uma conspiração. Notório paranoico, o rei mandou trancar Overbury na Torre de Londres. Ele apareceu morto em 15 de setembro de 1613. E Frances, enfim, casou-se com o conde.

Ilustrações: Murilo Maciel

No Brasil, um dos episódios mais conhecidos de traição é o de Domingos Fernandes Calabar. Contrabandista e senhor de engenho em Pernambuco, em 1632 decidiu juntar-se aos holandeses da Companhia das Índias Ocidentais, que pilhavam o Nordeste desde a década anterior. Os préstimos de Calabar foram vitais para que a Holanda estendesse seus domínios de Pernambuco até o Rio Grande do Norte. Capturado pelos portugueses em 1635, ele foi estrangulado e esquartejado. Já José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, construiu sua infâmia durante a Ditadura. De líder da Associação dos Marinheiros, passou a guerrilheiro da Vanguarda Popular Revolucionária e então a delator. Preso em 1970, foi convencido pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury a entregar os companheiros. Em janeiro de 1973, o cabo serviu de isca para o extermínio de seis dos principais militantes da VPR, num sítio em Pernambuco. Entre as vítimas estava Soledad Barret Viedma, companheira dele, grávida de sete meses. Depois disso, teve de sumir. Fez uma cirurgia plástica e mudou de identidade, bancado pelo regime.

A história mostra que às traições não faltam ambiguidades. Para Juanita Castro, os verdadeiros pérfidos foram seus irmãos. Devotada revolucionária, responsável pela construção de clínicas e hospitais em Cuba, ficou desapontada com Fidel e Raúl, quando tiveram início as prisões, fuzilamentos e confisco de propriedades. Nessa época, ela tinha laços estreitos com o então embaixador da representação do Brasil em Havana, Vasco Leitão da Cunha, e sua mulher, Virgínia. O casal ofereceu asilo a muitos rebeldes durante a ditadura de Fulgencio Batista. Inclusive a Juanita, em 1958. Três anos depois, Virgínia procurou a irmã de Fidel - já desencantada com a revolução - para que ela se reunisse "com amigos". Tais amigos eram da CIA. Juanita aceitou repassar informações, desde que nada fosse usado nas tentativas de assassinato a El Comandante. Em 1964, depois da morte da mãe, Raúl conseguiu-lhe um visto para ir ao México. Lá, Juanita rompeu formalmente com os irmãos.
"A traição é um conceito extraordinariamente ambíguo, que foi utilizado - e ainda o é - para combater inimigos políticos e também para justificar fracassos", diz Lechado. Isso vale para o Brasil, como ilustra o caso de Calabar. Em 1975, um tribunal simulado, em João Pessoa, julgou que o ex-senhor de engenho agiu em favor dos conterrâneos e o absolveu. De traidor passou a mártir.


Galeria da infâmia

Uma pequena seleção do clube que insiste em crescer


Conde Ugolino della Gherardesca

Membro do partido Gibelino, aliado ao imperador, ele comandava Pisa no início do século 13. O partido rival, o Guelfo, dominava Gênova e Florença. Acusado pelo arcebispo Ubaldini, um desafeto, de aderir ao guelfos, Ugolino foi destituído.Ambos aparecem como traidores na Divina Comédia.

Mary Stuart

Pretendente católica ao trono inglês, Mary - chamada carinhosamente de "rainha dos escoceses" (terra dos Stuart) - foi encarcerada por ordem da rainha Elizabeth I, que temia uma trama dos católicos contra ela, anglicana. Após 19 anos na prisão, Mary Stuart foi executada por Alta Traição em 1587.

Joaquim Silvério dos Reis

Em 1789, entregou os inconfidentes mineiros para ter suas dívidas com a coroa portuguesa perdoadas. Seu amigo Tiradentes acabou enforcado e esquartejado. Depois, Silvério ganhou uma pensão vitalícia de Portugal e foi até recebido por dom João.

Charles Maurice de Talleyrand-Périgord

Ministro das Relações Exteriores de Napoleão, dizia que "traição era uma questão de datas". Virou agente da Rússia e entregou segredos do império francês aos austríacos. Em 1815, organizou a deposição de Napoleão e a volta da monarquia.

Jin Bihui

Conhecida como "Mata Hari do Oriente", a manchu foi espiã para o Japão na corte do último imperador da China, Pu Yi. Bela e inteligente, era amante do principal assessor militar do imperador. Gostava de usar roupas masculinas. Segundo uma versão, sofreu abuso sexual na infância. Foi executada como traidora pelo governo nacionalista chinês em 1948.

Heinrich Himmler

O chefe da SS abandonou Hitler e negociou uma rendição da Alemanha com os EUA e a Grã-Bretanha quando viu que o nazismo estava com os dias contados. Hitler, ao descobrir a traição, ficou furioso. Himmler terminou preso pelo exército inglês em maio de 1945. Depois, suicidou-se.

Augusto Pinochet

O general Augusto José Ramón Pinochet Ugarte (1915-2006) foi Chefe do Exército do Chile no fim do governo socialista de Salvador Allende. Quando Pinochet orquestrou o golpe de 11 de setembro de 1973, Allende foi pego de surpresa: considerava-o um bom amigo. Allende suicidou-se e o general instaurou um sangrento regime militar que duraria até 1990.

Tommaso Buscetta

Foi importante membro da Cosa Nostra e ficou rico traficando drogas no Brasil. Preso em 1984 e deportado para a Itália, fez um acordo com a Justiça local, entregando o esquema da Máfia. Foi o primeiro a quebrar o código de silêncio da organização. Faleceu em 2000 em Nova York, livre, mas muitos de seus parentes foram mortos por causa da traição.


Inesquecível colaboracionismo

O auxílio às tropas de Adolf Hitler deixou muitas cicatrizes 


A cooperação com os nazistas é um capítulo da Segunda Guerra que muitos franceses gostariam de apagar. Em 1940, o Norte do país foi ocupado pelo exército de Hitler. Para manter a nação funcionando, assumiu o poder um governo fantoche , em Vichy, liderado pelo marechal Philippe Pétain. Um dos mais notórios colaboracionistas foi Pierre Laval. Como ministro das Relações Exteriores, ele autorizou a deportação de 15 mil judeus. Em 1945, foi considerado culpado de Alta Traição e fuzilado. Outras pessoas simpáticas ao invasor, mesmo aquelas indiretas, como Coco Chanel, encararam o "julgamento moral" dos compatriotas. A estilista era amante do espião Hans Gunther von Dincklage. Graças a ele, pôde manter seu apartamento num hotel de Paris. Não se sabe até que ponto ela conhecia segredos da espionagem nazista, mas, ao fim da guerra, saiu de Paris e refugiou-se na Suíça, onde permaneceu até 1954. Foi então que criou o glamouroso terninho Chanel. E o sucesso ofuscou a mácula da guerra. Já na Inglaterra, o oficial do exército William Joyce foi condenado à forca por fazer propaganda nazista no rádio. Conhecido como Lorde Haw Haw, ele transmitia de Berlim, para as ilhas britânicas, exaltações ao Führer.

Saiba mais


LIVRO

Traidores que Cambiaron la Historia, José Manuel Lechado, Ediciones Espejo de Tinta, 2006
O autor espanhol narra as mudanças no conceito de traição no Ocidente e conta casos famosos. A obra ainda não foi editada em português.


Post-Scriptum

Estranhas coalizões 

A traição na conjuntura política brasileira 


Luiz Inácio falou: "Se Jesus Cristo viesse para cá, e Judas tivesse a votação num partido qualquer, Jesus teria de chamar Judas para fazer coalizão". Como o apóstolo ganhou infâmia na condição de quem traiu a confiança de Cristo em troca de dinheiro, a frase do presidente Lula irritou a Igreja e provocou diferentes reações acerca do sentido da traição e sobre como se governa o Brasil.

Na política, e em todas as formas de relações sociais, trair simboliza deslealdade ou infidelidade. Geralmente, o suposto traidor busca vantagens pessoais ou posições de poder. Mas há situações em que pessoas abandonam seu partido ou evitam adotar teses defendidas por ele apenas para manter a coerência com os ideiais originários da agremiação.

Casos de traição política no Brasil não são recentes. No século 18, o delator Joaquim Silvério dos Reis levou à morte Tiradentes. O líder comunista Luis Carlos Prestes, preso pelo governo Vargas no Estado Novo (o mesmo que entregou sua mulher, Olga Benário, para os nazistas), depois apoiou Getulio para as eleições presidenciais de 1950. Carlos Lacerda, Jânio Quadros, Paulo Maluf e muitos outros colecionam histórias em que figuraram tanto como traídos quanto como traidores.

Mas fatos mais recentes ocorridos com Lula e com o Partido dos Trabalhadores ilustram bem a polêmica em torno do que se considera traição política. Fundado em 1980 com orientação programática socialista e crítica ao capitalismo, o PT se colocou como alternativa (quase única) para a construção de uma sociedade mais justa rejeitando acordos com partidos de centro para a direita. Assim, perdeu as eleições presidenciais de 1989, 1994 e 1998 tendo Lula como candidato. Em 2002, ampliou alianças para viabilizar a vitória. Porém, tal objetivo não seria alcançado sem que o PT abdicasse da defesa irrestrita de bandeiras históricas, como o rompimento com o FMI e a taxação de fortunas. A candidatura de Lula, enfim, atraiu um grande empresário, o então senador José de Alencar, do Partido Liberal, de bandeiras opostas. A formação do governo também surpreendeu, a exemplo da nomeação do tucano Henrique Meirelles (hoje no PMDB) para presidir o Banco Central.

Quem traiu quem? Os dissidentes, que fundaram um novo ou migraram para outros partidos, ou o PT, que assumiu a impossibilidade de vencer e administrar sem fazer acordos? Em nome da governabilidade, Lula atraiu antigos "inimigos", como os ex-presidentes José Sarney e Fernando Collor. Mas o uso do termo traição acerca do momento vivido pelo PT não foi reivindicado só por dissidentes. Em 12/8/2005, o presidente Lula foi à TV falar sobre o mensalão: "Eu me sinto traído por práticas inaceitáveis. Indignado pelas revelações que chocam o país, e sobre as quais eu não tinha qualquer conhecimento". É inegável que, ao buscar novas alianças, Lula teria de abrir mão de certos princípios. O pragmatistmo rendeu vitórias em 2002 e 2006, mas o presidencialismo brasileiro não permite, salvo raras situações, que o eleito consiga maioria suficiente para garantir governabilidade apenas com o resultado das urnas. Desse modo, não resta alternativa senão compor o governo com forças que estavam na oposição, o que requer acordos que geralmente passam por ceder espaços na máquina pública. O grupo que adere deveria fazê-lo por objetivos programáticos comuns, mas isso, concretamente, não ocorre. No Congresso, a barganha acontece principalmente com o pagamento de emendas parlamentares. Ambas as práticas não são exclusivas do atual mandatário.

Agora, se Lula sentiu-se traído por companheiros no auge da crise do mensalão e indicou que, para governar, precisa se unir a supostos adversários, não seria exagero dizer que muitos petistas ou ex-petistas experimentam a mesma sensação ao verificar os mecanismos para obter a governabilidade na gestão Lula.

A grande questão que fica é: poderia ter sido diferente? Teria razão Maquiavel ao afirmar que a política tem uma lógica própria?

*Marco Antônio Carvalho Teixeira Cientista político, é professor e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas - SP 

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