Que me perdoe o leitor por me afastar tanto dos temas tradicionais da Filosofia da Mente. Ao ver minha sobrinha com um livro de Aldous Huxley nas mãos, não pude resistir à tentação de escrever sobre esse autor. Penso que ele é o maior clássico da futurologia do século XX. Mas recomendá-lo para adolescentes pode ser um equívoco.
Aldous Huxley é conhecido mundialmente pela sua novela Admirável mundo novo, publicada em 1932. Nela, ele descreve uma sociedade utópica na qual tudo é planejado e organizado. O Estado controla a vida de seus cidadãos com pleno consentimento. Nessa sociedade nada acontece, pois a história acabou. Tudo é previsível na vida de seus habitantes, desde seu nascimento até sua morte, que deveria ocorrer aos 60 anos. Há castas intransponíveis, mas todos são felizes. Não há inquietação social. A vida insípida e seus eventuais momentos de angústia ou de depressão são suprimidos com a ingestão do soma, um psicofármaco livremente distribuído para assegurar a euforia na medida necessária.
A novela de Huxley ficou conhecida por retratar o paradoxo de uma utopia que se converte no seu oposto. Mas essa não é a única razão de sua fama internacional. O futuro distópico de Huxley foi profético e muitas das características dessa sociedade imaginária acabaram se concretizando nas últimas décadas.
O mundo foi globalizado, padronizado e dividido entre dois ou três governos transnacionais que controlam as decisões planetárias. A individualidade e a vida privada foram devassadas pela internet. O controle químico da angústia, da ansiedade e do pânico é, atualmente, uma das prioridades das sociedades contemporâneas, pois uma premissa fundamental das sociedades pós-modernas é que todos têm o dever de sempre estar bem. A governança triunfou sobre a política e as palavras “direita” ou “esquerda” designam apenas a opção entre a dessubjetivização deliberada ou recoberta pela pseudoliberdade das democracias. Todos se tornam normais em relação a uma sociedade imensamente anormal.
Mas poucas pessoas sabem que algumas décadas depois da publicação do Admirável mundo novo, Huxley publicou um novo livro, dessa vez na forma de ensaios, avaliando as previsões que fizera no início da década de 1930. Esse novo livro, ainda pouco conhecido, e que recebeu o título de Regresso ao admirável mundo novo, foi publicado em 1959.
O primeiro tema abordado por Huxley nesse livro é a superpopulação. É um assunto do qual os homens públicos evitam falar, pois tem um custo político alto. A direita não quer ferir os dogmas religiosos e a esquerda prefere acreditar que a justiça distributiva é a panaceia que resolverá tudo.
Huxley observa que no início da década de 1930 havia 2,8 bilhões de habitantes na Terra. Ele previa, corretamente, que no fim do século XX, a população estaria em 5,5 bilhões. Mas Huxley não sabia que chegaríamos à marca de 7 bilhões de pessoas.
A superpopulação já se reflete na ameaça de escassez de alguns recursos naturais, nas crises de governabilidade como forma de governo, na sensação de instabilidade que gera o desejo de trocar a liberdade pela segurança, facilitando a instauração de estados totalitários. Muito antes da invenção da internet e das redes sociais, Huxley já falava da necessidade das distrações ininterruptas que fazem com que a vida cotidiana, para ser suportável, mergulhe em um mar de irrelevância.
Para que uma sociedade superpovoada não entre em um processo de degradação irreversível é preciso convencer seus habitantes de que todos poderão, em um futuro próximo, ser alimentados, vestidos, alojados e educados. Tecnicamente, essas metas já foram alcançadas pelos países ricos, nos quais, ao contrário do que ocorre no resto do mundo, a população envelheceu e diminuiu. No entanto, a Europa enfrenta, hoje em dia, o terrorismo e hordas de refugiados das guerras e dos desastres climáticos que ameaçam suas conquistas sociais.
Escrevendo em 1959, no início da era pós-Sputnik, Huxley não pôde enxergar tão longe. Contudo, foi profético ao prever uma nova onda de populismo na América Latina depois do colapso do getulismo e do peronismo. O político populista tem de se apresentar como homem viril e, ao mesmo tempo, como pai amável e conversador. Se for uma mulher, deve mostrar que é uma guerreira, mas sem perder a ternura da mãe ou da avó. Seus discursos devem ser curtos, didáticos, evitar questões muito complexas, pois elas aborrecem os telespectadores. É preciso nunca perder de vista que um político deve ser comercializado como se ele (ou ela) fosse um sabonete ou um desodorante. Faz parte do marketing político um certo tom mentiroso, mas não um maquiavelismo que autoriza a mentir.
A América Latina é um continente esquecido que não ameaça ninguém, pois é uma área desmilitarizada. Nisso, Huxley também acertou. Mas, ele mal poderia ter imaginado que um dia nos Estados Unidos, País no qual ele viveu a maior parte de sua vida, floresceria o populismo de direita. Parece que nos últimos anos as musas líderes do Norte e do Sul não conseguiram seguir a receita e tropeçaram, uma no mau humor e na linguagem truncada e outra em palmas e sorrisos visivelmente mecanizados.
*João de Fernandes Teixeira é PhD pela University of Essex (Inglaterra) e se pós-doutorou com Daniel Dennett nos Estados Unidos. É professor titular na Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR).