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SÃO LUÍS, MARANHÃO, Brazil

segunda-feira, 14 de julho de 2025

O equilíbrio da razão contra o ópio do intelecto


Por Rogério Rocha


Lançado em 1955, “O ópio dos intelectuais”, de autoria do filósofo e sociólogo Raymond Aron, elabora uma crítica consistente ao apego emocional dos intelectuais da França ao marxismo e aos regimes comunistas do século XX. 

De forma corajosa, o sociólogo da liberdade, contesta a romantização criada em torno do que representava a então União Soviética, o sentimento antiamericanista e a percepção equivocada que transformou o socialismo e suas promessas numa espécie de credo secular.

Por meio de argumentos estruturados numa sólida erudição, Aron desenvolve a tese de que o marxismo se transformou numa religião substituta às positivas, que fornecia, em seus pressupostos, tanto uma visão finalística da história quanto um dogma inquestionável. 

Outro aspecto criticado diz respeito ao abandono da postura crítica dos pensadores, substituída por motivações de cunho exclusivamente político. 

Também nessa obra, o escritor expõe o nítido descompasso entre a retórica presente nos discursos desses intelectuais e a realidade dos regimes totalitários. 

Ele chega à constatação de que havia uma grande distância entre a realidade socialmente observada e a teoria defendida pelos pensadores. Ou seja, de que teoria e prática viviam em mundos bem diferentes. 

Aron acusa os intelectuais de então de aderirem ao marxismo como a uma “fé” que desse sentido à realidade social, quase à maneira de uma “salvação histórica”. 

Tal disposição de natureza utópica fazia, segundo ele, com que fechassem os olhos aos excessos autoritários cometidos em prol da revolução. Nesse sentido, defende que, se para Marx a religião era o “ópio do povo”, o socialismo, assim endeusado, era o “ópio dos intelectuais”.

Em oposição a muitos de seus contemporâneos, Raymond Aron sustenta que o modelo democrático-liberal é preferível a regimes baseados em partido único, defendendo o pluralismo, a liberdade crítica, o Estado de Direito e suas instituições.

O livro, como já afirmamos, traz  um texto analítico dotado de erudição, mas que em nada compromete sua clareza. 

O olhar de Raymond possui forte carga moral e o apresenta como um pensador de centro que adota o equilíbrio argumentativo e a racionalidade como móveis de sua atuação.

Escrito no contexto da Guerra Fria, “O ópio dos intelectuais” é um livro que, pela qualidade de suas ideias, ainda merece nossa atenção, permanecendo relevante na década de 20 deste século XXI. 

Sobretudo porque, em vista de uma nova era do medo, de conflitos bélicos nacionalistas, do reordenamento do cenário geopolítico mundial e da permanência da polarização, Aron soa como um alerta: os perigos da cegueira ideológica e o entrelaçamento dos interesses políticos com as doutrinas religiosas continuam a nos rondar. 

“O ópio dos intelectuais”, além de uma obra seminal, tornou-se um clássico da crítica à ideologização do pensamento. Nela, Aron reafirma o papel do intelectual como aquele que pensa com autonomia, recusando-se a erguer altares aos dogmatismos.


Referência:

ARON, Raymond. O ópio dos Intelectuais. Tradução de Vilma Ferreira Gomes. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

quarta-feira, 18 de junho de 2025

A LIÇÃO DO MESTRE

Machado de Assis e Rogério Rocha [imagem gerada por IA]

  


Por Rogério Rocha

 

Não tenho certeza de que os fatos que vou narrar são produto da imaginação, de um surto, um sonho ou mesmo se aconteceram do modo aqui descrito. O fato é que uma febre chatinha me atacou recentemente, afetando-me a saúde. Com ela também vieram umas vertigens que, além do mal-estar repentino, costumavam turvar a minha visão durante alguns minutos. Mas juro pela alma de Allan Kardec que nada do que lerão vai passar, no máximo, de um breve delírio.

Era um fim de tarde calorento em São Luís. Eu vagava pelo centro histórico, nas férias, sem nada para fazer. Foi quando parei diante de uma portinha ladeada por colunas de madeira envelhecida. Na fachada pude ler: “Livraria O Alienista”. Morrendo de curiosidade, entrei.

Lá dentro havia um gato angorá preguiçoso, deitado sobre uma pilha de livros, coçando os bigodes e com os olhos semicerrados. As estantes abrigavam nomes imortais que moravam ali: Sousândrade, Cecília Meireles, Susan Sontag, Josué Montello, Ferreira Gullar, Goethe, Schiller e vários filósofos, daqueles que ninguém lê, mas que adoram repousar sobre as prateleiras empoeiradas.

Foi então que o vi.

Estava sentado lá ao fundo, no cantinho da sessão onde ficavam as últimas estantes. Ao me aproximar, percebi que tinha nas mãos uma edição rara de “O elogio da loucura”.

Em princípio, não acreditei! Repentinamente, veio-me outra vez a tal vertigem. Uma tontura enjoativa e os olhos turvos do qual falei. Após alguns segundos, com a visão recuperada, pude notar a figura do homem de pele escura, barba imponente, olhos expressivos e uma bengala escorada na cadeira ao lado, como se fosse o cetro de um monarca.

— Com licença, meu senhor. — murmurei timidamente.

Ele ergueu os olhos como se já aguardasse minha presença.

  Sente-se, meu amigo. Vamos conversar um pouco?

  Sim, senhor! Quem sabe possamos falar sobre os livros que temos aqui.

O velho sorriu, balançando a cabeça em sinal positivo.

— Percebo que você gosta de raridades. Que prefere os mapas aos GPS’s, estou certo?

— Como soube? Sim. Mas também gosto de descobrir novos caminhos!

O velho tamborilou os dedos sobre a capa do livro.

— Pois bem, esta livraria é um mundo para mim. Dentro dela há passagens secretas, janelas misteriosas, vozes guardadas pelo tempo. E o tempo, aqui, transcorre de um modo diferente. Olhe ao seu redor.

Voltei os olhos para os cantos da livraria. Ali estavam, em estantes próximas, Borges, Vinícius, Raquel de Queirós, Cervantes, Aluísio Azevedo; lá no fundo, enciclopédias, fileiras de coleções contendo obras clássicas, versões encadernadas, de capas duras, traduções em outros idiomas.

— Rogério, diga-me uma coisa, falou o mestre, cruzando as mãos sobre a mesa. Por que as pessoas perderam o interesse pela leitura? Por que ninguém tem paciência para entender a importância desse hábito?

— Talvez porque não tenham tempo. Ou porque não aprenderam a ler. E, no fundo, quem não tem tempo nem paciência não aprende a ler.

— É um bom argumento para tentar compreender uma arte quase esquecida.

— A da leitura, não é mesmo?

— A da paciência. A velha e boa arte da paciência. — disse, esboçando um leve sorriso.

— Gostei de conversar com você, mas já é hora de voltar para a minha prateleira.

— Prateleira! Como assim?

Ele apontou para o alto da estante. Lá havia um livro antigo com seu nome na lombada. Enquanto eu olhava para cima, a imagem daquele homem enigmático começou a se dissipar.

Num piscar de olhos, eu estava sozinho na livraria.

Sobre a mesa, pude notar a edição da obra que o velho folheava e um bilhete onde dizia: "Escreva como quem duvida. Publique como quem confessa. Leia como quem suspeita.” Assinado: Machado de Assis.

Levantei-me sem acreditar e, ainda um tanto confuso, dei uma última olhada ao redor. Por fim, saí da livraria como se houvesse acordado de um estado de coma.

Desde então, confesso: toda vez que escrevo um novo texto, escuto uma voz suave, como um sussurro que viesse da minha estante. É quando, por precaução, relembrando os conselhos do mestre, o reescrevo, pacientemente.

 

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