(sobre Thomas Mann)
Carpeaux não está de todo equivocado quando, em seu ensaio O Admirável Thomas Mann, reunido em volume na obra A Cinza do Purgatório, traça um perfil duvidoso de Thomas Mann, em um de seus ataques mais violentos contra o romancista de A Montanha Mágica. É preciso que se compreenda que a unanimidade nem de longe é uma característica dos gênios. Mann não constituiria uma exceção a essa regra, apesar de não merecer todas as investidas apaixonadas do mestre austríaco. Seja como for, o caso é que Carpeaux via naquele célebre alemão qualquer coisa como uma personalidade pesada, um grande filósofo sem ideias, que possuía o inabalável dom de preencher páginas e mais páginas com uma filosofia de segunda ordem, que não resistiria a um olhar mais atento.
A crítica tem lá certa fundamentação. Como quase todos os autores alemães, Mann de fato possuía uma atração irresistível ao pensamento e à necessidade de filosofar. Desse mesmo mal sofreram Goethe e Hölderlin, e mesmo um romancista aparentemente místico como Herman Hesse não deixa de possuir em seus romances verdadeiros tratados filosóficos, alguns visivelmente morais, como O Lobo da Estepe e O Jogo das Contas de Vidro, obras nas quais, ao lê-las, sente-se um certo sabor de advertência moral, que impõe às conquistas da inteligência ocidental qualquer coisa como uma repreensão.
Mann, portanto, não é um cavaleiro solitário nesse vasto campo de batalha. O século XIX foi mesmo prolífico em autores cujos trabalhos encerram verdadeiras doutrinas. E não é senão como doutrina que podemos ler obras como O Vermelho e o Negro, de Stendhal, Judas, o Obscuro, de Thomas Hardy, Guerra e Paz e Anna Karenina, de Tolstói, Madame Bovary e Bouvard e Pécuchet, de Flaubert e, sobretudo, os verdadeiros sistemas filosóficos de Dostoiévski, cujos personagens, assim como os de Shakespeare, na maioria das vezes funcionam como ilustrações para uma grande ideia, e seus diálogos socráticos, que certamente fariam inveja a Platão, chegam por vezes a verdades tão profundas que serviram de modelo a muitos dos pensadores que a ele se seguiram. Não é senão a uma lamentável representação do famoso sonho de Raskólnikov em Crime e Castigo que se deve aquele desesperado ato de Nietzsche de se jogar em Turim, em 3 de janeiro de 1888, sobre um pobre cavalo que, açoitado, agonizava ante as investidas de seu dono, episódio que, segundo Ricardo Piglia, confirma de uma vez por todas o bovarismo do grande filósofo alemão.
Ao que parece, Mann não inaugura nenhuma escola. É o legítimo herdeiro de uma cultura para a qual as ideias, sobretudo as complexas, são um lugar-comum e uma necessidade. Sua prosa possui aquele mesmo peso que encontramos nos sistemas filosóficos de Kant e Hegel, mas, ao contrário deles, foi capaz de inserir no tom eminentemente professoral de sua tradição certa leveza, mas uma leveza possível a seu tempo. Um leitor desavisado pode facilmente encontrar em seus romances certas dificuldades, mas elas são facilmente superáveis e quase sempre voluntárias.
Leitor de Schopenhauer, Thomas Mann nem de longe pode ser considerado seu fiel continuador. Como quase todo artista alemão, Mann possuía quase uma fascinação doentia pela estética, mas esse seu amor se deve menos à influência de Schopenhauer do que a certa propensão natural alemã à estetização, como vemos nas composições de Wagner, na poesia de Goethe, nos quadros de Albrecht Dürer, no teatro de Bertolt Brecht e na filosofia de Nietzsche. É desse último, inclusive, que Mann descende. Ao contrário do que a princípio se possa imaginar, é sobretudo a Nietzsche que o célebre romancista alemão deve sua filosofia da decadência. E não poderia ser diferente. A presença de Nietzsche significou um verdadeiro divisor de águas na história da cultura ocidental moderna. E igualmente se fez sentir na literatura alemã. Carpeaux chega a apontar, em sua célebre História Concisa da Literatura Alemã, que à Bíblia de Lutero e à tradução de Shakespeare por Christoph Martin Wieland, publicada entre 1762 e 1766, deve-se a renovação da literatura alemã. Não se estaria cometendo nenhum equívoco ao se acrescentar o nome de Nietzsche a essa dupla.
É dele, ao que parece, que Mann herdou seus temas mais caros. Não é em vão que em seu romance mais célebre, A Montanha Mágica, Hans Castorp só consegue encontrar o conhecimento através da enfermidade e da vida nas alturas, dois símbolos eminentemente nietzschianos. Assim como o Zaratustra de Nietzsche, Castorp precisa subir a montanha para encontrar a verdade, como, aliás, fizeram grandes personagens. É no Monte Tabor que Cristo empreende, ante João, Tiago e Pedro, a sua transfiguração. E é igualmente no Gólgota que ele se entrega como o mais santo dos cordeiros. De igual forma, é a enfermidade uma das formas da razão no pensamento nietzschiano, e em mais de uma passagem de sua obra, sobretudo em seu Ecce Homo, ele deixou isso claro. É exatamente a enfermidade que, ao obrigar Hans Castorp a permanecer no sanatório Berghof, em Davos, permite-lhe ver melhor a realidade que o cerca.
É igualmente de Nietzsche que Mann herda essa certa sensualidade estética presente em livros como Morte em Veneza. Tadzio é a própria beleza que se fez carne, a adoração que o personagem Gustav von Aschenbach sente por ele é a mesma adoração que um esteta pode sentir pela arte, tal como Nietzsche via essa mesma imagem da beleza nos romances de Dostoiévski ou na Carmen de Bizet. Mann segue, em grande medida, esses mesmos passos, sem, contudo, aspirar ao estilo aforístico de seu oculto mestre.
Um artista frequentemente disfarça as suas mais caras influências quando possui erudição suficiente para fazê-lo. Ou então elas lhe são de tal modo poderosas e íntimas que chegam a se tornar inconscientes, quase involuntárias. No caso de Thomas Mann, o mais sensato é classificá-lo no segundo caso. Ao se olhar no espelho, não é Schopenhauer quem o mira, mas Nietzsche, ainda que ele possa tentar nos convencer do contrário. Como em um jogo de espelhos no qual o jogador acaba sempre malogrado, Mann foi um continuador silencioso e competente de alguns dos temas mais caros a Nietzsche, ainda que, conscientemente, acreditasse cultivar aquela estética da decadência representada pela filosofia de Schopenhauer. E seus romances mais célebres são quase ilustrações de certas ideias significativas daquele polêmico pensador de Röcken, e foi com elas que ele traçou algumas das imagens mais poderosas do século XX, o qual, assim como Hans Castorp e Nietzsche, sofria de uma grande enfermidade.
Carpeaux talvez achasse extravagante tudo isso. Mas mesmo um grande crítico pode falhar. Sua virulenta e impiedosa crítica a Thomas Mann constitui uma prova disso. E, até que se prove o contrário, livros como Morte em Veneza, A Montanha Mágica e Doutor Fausto seguirão sendo lidos continuamente, pois esta é exatamente uma das funções da grande arte: atravessar incólume a escuridão dos séculos.
Adonay Ramos Moreira
Escritor e advogado