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domingo, 6 de maio de 2018

SOBRE A IDEIA DO ETERNO RETORNO (Excerto da obra "A insustentável leveza do ser" - Milan Kundera)

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O eterno retorno é uma ideia misteriosa, e Nietzsche, com essa ideia, colocou muitos filósofos em dificuldade: pensar que um dia tudo vai se repetir tal como foi vivido e que essa repetição ainda vai se repetir indefinidamente! O que significa esse mito insensato?
O mito do eterno retorno nos diz, por negação, que a vida que vai desaparecer de uma vez por todas, e que não mais voltará, é semelhante a uma sombra, que ela é sem peso, que está morta desde hoje, e que, por mais atroz, mais bela, mais esplêndida que seja, essa beleza, esse horror, esse esplendor, não tem o menor sentido. Essa vida não deve ser considerada mais importante do que uma guerra entre dois reinos africanos do século XIV, que não alterou em nada a face do mundo, embora trezentos mil negros tenham encontrado a morte através de indescritíveis suplícios.
Será que essa guerra entre dois reinos africados do século XIV se modifica pelo fato de se repetir um número incalculável de vezes no eterno retorno?
Sim, certamente: ela se tornará um bloco que se forma e perdura, e sua tolice será sem remissão.
Se a Revolução Francesa devesse repetir-se eternamente, a historiografia francesa se mostraria menos orgulhosa de Robespierre. Mas, como ela trata de uma coisa que não voltará, os anos sangrentos não são mais que palavras, teorias, discussões - são mais leves que uma pluma, já não provocam medo. Existe uma enorme diferença entre um Robespierre que não aparece senão uma vez na história e um Robespierre que voltasse eternamente cortando a cabeça dos franceses.
Digamos, portanto, que a ideia do eterno retorno designa uma perspectiva na qual as coisas não parecem ser como nós as conhecemos: elas nos aparecem sem a circunstância atenuante de sua fugacidade.
Essa circunstância atenuante nos impede, com efeito, de pronunciar qualquer veredicto. Como condenar o que é efêmero? As nuvens alaranjadas do crepúsculo douram todas as coisas com o encanto da nostalgia, inclusive a guilhotina.
Não há muito tempo, eu mesmo fui dominado por este fato: parecia-me incrível, mas, folheando um livro sobre Hitler, fiquei emocionado diante de algumas de suas fotos; elas me lembravam o tempo de minha infância; eu a vivi durante a guerra; diversos membros de minha família foram mortos nos campos de concentração nazistas; mas o que era a morte deles diante dessa fotografia de Hitler que me lembrava de um tempo passado da minha vida, um tempo que não voltaria mais?
Essa reconciliação com Hitler trai a perversão moral inerente a um mundo fundado essencialmente sobre a inexistência do retorno, pois nesse mundo tudo é perdoado por antecipação e tudo é, portanto, cinicamente perdido.

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Se cada segundo de nossa vida deve se repetir um número infinito de vezes, estamos pregados na eternidade como Cristo na cruz. Que ideia atroz! No mundo do eterno retorno, cada gesto carrega o peso de um insustentável leveza. Isso é o que fazia com que Nietzsche dissesse que a ideia do eterno retorno é o mais pesado dos fardos (das schwerste Gewicht).
Se o eterno retorno é o mais pesado dos fardos, nossas vidas, sobre esse pano de fundo, podem aparecer em toda a sua esplêndida leveza.
Mas, na verdade, será atroz o peso e bela a leveza?
O mais pesado fardo nos esmaga, nos faz dobrar sob ele, nos esmaga contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o peso do corpo masculino. O fardo mais pesado é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da mais intensa realização vital. Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está a nossa vida, e mais ela é real e verdadeira.
Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, com que ele voe,se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semi-real, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes.
Então, o que escolher? O peso ou a leveza?
Foi a pergunta que Parmênides fez a si mesmo no século VI antes de Cristo. Segundo ele, o universo está dividido em duplas de contrários: a luz e a obscuridade, o grosso e o fino, o quente e o frio, o ser e o não-ser. Ele considerava que um dos polos da contradição é positivo (o claro, o quente, o fino, o ser), o outro, negativo. Essa divisão em polos positivo e negativo pode nos parecer de uma facilidade pueril. Menos em um dos casos: o que é positivo, o peso ou a leveza?
Parmênides respondia:o leve é positivo, o pesado negativo. Teria ou não razão? Essa é a questão. Uma coisa é certa. A contradição pesado-leve é a mais misteriosa e a mais ambígua de todas as contradições.

(KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, pp. 09-11)

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