Vladimir Safatle
Jacques Lacan costumava dizer que nunca se ultrapassava um grande
pensador, pois a verdade era sempre nova. Talvez seja o caso de aplicar
tal raciocínio a Karl Marx.
Poucos foram os autores tão acusados de nada mais ter a dizer sobre
nosso tempo do que esse filósofo que um dia afirmou que a função maior
do pensamento não era interpretar a realidade, mas transformá-la.
Vinculou-se de bom grado o destino de suas ideias ao mesmo lugar a que
foram enviados os regimes comunistas do século 20, ou seja, à lata de
lixo da história.
No entanto, nestes últimos 20 anos pós-queda do Muro de Berlim não
foram poucas as vezes em que o espectro de Marx pareceu retornar. Um
retorno que ganhou nos últimos dois anos força inusitada.
Qualquer um que frequente livrarias pelo mundo percebe como livros
sobre Marx ou de sua própria autoria voltaram às prateleiras. Embalado
principalmente pelo desencanto provocado pela crise econômica de 2008, o
retorno de Marx faz parte de um movimento lento que visa recolocar
esquemas alternativos de reflexão sobre o desenvolvimento das sociedades
modernas e seus impasses.
O caso brasileiro não poderia ser diferente, já que, entre nós, o
pensamento marxista nunca desapareceu completamente – resultado da
existência de uma robusta tradição marxista local. Apenas neste ano, o
Brasil recebeu as primeiras traduções diretas do alemão de textos
maiores como O 18 de Brumário, Guerra Civil na França e os Grundrisse (Boitempo).
Desses lançamentos, certamente o último é o empreendimento mais
ousado. Trata-se de uma espécie de primeira versão dos estudos que
posteriormente dariam forma à obra maior de Marx: O Capital. Nos Grundrisse, podemos
ver seu pensamento em movimento, apreendê-lo em seu processo de
trabalho com suas articulações decisivas entre filosofia, lógica
hegeliana e economia política.
No entanto, seria interessante perguntar qual é este Marx que
atualmente retorna. O século 20 conheceu o Marx da luta de classes, da
revolução proletária iminente, da teleologia histórica. O Marx
fundamental na organização do imaginário que guiou os grandes partidos
esquerdistas que animaram as lutas políticas do século com suas demandas
de ruptura e revolução.
Pré-modernidade
Já nos anos 1930, os teóricos da chamada Escola de Frankfurt não
tinham muitas esperanças nesse Marx, embora ele ainda mobilizasse
grandes contingentes à espera da redenção histórica. Da mesma forma, o
pensamento que se desdobrou a partir de maio de 1968 tinha como seu
objeto maior de crítica à crença nas “metanarrativas” dessa história
revolucionária.
Mas é fato que duas outras temáticas parecem agora retornar com força
e se colocar na linha de frente do retorno de Marx. Elas alimentam o
Marx teórico da alienação nas sociedades modernas e do fetichismo
próprio ao capitalismo.
Certamente, a teoria marxista do fetichismo é um dos modelos mais
profícuos de compreensão do núcleo regressivo das sociedades modernas,
ou seja, da maneira com que nossas sociedades ditas desencantadas têm,
em seu núcleo central, um encantamento estruturalmente parecido ao
encantamento fetichista dos povos pré-modernos.
Ela foi usada como regime de crítica aos bloqueios sociais de
reconhecimento nas esferas fundamentais de nossa forma de vida, como as
esferas do trabalho, do desejo (vide o trabalho dos freudo-marxistas) e
da linguagem (vide a teoria adorniana da cultura). Tal teoria,
contrariamente ao que se acreditava nos anos 1960, é um setor
fundamental da crítica da alienação que assombra nossas sociedades.
Fonte: Revista Cult
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