Quem sou eu

SÃO LUÍS, MARANHÃO, Brazil

sábado, 29 de novembro de 2025

A VELHA DO 157

 

Por Rogério Rocha

 

Era o ônibus da meia-noite: o tradicional 157. O mesmo que eu tomava para casa todos os dias há 10 anos. Saía do trabalho cansado e com fome. Tinha sido um dia ruim. Muita cobrança e pouco reconhecimento. Não via a hora de deitar em minha cama e dormir. Minha cabeça latejava, meu corpo pedia descanso.

Naquele dia, um domingo, a condução estava vazia. Àquela altura, só eu e o motorista.

Ao passarmos em frente ao cemitério da Boa Vida, uma passageira fez parada. Segundos depois, subia uma velhinha pela porta dos fundos. O condutor resmungou alguma coisa em tom de reclamação, mas logo deixou para lá.

A mulher de xale preto, que andava encurvada, sentou-se no lado oposto ao que eu estava. Mas que diabos uma mulher dessa idade fazia na rua uma hora daquelas, pensei. A cidade anda muito perigosa. Qualquer vacilo, hoje, é fatal.

Quase chegando na parada do meu bairro, olhei para o lado e notei a feiura daquela mulher. Cabelos acinzentados, olhos fundos e negros, pele ressecada e cheia de rugas. Assim como sentou, permaneceu: ofegante e com o olhar perdido.

Fiz parada e desci no meu ponto, enquanto o ônibus seguiu viagem. Tomei o rumo de casa.

Olhei para trás e percebi que aquela senhora esquisita também havia descido. Resolvi apertar o passo, pois tinha pressa e não pretendia ter de ajudar uma idosa no meio da madrugada.

Não adiantou! Ela também caminhou mais rápido. Começou a chamar “meu filho, meu filho!”, e pensei, “agora pronto!” Vendo que aquilo continuava – e já incomodado com a velha – dei meia volta e disse: “que foi, senhora? ” A mulher desacelerou e veio ao meu encontro. Demonstrando cansaço, parou à minha frente e falou: “Preciso de um favor seu para algo muito importante. Só você poderá me ajudar.”

Na mesma hora, senti um cheiro de golpe no ar. Deve ser alguma pedinte, logo pensei. Ela então continuou: “Quero que você entregue uma coisa a meu neto. É um pressente que deixei pra ele”. Retruquei, dizendo: “Senhora, eu não conheço seu neto! E mais, eu não sei nem quem a senhora é!”

Ainda assim, ela insistiu, reforçando a ideia de que só eu poderia ajudá-la. Chegou bem perto de mim, segurou em meu braço e continuou: “Quando ele aparecer, você saberá. Aí você entregará isso aqui a ele.”

Uma coruja piou no alto de uma árvore. O vento soprou por entre as folhas dos galhos mais altos. A velhinha, então, retirou um cordão de ouro, com um grande crucifixo, de dentro de uma bolsinha que trazia na mão. Entregou-me com cuidado. Guardei-o no bolso da calça, enquanto ela inclinava lentamente a cabeça, em sinal de agradecimento.

Saí às pressas para casa. Ao virar o canto que dava para a minha rua, levei um grande sustou ao dar de cara com um adolescente. Sem perder tempo, ele me apontou uma faca e gritou: “Passa o dinheiro, mané!”

Assustado, dei dois passos para trás, levantei as mãos e pedi que tivesse calma. Fiquei atordoado. Meu corpo se tremia todo. Perder os cinquenta reais que trazia no bolso seria uma merda. Num estalo, lembrei-me do que a velha havia falado e do cordão que trazia comigo. Antes ele que meu suado dinheiro.

Tirei do bolso o estranho presente e entreguei-o ao ladrão. Assim que o recebeu, arregalou os olhos e exclamou: “O cordão da vovó! Mas onde você achou isso?” Ainda nervoso, respondi: “Rapaz, uma senhora quem me deu, agora há pouco. Pediu que eu entregasse ao neto dela.”

O moleque, todo sem jeito, sorriu da minha cara. “Que mané agorinha que nada, rapá! Tá louco, mano? Vovó Inácia morreu semana passada. Sofreu um infarto quando voltava para casa no ônibus 157. Tava vindo de visitar uma irmã.”

Fiquei arrepiado ao saber daquilo. Meu corpo estremeceu, o coração disparou. Recebi o cordão de uma velha morta. Mas como? Para minha sorte, o jovem trombadinha desistiu de me assaltar. Mandou que eu ‘vazasse’. Enquanto se afastava, gritou que eu tinha dado sorte. Desesperado, saí correndo feito um maluco.

Sem entender nada do que havia se passado, cheguei em casa esbaforido, as mãos trêmulas, suando frio. Quase não consegui encaixar a chave na fechadura.

Abri a porta, entrei rapidamente e fechei-a com toda força. Desisti do banho e do jantar, tranquei-me no quarto, troquei de roupa, deitei na cama e rezei para que o sono chegasse logo. Só queria descansar e esquecer de tudo aquilo.

Naquela noite, tomei a decisão de nunca mais pegar o ônibus da linha 157.

domingo, 26 de outubro de 2025

UM COMPANHEIRO DE JORNADAS

 

Por Rogério Rocha

Ele recebe nomes variados, mas todos, de uma forma ou de outra, indicam seu lugar de destaque no universo masculino. Pinto, pênis, pau, cacete, instrumento, companheiro, garoto, valente, rola, cabra da peste, foguete, lança, pila, bastão da justiça íntima. 

Tem quem chame de soldado, general ou coisa do gênero. Há quem, em tom mais familiar e afetuoso, prefira chamá-lo de “membro”, como se fosse sócio ou integrante de alguma instituição. Particularmente, nunca optei por nada assim tão esdrúxulo. É pênis e pronto. Mas bem que poderia denominá-lo de “companheiro de jornadas”, já que tem me acompanhado a vida toda.

Desde cedo, fez questão de se mostrar presente, quase para lembrar que estava ali. Sem qualquer cerimônia, logo de manhã cedo, como um moleque desobediente, levantava antes de mim. Com alegria juvenil, demonstrava seu vigor, como se fosse para gritar: “Positivo e operante!” Era mesmo difícil de esconder.

Ao longo do tempo, o companheiro cresceu e aprendeu a desbravar muitos caminhos. Conheceu lugares bonitos, feios, quentes, úmidos, acolhedores, outros nem tanto. Cumpriu missões perigosas, meteu-se em enrascadas, mas soube desfrutar de cada momento, ajudando a humanidade a seguir seu rumo.

Soube compreender que a vida passa, a idade avança e transformações ocorrem naturalmente. Também entendeu que as etapas são superadas e a experiência adquirida adiciona novos ritmos e outros sabores aos já conhecidos.

Até aqui viemos. Aqui está ele. Atuante quando precisa, tranquilo quando não, mas sempre a postos para as futuras incursões. Seguimos juntos, como dois veteranos, caminhando no compasso do tempo.

Afinal, no fim das contas, esse fiel companheiro é bem mais que um mero órgão sexual. É testemunha de alegrias, dissabores, desejos e conquistas.

domingo, 21 de setembro de 2025

ADEUS, FENÔMENO!



Por Rogério Rocha

A morte do poeta Viriato Gaspar (ocorrida na quarta-feira, dia 17 de setembro), tomou de assalto o meu dia seguinte. A notícia, que recebi por intermédio de um amigo, chegou com o impacto de um terremoto.


É difícil aceitar o desaparecimento de um dos mais brilhantes nomes das nossas letras. Figura que surgiu no cenário local como um fenômeno, ganhando importantes concursos em sequência, sendo o primeiro com apenas 17 anos de idade.


Ainda na juventude, Viriato tornou-se um dos membros do Antroponáutica, movimento artístico-literário que definiu o início da pós-modernidade no âmbito da criação artística no panorama da capital. Movimento este que, infelizmente, nunca teve, por parte da nossa intelectualidade, o merecido reconhecimento, resumindo-se às notas de rodapé dos registros históricos, a artigos esporádicos nos jornais e a algumas citações em trabalhos acadêmicos.


Em seu fazer estético, o poeta conjugava, com equilíbrio e clareza inequívocas,  estilo, forma e conteúdo. Também estavam presentes a sensibilidade e apuro técnico no uso da linguagem.


Sempre me impressionou o modo como conseguia fundir características herdadas da tradição literária com a pulsação moderna, erguendo pontes entre o passado e o presente.


Pessoalmente, guardarei comigo os ensinamentos que me deixou e as conversas em que sinalizou caminhos para minha escrita. 

Aprendi com ele a ter coragem diante da página em branco e a não temer os desafios que a vida literária impõe. Em um de seus conselhos disse-me certa vez: “não tenha medo de ser sincero com o peso da tua palavra, mas não esqueça a delicadeza que nos salva”. Lição que nenhum manual poderia me oferecer. 


O legado de Viriato terá a marca do humanismo, da luta contra as injustiças, do senso crítico e da amizade que partilhou com aqueles que tiveram a sorte de com ele conviver.


O Maranhão perdeu, portanto, um de seus modernistas mais ousados, e nós perdemos um referencial no campo da palavra. Reconheço, com gratidão, a importância que ele teve para a literatura do Brasil. 


Obrigado, Viriato Gaspar, pelos gestos de carinho, pelos conselhos e pelo apoio ao meu trabalho. Obrigado por ter nos permitido caminhar ao seu lado. Do fundo do coração, carregarei comigo a honra de ter conhecido o poeta, o amigo e um homem insubstituível.


quinta-feira, 11 de setembro de 2025

FIM DE NOITE


Por Rogério Rocha

 

Quando cheguei ao Bar do Léo, o vento morno da madrugada de São Luís envolvia o bairro do Vinais. Aquele leve mormaço, muito comum durante as noites de verão, era um convite para tomar umas cervejas e jogar conversa fora.

Como sempre, lá estavam, nas paredes daquele reduto boêmio da cidade, as famosas capas de discos de vinil, cassetes e caixas de CD's, que se destacavam sob a iluminação fraca que vinha do teto. Aliás, o espaço é cheio de relíquias de vários períodos da nossa música, tendo uma decoração marcada pela presença de uma dezena de itens dignos de serem encontrados num bom antiquário.

Há anos vinha tentando encontrá-lo, mas as nossas vidas não ajudavam. Naquele dia, porém, o vento da sorte soprou a nosso favor. Com o bar estranhamente vazio, encontrei meu amigo sentado em um lugar mais escondido, bebendo uma gelada.

Quando cheguei à mesa, já encontrei a segunda garrafa pela metade. Notei minhas mãos suadas. Talvez pelo nervosismo ou, quem sabe, pela temperatura um tanto elevada para o final da noite. Enfim, não é sempre que se tem a oportunidade de tomar umas com um gênio da música no bar mais cult da cidade.

Dei-lhe um abraço forte, retribuído com um sorriso e um convite para que me sentasse na cadeira ao lado. Ficamos mais de duas horas conversando sobre tudo o que puderem imaginar. De discos voadores a símbolos mágicos, de filosofia a budismo, do Egito aos Estados Unidos, passando pela música, obviamente. Afinal, a música sempre foi a praia dele.

— E então, Rogerito, é verdade que o rock virou uma espécie de servidor público que bate ponto? Tá só mesmice? – perguntou com a voz levemente arrastada.

— Olha... sei lá! Acho que ainda existe uma certa atitude em algumas figuras, mas é algo muito raro. O gênero está perdendo vigor; muitos nomes estão morrendo ou se aposentando. Acho que a música está sendo engolida pelo lixo das playlists do Spotify – respondi.

Meu amigo gargalhou de forma estridente ao ouvir meu comentário.

— Olha, meu rei, vou te contar! Quando comecei, em 1973, a gente gravava num estúdio com mesa de quatro canais e um técnico de som. Mas a coisa era séria. Hoje, é um horror de gente desafinada, qualquer um quer ser cantor. E dá-lhe autotune em toda música sem qualidade.

Nesse momento, o som de um disco de vinil entoou os primeiros acordes de “Tente outra vez”, tocando baixinho. O seu Léo, dono do bar, atrás do balcão, limpava os copos americanos com a destreza de um ourives, enquanto olhava para a gente.

— E as letras das músicas de hoje, meu amigo? Você gosta? – perguntei.

— As letras são descartáveis: cabem num hit de três minutos, não dizem nada, não trazem mensagem... Não fazem minha cabeça nem cabem no meu coração.

Fiquei em silêncio por alguns instantes, saboreando minha cerveja e remoendo nossas reflexões. No ambiente, àquela hora vazio, ecoava a voz do Paul na triste e bela “Golden slumbers”.

De súbito, meu companheiro de mesa virou-se para o balcão e falou:

— Ô, seu Léo! Manda aí qualquer música romântica do Elvis! Deu vontade de ouvir agora.

O dono do bar virou-se lentamente, com expressão de raiva e disse:

— O que é isso? Não, aqui não. Você não leu a plaquinha na parede? É expressamente proibido ao freguês pedir música aqui.

— Como assim, meu senhor?

— Aqui tem lei! Eu faço a lei e crio a regra. O cliente não pede música. Quem manda na seleção sou eu. – reforçou o dono da casa.

Indignados, entreolhamo-nos e balançamos a cabeça, impressionados com a situação. Descontentes com o comportamento daquele tipo autoritário, começamos a contestá-lo.

—Ah, entendi… O mestre põe o que quiser, quando quiser, e o Zé Mané que ouça caladinho. Muito bem! Temos aqui um quartel da ditadura cultural vestido com roupa de cult.” – retruquei num tom debochado.

O silêncio seguiu-se àquelas palavras em tom de revolta. A transgressão verbal pairou no ar como gás procurando faísca para o fogo, quase uma bomba prestes a explodir. Sem demora, o proprietário do bar dirigiu-se ao único garçom ainda na casa, determinando:

— Acabou o expediente! Vamos fechar. Retire esses dois daqui agora mesmo!

Para evitar confusão naquele final de noite, pagamos a conta e saímos sem dizer mais nada. Literalmente escorraçados, como bêbados em uma crise de lucidez.

Lá fora, a cidade seguia o curso da madrugada silenciosa.

Raul acendeu um cigarro, expirou lentamente a fumaça e falou com ironia:

— Por quem os sinos dobram, meu amigo? Será que dobram por nós?

Ouvi aquilo intrigado. A cabeça pesada e o inebriamento alcoólico não me permitiram buscar uma resposta. Restou-me um silêncio sem graça.

Sorri e segui até meu carro. Perguntei se não vinha comigo, pois já era tarde. Daria-lhe uma carona.

- Obrigado, meu amigo, mas vou até a estação. Para onde eu moro, só de trem. Vou no trem das sete horas. Um abraço e até a próxima! – disse, virando-se e seguindo pela calçada, subindo a rua.

Despedi-me dele e percebi que aquele ‘tchau’ tinha um quê de adeus para sempre.


segunda-feira, 8 de setembro de 2025

413



 

Por Rogério Rocha

 

413: é um número. Marca contabilística, arrojo do tempo. Poeira sobre as ruas, cisco que cai das telhas. O orgulho por arder ainda uma fogueira pelas noites de São João. Carruagens, não! Não mais. BMW’s, BYD's, Celtas, Unos, Palios. Gente espremida nos ônibus, calor dos diabos, buracos com fome de chuva, bueiros sem tampa, motoqueiros malucos, calçadas minúsculas, desespero nas transversais, Rua Grande e Santana, Korea, China, China in Box, never mind. Vejo de binóculos, do alto das casas, do mirante de um banco que faliu, o pregoeiro fantasma, os sons de espingardas, barbudos, barbados, Chagas, Machado. Giro o dial sem parar, mas só estanco na pedra que rola nas ondas de um point da 96. Eu sou assim! Não sei vocês. Ainda guardo algum orgulho. Centro que tomba, gente invisível, patrimônio mudo, camelôs revoltados, juçara-açaí. É isso mesmo, é isso aí! Arrasto as sandálias do pescador, sinto o cheiro dos peixes do mercado, ao lado do trilho, da linha do trem-encantado. VLT, LGBT e o gado com bandeiras nas carreatas. Caras e caretas, mutretas, bravatas. E a estátua da liberdade, quem diria, mocinha de pele alva com a tocha e o livro nas mãos. Fofão fofinho, labubu dos infernos, tribufu do cão. Capoeira de Angola na Liberdade. Pode vir! Saio na mão, quebro o pau, viro bicho. Que maldade, mais um caiu do céu no fim da tarde. Que doideira, um outro atirou-se da ponte pensando besteira. Já era, foi anteontem. Deu para ver das torres gêmeas, no espigão do horizonte. 413, 413, 413, só para lembrar; a memória falha, a alegria engole a tiquira das Tulhas e a batida de maracujá. Reinvento o molejo de uma dança sacana que me ensinaram. Continuo a tropeçar nas mesmas pedras, a urinar nas muradas. Os problemas que me perseguem são os mesmos. Há mil razões para ser quem eu sou, estar como estou, chegar onde cheguei. Comemoro o luxo e a pobreza, a falência e a riqueza, o navio que afundou no banco de areia, o petróleo indo embora na correnteza. Ah, sim! Há razões para comemorar. Quero shows na praça, carnaval, facções detrás das grades, febris arruaças. Quero, com pressa, as soluções inclusivas. A execução efetiva de todos os planos, a exclusão da política do abandono. Leis que não sejam letra morta, Socorrão vazio, plano diretor. Quero caranguejo, sururu. Mocotó, por favor! Doces em compota, via expressa, mente aberta e ruas tortas. Ver desabar o contraste e as carências, as estatísticas policiais das mortes violentas. Quem sabe um dia, o Barreto seja um barato. E comer no Ferreiro seja menos caro. 413 obras, sobras, dobras, temporais. Mas meu corpo líquido, meu corpo pesado, requer cuidados demais. Para que não fiquem expostas as feridas que trago nas costas, o espaço imaginário, a juventude sem escola, a cultura para os cegos, como esmola. Mas como é bom que o meu nome atravesse fronteiras, projete sonhos em novos circuitos. Num outro mundo, Gullar foi Ferreira, aipim foi macaxeira, peixe frito espetado na peixeira. E as projeções viraram Lume nas paredes brancas, pelos olhos de um Frederico. Fez-se um palco muito rico e um repertório de ilusões. E, sustentando tudo isso, sem decreto ou patrocínio, minhas costas largas, meu largo de amor e extermínio. Sou essa luz que comove, no trajeto de um barco que cruza a baía. 413 enganos: permaneço travessia. Festa e cansaço, memória e esquecimento.

Postagens populares

Total de visualizações de página

Páginas