Quem sou eu

SÃO LUÍS, MARANHÃO, Brazil

domingo, 26 de outubro de 2025

UM COMPANHEIRO DE JORNADAS

 

Por Rogério Rocha

Ele recebe nomes variados, mas todos, de uma forma ou de outra, indicam seu lugar de destaque no universo masculino. Pinto, pênis, pau, cacete, instrumento, companheiro, garoto, valente, rola, cabra da peste, foguete, lança, pila, bastão da justiça íntima. 

Tem quem chame de soldado, general ou coisa do gênero. Há quem, em tom mais familiar e afetuoso, prefira chamá-lo de “membro”, como se fosse sócio ou integrante de alguma instituição. Particularmente, nunca optei por nada assim tão esdrúxulo. É pênis e pronto. Mas bem que poderia denominá-lo de “companheiro de jornadas”, já que tem me acompanhado a vida toda.

Desde cedo, fez questão de se mostrar presente, quase para lembrar que estava ali. Sem qualquer cerimônia, logo de manhã cedo, como um moleque desobediente, levantava antes de mim. Com alegria juvenil, demonstrava seu vigor, como se fosse para gritar: “Positivo e operante!” Era mesmo difícil de esconder.

Ao longo do tempo, o companheiro cresceu e aprendeu a desbravar muitos caminhos. Conheceu lugares bonitos, feios, quentes, úmidos, acolhedores, outros nem tanto. Cumpriu missões perigosas, meteu-se em enrascadas, mas soube desfrutar de cada momento, ajudando a humanidade a seguir seu rumo.

Soube compreender que a vida passa, a idade avança e transformações ocorrem naturalmente. Também entendeu que as etapas são superadas e a experiência adquirida adiciona novos ritmos e outros sabores aos já conhecidos.

Até aqui viemos. Aqui está ele. Atuante quando precisa, tranquilo quando não, mas sempre a postos para as futuras incursões. Seguimos juntos, como dois veteranos, caminhando no compasso do tempo.

Afinal, no fim das contas, esse fiel companheiro é bem mais que um mero órgão sexual. É testemunha de alegrias, dissabores, desejos e conquistas.

domingo, 21 de setembro de 2025

ADEUS, FENÔMENO!



Por Rogério Rocha

A morte do poeta Viriato Gaspar (ocorrida na quarta-feira, dia 17 de setembro), tomou de assalto o meu dia seguinte. A notícia, que recebi por intermédio de um amigo, chegou com o impacto de um terremoto.


É difícil aceitar o desaparecimento de um dos mais brilhantes nomes das nossas letras. Figura que surgiu no cenário local como um fenômeno, ganhando importantes concursos em sequência, sendo o primeiro com apenas 17 anos de idade.


Ainda na juventude, Viriato tornou-se um dos membros do Antroponáutica, movimento artístico-literário que definiu o início da pós-modernidade no âmbito da criação artística no panorama da capital. Movimento este que, infelizmente, nunca teve, por parte da nossa intelectualidade, o merecido reconhecimento, resumindo-se às notas de rodapé dos registros históricos, a artigos esporádicos nos jornais e a algumas citações em trabalhos acadêmicos.


Em seu fazer estético, o poeta conjugava, com equilíbrio e clareza inequívocas,  estilo, forma e conteúdo. Também estavam presentes a sensibilidade e apuro técnico no uso da linguagem.


Sempre me impressionou o modo como conseguia fundir características herdadas da tradição literária com a pulsação moderna, erguendo pontes entre o passado e o presente.


Pessoalmente, guardarei comigo os ensinamentos que me deixou e as conversas em que sinalizou caminhos para minha escrita. 

Aprendi com ele a ter coragem diante da página em branco e a não temer os desafios que a vida literária impõe. Em um de seus conselhos disse-me certa vez: “não tenha medo de ser sincero com o peso da tua palavra, mas não esqueça a delicadeza que nos salva”. Lição que nenhum manual poderia me oferecer. 


O legado de Viriato terá a marca do humanismo, da luta contra as injustiças, do senso crítico e da amizade que partilhou com aqueles que tiveram a sorte de com ele conviver.


O Maranhão perdeu, portanto, um de seus modernistas mais ousados, e nós perdemos um referencial no campo da palavra. Reconheço, com gratidão, a importância que ele teve para a literatura do Brasil. 


Obrigado, Viriato Gaspar, pelos gestos de carinho, pelos conselhos e pelo apoio ao meu trabalho. Obrigado por ter nos permitido caminhar ao seu lado. Do fundo do coração, carregarei comigo a honra de ter conhecido o poeta, o amigo e um homem insubstituível.


quinta-feira, 11 de setembro de 2025

FIM DE NOITE


Por Rogério Rocha

 

Quando cheguei ao Bar do Léo, o vento morno da madrugada de São Luís envolvia o bairro do Vinais. Aquele leve mormaço, muito comum durante as noites de verão, era um convite para tomar umas cervejas e jogar conversa fora.

Como sempre, lá estavam, nas paredes daquele reduto boêmio da cidade, as famosas capas de discos de vinil, cassetes e caixas de CD's, que se destacavam sob a iluminação fraca que vinha do teto. Aliás, o espaço é cheio de relíquias de vários períodos da nossa música, tendo uma decoração marcada pela presença de uma dezena de itens dignos de serem encontrados num bom antiquário.

Há anos vinha tentando encontrá-lo, mas as nossas vidas não ajudavam. Naquele dia, porém, o vento da sorte soprou a nosso favor. Com o bar estranhamente vazio, encontrei meu amigo sentado em um lugar mais escondido, bebendo uma gelada.

Quando cheguei à mesa, já encontrei a segunda garrafa pela metade. Notei minhas mãos suadas. Talvez pelo nervosismo ou, quem sabe, pela temperatura um tanto elevada para o final da noite. Enfim, não é sempre que se tem a oportunidade de tomar umas com um gênio da música no bar mais cult da cidade.

Dei-lhe um abraço forte, retribuído com um sorriso e um convite para que me sentasse na cadeira ao lado. Ficamos mais de duas horas conversando sobre tudo o que puderem imaginar. De discos voadores a símbolos mágicos, de filosofia a budismo, do Egito aos Estados Unidos, passando pela música, obviamente. Afinal, a música sempre foi a praia dele.

— E então, Rogerito, é verdade que o rock virou uma espécie de servidor público que bate ponto? Tá só mesmice? – perguntou com a voz levemente arrastada.

— Olha... sei lá! Acho que ainda existe uma certa atitude em algumas figuras, mas é algo muito raro. O gênero está perdendo vigor; muitos nomes estão morrendo ou se aposentando. Acho que a música está sendo engolida pelo lixo das playlists do Spotify – respondi.

Meu amigo gargalhou de forma estridente ao ouvir meu comentário.

— Olha, meu rei, vou te contar! Quando comecei, em 1973, a gente gravava num estúdio com mesa de quatro canais e um técnico de som. Mas a coisa era séria. Hoje, é um horror de gente desafinada, qualquer um quer ser cantor. E dá-lhe autotune em toda música sem qualidade.

Nesse momento, o som de um disco de vinil entoou os primeiros acordes de “Tente outra vez”, tocando baixinho. O seu Léo, dono do bar, atrás do balcão, limpava os copos americanos com a destreza de um ourives, enquanto olhava para a gente.

— E as letras das músicas de hoje, meu amigo? Você gosta? – perguntei.

— As letras são descartáveis: cabem num hit de três minutos, não dizem nada, não trazem mensagem... Não fazem minha cabeça nem cabem no meu coração.

Fiquei em silêncio por alguns instantes, saboreando minha cerveja e remoendo nossas reflexões. No ambiente, àquela hora vazio, ecoava a voz do Paul na triste e bela “Golden slumbers”.

De súbito, meu companheiro de mesa virou-se para o balcão e falou:

— Ô, seu Léo! Manda aí qualquer música romântica do Elvis! Deu vontade de ouvir agora.

O dono do bar virou-se lentamente, com expressão de raiva e disse:

— O que é isso? Não, aqui não. Você não leu a plaquinha na parede? É expressamente proibido ao freguês pedir música aqui.

— Como assim, meu senhor?

— Aqui tem lei! Eu faço a lei e crio a regra. O cliente não pede música. Quem manda na seleção sou eu. – reforçou o dono da casa.

Indignados, entreolhamo-nos e balançamos a cabeça, impressionados com a situação. Descontentes com o comportamento daquele tipo autoritário, começamos a contestá-lo.

—Ah, entendi… O mestre põe o que quiser, quando quiser, e o Zé Mané que ouça caladinho. Muito bem! Temos aqui um quartel da ditadura cultural vestido com roupa de cult.” – retruquei num tom debochado.

O silêncio seguiu-se àquelas palavras em tom de revolta. A transgressão verbal pairou no ar como gás procurando faísca para o fogo, quase uma bomba prestes a explodir. Sem demora, o proprietário do bar dirigiu-se ao único garçom ainda na casa, determinando:

— Acabou o expediente! Vamos fechar. Retire esses dois daqui agora mesmo!

Para evitar confusão naquele final de noite, pagamos a conta e saímos sem dizer mais nada. Literalmente escorraçados, como bêbados em uma crise de lucidez.

Lá fora, a cidade seguia o curso da madrugada silenciosa.

Raul acendeu um cigarro, expirou lentamente a fumaça e falou com ironia:

— Por quem os sinos dobram, meu amigo? Será que dobram por nós?

Ouvi aquilo intrigado. A cabeça pesada e o inebriamento alcoólico não me permitiram buscar uma resposta. Restou-me um silêncio sem graça.

Sorri e segui até meu carro. Perguntei se não vinha comigo, pois já era tarde. Daria-lhe uma carona.

- Obrigado, meu amigo, mas vou até a estação. Para onde eu moro, só de trem. Vou no trem das sete horas. Um abraço e até a próxima! – disse, virando-se e seguindo pela calçada, subindo a rua.

Despedi-me dele e percebi que aquele ‘tchau’ tinha um quê de adeus para sempre.


segunda-feira, 8 de setembro de 2025

413



 

Por Rogério Rocha

 

413: é um número. Marca contabilística, arrojo do tempo. Poeira sobre as ruas, cisco que cai das telhas. O orgulho por arder ainda uma fogueira pelas noites de São João. Carruagens, não! Não mais. BMW’s, BYD's, Celtas, Unos, Palios. Gente espremida nos ônibus, calor dos diabos, buracos com fome de chuva, bueiros sem tampa, motoqueiros malucos, calçadas minúsculas, desespero nas transversais, Rua Grande e Santana, Korea, China, China in Box, never mind. Vejo de binóculos, do alto das casas, do mirante de um banco que faliu, o pregoeiro fantasma, os sons de espingardas, barbudos, barbados, Chagas, Machado. Giro o dial sem parar, mas só estanco na pedra que rola nas ondas de um point da 96. Eu sou assim! Não sei vocês. Ainda guardo algum orgulho. Centro que tomba, gente invisível, patrimônio mudo, camelôs revoltados, juçara-açaí. É isso mesmo, é isso aí! Arrasto as sandálias do pescador, sinto o cheiro dos peixes do mercado, ao lado do trilho, da linha do trem-encantado. VLT, LGBT e o gado com bandeiras nas carreatas. Caras e caretas, mutretas, bravatas. E a estátua da liberdade, quem diria, mocinha de pele alva com a tocha e o livro nas mãos. Fofão fofinho, labubu dos infernos, tribufu do cão. Capoeira de Angola na Liberdade. Pode vir! Saio na mão, quebro o pau, viro bicho. Que maldade, mais um caiu do céu no fim da tarde. Que doideira, um outro atirou-se da ponte pensando besteira. Já era, foi anteontem. Deu para ver das torres gêmeas, no espigão do horizonte. 413, 413, 413, só para lembrar; a memória falha, a alegria engole a tiquira das Tulhas e a batida de maracujá. Reinvento o molejo de uma dança sacana que me ensinaram. Continuo a tropeçar nas mesmas pedras, a urinar nas muradas. Os problemas que me perseguem são os mesmos. Há mil razões para ser quem eu sou, estar como estou, chegar onde cheguei. Comemoro o luxo e a pobreza, a falência e a riqueza, o navio que afundou no banco de areia, o petróleo indo embora na correnteza. Ah, sim! Há razões para comemorar. Quero shows na praça, carnaval, facções detrás das grades, febris arruaças. Quero, com pressa, as soluções inclusivas. A execução efetiva de todos os planos, a exclusão da política do abandono. Leis que não sejam letra morta, Socorrão vazio, plano diretor. Quero caranguejo, sururu. Mocotó, por favor! Doces em compota, via expressa, mente aberta e ruas tortas. Ver desabar o contraste e as carências, as estatísticas policiais das mortes violentas. Quem sabe um dia, o Barreto seja um barato. E comer no Ferreiro seja menos caro. 413 obras, sobras, dobras, temporais. Mas meu corpo líquido, meu corpo pesado, requer cuidados demais. Para que não fiquem expostas as feridas que trago nas costas, o espaço imaginário, a juventude sem escola, a cultura para os cegos, como esmola. Mas como é bom que o meu nome atravesse fronteiras, projete sonhos em novos circuitos. Num outro mundo, Gullar foi Ferreira, aipim foi macaxeira, peixe frito espetado na peixeira. E as projeções viraram Lume nas paredes brancas, pelos olhos de um Frederico. Fez-se um palco muito rico e um repertório de ilusões. E, sustentando tudo isso, sem decreto ou patrocínio, minhas costas largas, meu largo de amor e extermínio. Sou essa luz que comove, no trajeto de um barco que cruza a baía. 413 enganos: permaneço travessia. Festa e cansaço, memória e esquecimento.

terça-feira, 12 de agosto de 2025

O POETA NO CIMO DO ICEBERG


Viriato Gaspar


Entre encanto e espanto, entre engasgo e alumbramento, defronto-me com este testamento poético do meu imenso irmão e mestre Nauro Machado. Aqui sobejam luzes, cintilações, lampejos - em graus supernos - daquela escavação ontológica que o "opus" nauriano, desde "Campo sem Base", de 1957, delimitou e instaurou, na Poiésis da nossa terra.

Nauro é, seguramente, o maior poeta maranhense desde Antônio Gonçalves Dias. A densidade, a envergadura e a amplidão vocabulares, a par da extrema angústia de existir e a busca exasperada de um sentido para a lab(r)uta humana,  colocam-no num patamar de excelência somente alcançada por Poetas de excelsa magnitude. Sem que haja maiores pontos de contato entre as duas poéticas, a não ser a pujança e a dor de existir e resistir no humano, percebo o maranhense Nauro Machado e o paraibano Augusto dos Anjos como duas vozes próximas, embora bastante distantes entre si pelo tempo, características próprias e timbres inconfundíveis, como duas solitárias vozes de mais elevado ressoo na Poesia brasileira dessa dor universal e inexplicável da aventura humana, da busca pelo sentido maior do nosso estar-aqui.

Pela capacidade de colocar nas palavras uma tal voltagem, uma amperagem vocabular crispada e paroxística que chega a doer ao reverberar na alma de quem os lê, entre esmagos, engasgos, soluços e soçobros, dilaceamentos e flagelações.

Nauro, neste Iceberg gigantesco que põe a navegar pelos nossos olhos quase apagados pelos falsos brilhos deste tempo de imposturas relinchantes, nos conduz pelos sextetos deste poema único, indiviso, denso e pesado, quase claustrofóbico, versos que parecem vomitados do mais imo e mais fundo de um self torturado pela busca quase irrespondível do que salvar de seu naufrágio humano, existencial, poético e visceral.

Não fosse o autor de outros 42 livros de poemas, este Iceberg que Nauro põe a navegar na Praia Grande de sua amada/odiada São Luís, seria o suficiente para colocá-lo como um marco, um farol, um ponto de excelência, altíssimo e altíssono, na prateleira mais alta da Poesia do Maranhão.

Este testamento poético, nessa altitude e voltagem pinaculares, só podem deixar-nos, ao final da leitura, perplexos e maravilhados, angustiados e deslumbrados por esses versos perfurantes e agônicos, crispados e convulsos, quase como bofetadas sonoras em nossa epiderme rasa, anestesiada por simulacros e por selfies que nada mais refletem ou influenciam senão obesos vazios sem tutano.

Viva a literatura maranhense, capaz de ostentar gigantes como este imenso Poeta e seu gigantesco, hercúleo, irretocável Iceberg vocabular. Ninguém passará rasamente acomodado e meão ao ser tocado pela magia agônica deste petardo de um Poeta absurdamente maior.

                                                                                                                       Viriato Gaspar (poeta)


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