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SÃO LUÍS, MARANHÃO, Brazil

terça-feira, 12 de agosto de 2025

O POETA NO CIMO DO ICEBERG


Viriato Gaspar


Entre encanto e espanto, entre engasgo e alumbramento, defronto-me com este testamento poético do meu imenso irmão e mestre Nauro Machado. Aqui sobejam luzes, cintilações, lampejos - em graus supernos - daquela escavação ontológica que o "opus" nauriano, desde "Campo sem Base", de 1957, delimitou e instaurou, na Poiésis da nossa terra.

Nauro é, seguramente, o maior poeta maranhense desde Antônio Gonçalves Dias. A densidade, a envergadura e a amplidão vocabulares, a par da extrema angústia de existir e a busca exasperada de um sentido para a lab(r)uta humana,  colocam-no num patamar de excelência somente alcançada por Poetas de excelsa magnitude. Sem que haja maiores pontos de contato entre as duas poéticas, a não ser a pujança e a dor de existir e resistir no humano, percebo o maranhense Nauro Machado e o paraibano Augusto dos Anjos como duas vozes próximas, embora bastante distantes entre si pelo tempo, características próprias e timbres inconfundíveis, como duas solitárias vozes de mais elevado ressoo na Poesia brasileira dessa dor universal e inexplicável da aventura humana, da busca pelo sentido maior do nosso estar-aqui.

Pela capacidade de colocar nas palavras uma tal voltagem, uma amperagem vocabular crispada e paroxística que chega a doer ao reverberar na alma de quem os lê, entre esmagos, engasgos, soluços e soçobros, dilaceamentos e flagelações.

Nauro, neste Iceberg gigantesco que põe a navegar pelos nossos olhos quase apagados pelos falsos brilhos deste tempo de imposturas relinchantes, nos conduz pelos sextetos deste poema único, indiviso, denso e pesado, quase claustrofóbico, versos que parecem vomitados do mais imo e mais fundo de um self torturado pela busca quase irrespondível do que salvar de seu naufrágio humano, existencial, poético e visceral.

Não fosse o autor de outros 42 livros de poemas, este Iceberg que Nauro põe a navegar na Praia Grande de sua amada/odiada São Luís, seria o suficiente para colocá-lo como um marco, um farol, um ponto de excelência, altíssimo e altíssono, na prateleira mais alta da Poesia do Maranhão.

Este testamento poético, nessa altitude e voltagem pinaculares, só podem deixar-nos, ao final da leitura, perplexos e maravilhados, angustiados e deslumbrados por esses versos perfurantes e agônicos, crispados e convulsos, quase como bofetadas sonoras em nossa epiderme rasa, anestesiada por simulacros e por selfies que nada mais refletem ou influenciam senão obesos vazios sem tutano.

Viva a literatura maranhense, capaz de ostentar gigantes como este imenso Poeta e seu gigantesco, hercúleo, irretocável Iceberg vocabular. Ninguém passará rasamente acomodado e meão ao ser tocado pela magia agônica deste petardo de um Poeta absurdamente maior.

                                                                                                                       Viriato Gaspar (poeta)


sexta-feira, 8 de agosto de 2025

COMO EM UM JOGO DE ESPELHOS - SOBRE THOMAS MANN (Por Adonay Ramos Moreira)

                                                                Adonay Ramos Moreira


(sobre Thomas Mann)



Carpeaux não está de todo equivocado quando, em seu ensaio O Admirável Thomas Mann, reunido em volume na obra A Cinza do Purgatório, traça um perfil duvidoso de Thomas Mann, em um de seus ataques mais violentos contra o romancista de A Montanha Mágica. É preciso que se compreenda que a unanimidade nem de longe é uma característica dos gênios. Mann não constituiria uma exceção a essa regra, apesar de não merecer todas as investidas apaixonadas do mestre austríaco. Seja como for, o caso é que Carpeaux via naquele célebre alemão qualquer coisa como uma personalidade pesada, um grande filósofo sem ideias, que possuía o inabalável dom de preencher páginas e mais páginas com uma filosofia de segunda ordem, que não resistiria a um olhar mais atento.

A crítica tem lá certa fundamentação. Como quase todos os autores alemães, Mann de fato possuía uma atração irresistível ao pensamento e à necessidade de filosofar. Desse mesmo mal sofreram Goethe e Hölderlin, e mesmo um romancista aparentemente místico como Herman Hesse não deixa de possuir em seus romances verdadeiros tratados filosóficos, alguns visivelmente morais, como O Lobo da Estepe e O Jogo das Contas de Vidro, obras nas quais, ao lê-las, sente-se um certo sabor de advertência moral, que impõe às conquistas da inteligência ocidental qualquer coisa como uma repreensão.

Mann, portanto, não é um cavaleiro solitário nesse vasto campo de batalha. O século XIX foi mesmo prolífico em autores cujos trabalhos encerram verdadeiras doutrinas. E não é senão como doutrina que podemos ler obras como O Vermelho e o Negro, de Stendhal, Judas, o Obscuro, de Thomas Hardy, Guerra e Paz e Anna Karenina, de Tolstói, Madame Bovary e Bouvard e Pécuchet, de Flaubert e, sobretudo, os verdadeiros sistemas filosóficos de Dostoiévski, cujos personagens, assim como os de Shakespeare, na maioria das vezes funcionam como ilustrações para uma grande ideia, e seus diálogos socráticos, que certamente fariam inveja a Platão, chegam por vezes a verdades tão profundas que serviram de modelo a muitos dos pensadores que a ele se seguiram. Não é senão a uma lamentável representação do famoso sonho de Raskólnikov em Crime e Castigo que se deve aquele desesperado ato de Nietzsche de se jogar em Turim, em 3 de janeiro de 1888, sobre um pobre cavalo que, açoitado, agonizava ante as investidas de seu dono, episódio que, segundo Ricardo Piglia, confirma de uma vez por todas o bovarismo do grande filósofo alemão.

Ao que parece, Mann não inaugura nenhuma escola. É o legítimo herdeiro de uma cultura para a qual as ideias, sobretudo as complexas, são um lugar-comum e uma necessidade. Sua prosa possui aquele mesmo peso que encontramos nos sistemas filosóficos de Kant e Hegel, mas, ao contrário deles, foi capaz de inserir no tom eminentemente professoral de sua tradição certa leveza, mas uma leveza possível a seu tempo. Um leitor desavisado pode facilmente encontrar em seus romances certas dificuldades, mas elas são facilmente superáveis e quase sempre voluntárias.

Leitor de Schopenhauer, Thomas Mann nem de longe pode ser considerado seu fiel continuador. Como quase todo artista alemão, Mann possuía quase uma fascinação doentia pela estética, mas esse seu amor se deve menos à influência de Schopenhauer do que a certa propensão natural alemã à estetização, como vemos nas composições de Wagner, na poesia de Goethe, nos quadros de Albrecht Dürer, no teatro de Bertolt Brecht e na filosofia de Nietzsche. É desse último, inclusive, que Mann descende. Ao contrário do que a princípio se possa imaginar, é sobretudo a Nietzsche que o célebre romancista alemão deve sua filosofia da decadência. E não poderia ser diferente. A presença de Nietzsche significou um verdadeiro divisor de águas na história da cultura ocidental moderna. E igualmente se fez sentir na literatura alemã. Carpeaux chega a apontar, em sua célebre História Concisa da Literatura Alemã, que à Bíblia de Lutero e à tradução de Shakespeare por Christoph Martin Wieland, publicada entre 1762 e 1766, deve-se a renovação da literatura alemã. Não se estaria cometendo nenhum equívoco ao se acrescentar o nome de Nietzsche a essa dupla.

É dele, ao que parece, que Mann herdou seus temas mais caros. Não é em vão que em seu romance mais célebre, A Montanha Mágica, Hans Castorp só consegue encontrar o conhecimento através da enfermidade e da vida nas alturas, dois símbolos eminentemente nietzschianos. Assim como o Zaratustra de Nietzsche, Castorp precisa subir a montanha para encontrar a verdade, como, aliás, fizeram grandes personagens. É no Monte Tabor que Cristo empreende, ante João, Tiago e Pedro, a sua transfiguração. E é igualmente no Gólgota que ele se entrega como o mais santo dos cordeiros. De igual forma, é a enfermidade uma das formas da razão no pensamento nietzschiano, e em mais de uma passagem de sua obra, sobretudo em seu Ecce Homo, ele deixou isso claro. É exatamente a enfermidade que, ao obrigar Hans Castorp a permanecer no sanatório Berghof, em Davos, permite-lhe ver melhor a realidade que o cerca.

É igualmente de Nietzsche que Mann herda essa certa sensualidade estética presente em livros como Morte em Veneza. Tadzio é a própria beleza que se fez carne, a adoração que o personagem Gustav von Aschenbach sente por ele é a mesma adoração que um esteta pode sentir pela arte, tal como Nietzsche via essa mesma imagem da beleza nos romances de Dostoiévski ou na Carmen de Bizet. Mann segue, em grande medida, esses mesmos passos, sem, contudo, aspirar ao estilo aforístico de seu oculto mestre.

Um artista frequentemente disfarça as suas mais caras influências quando possui erudição suficiente para fazê-lo. Ou então elas lhe são de tal modo poderosas e íntimas que chegam a se tornar inconscientes, quase involuntárias. No caso de Thomas Mann, o mais sensato é classificá-lo no segundo caso. Ao se olhar no espelho, não é Schopenhauer quem o mira, mas Nietzsche, ainda que ele possa tentar nos convencer do contrário. Como em um jogo de espelhos no qual o jogador acaba sempre malogrado, Mann foi um continuador silencioso e competente de alguns dos temas mais caros a Nietzsche, ainda que, conscientemente, acreditasse cultivar aquela estética da decadência representada pela filosofia de Schopenhauer. E seus romances mais célebres são quase ilustrações de certas ideias significativas daquele polêmico pensador de Röcken, e foi com elas que ele traçou algumas das imagens mais poderosas do século XX, o qual, assim como Hans Castorp e Nietzsche, sofria de uma grande enfermidade.

Carpeaux talvez achasse extravagante tudo isso. Mas mesmo um grande crítico pode falhar. Sua virulenta e impiedosa crítica a Thomas Mann constitui uma prova disso. E, até que se prove o contrário, livros como Morte em Veneza, A Montanha Mágica e Doutor Fausto seguirão sendo lidos continuamente, pois esta é exatamente uma das funções da grande arte: atravessar incólume a escuridão dos séculos.



Adonay Ramos Moreira

Escritor e advogado    

sábado, 2 de agosto de 2025

AOS 90 ANOS DO POETA NAURO MACHADO

 Poeta Nauro Machado 

Por Rogério Rocha 

 

Nascido em São Luís, Maranhão, no dia 2 de agosto de 1935, Nauro Diniz Machado construiu uma carreira literária admirável, não só pelos mais de 40 livros publicados, incluindo os póstumos, mas, sobretudo, por neles aliar qualidade estética, regularidade em relação ao espaço de tempo em que os produziu, densidade na exposição temática, domínio técnico da poética e profundidade expressiva.

Não bastassem tais predicados, que se constituíram num grande diferencial, o poeta e ensaísta dedicou-se integralmente ao seu ofício. Vivia, pensava, sonhava e respirava poesia.

Dotado de uma capacidade mnemônica fora do comum, trazia seus poemas guardados na cabeça. Enquanto muitos de nós sequer lembram o que disseram há pouco, o poeta era capaz de escrevê-los e gravá-los na memória, para, então, acessá-los quando bem necessitasse.

É tanto que, certa vez, como conta o também poeta José Maria Nascimento, Nauro perdeu os manuscritos de um livro que acabara de escrever e, depois muito procurá-lo, sem obter êxito, sentou-se à máquina de datilografar e o reescreveu integralmente. Verso por verso, rima por rima.

Também possuía o hábito de fazer poemas enquanto caminhava, declamando-os em voz alta, como que num estado alterado de consciência, em meio a um arrebatamento similar ao êxtase místico vivenciado por alguns religiosos e filósofos ao longo da história. Momentos em que exigia silêncio, isolava-se e pedia que ninguém o interrompesse.

Centrado nessa experiência de ordem transcendente, creio que o autor se conectava ao mundo que criou para si. Lá onde a existência encontrava as tonalidades de luz e sombra necessárias à manifestação de sua criatividade, solo de onde nasceram centenas de versos e sonetos exemplares, dentre tantos poemas, alguns traduzidos para o francês e o alemão.

Nauro Machado era dono de um conhecimento bastante variado, com um vivo interesse por filosofia, artes plásticas e cinema. Poeta visceral, urbano e metafísico, foi leitor de Nietzsche, Sartre e Heidegger, pensadores de cujas obras extraiu concepções que o ajudaram a revelar as belezas e cruezas da existência.

Um dos grandes nomes da poesia pós-moderna brasileira, foi chamado de “o poeta da angústia”. De minha parte, penso que foi também o poeta do ser. Aquele que, sem descuidar do elemento divino, falou sobre tudo que há de humano na banalidade do mundo e tudo que há de profano na alma humana.

Neste dia, celebro sua obra como um legado permanente da nossa literatura. Algo de que devemos nos orgulhar e que, espero, sirva de fonte de estudo, análise e referência para novos poetas, leitores e pesquisadores.

Que agosto nos devolva o sopro da sua presença, como corrente de ar, lufada de vento ou tormenta. Que nos remexa, que nos estremeça e acorde, para que a ele retornemos, a fim de reencontrarmos suas verdades sempre incômodas, porém necessárias.

Que sua poesia, enfim, continue a ecoar nas gerações futuras como um grito de lucidez em meio à letargia das massas idiotizadas.

Nauro Machado existiu para escrever e escreveu para que não esquecêssemos que a experiência da vida é, ao mesmo tempo, trágica e bela.

 

 

 

 

 

segunda-feira, 14 de julho de 2025

O equilíbrio da razão contra o ópio do intelecto


Por Rogério Rocha


Lançado em 1955, “O ópio dos intelectuais”, de autoria do filósofo e sociólogo Raymond Aron, elabora uma crítica consistente ao apego emocional dos intelectuais da França ao marxismo e aos regimes comunistas do século XX. 

De forma corajosa, o sociólogo da liberdade, contesta a romantização criada em torno do que representava a então União Soviética, o sentimento antiamericanista e a percepção equivocada que transformou o socialismo e suas promessas numa espécie de credo secular.

Por meio de argumentos estruturados numa sólida erudição, Aron desenvolve a tese de que o marxismo se transformou numa religião substituta às positivas, que fornecia, em seus pressupostos, tanto uma visão finalística da história quanto um dogma inquestionável. 

Outro aspecto criticado diz respeito ao abandono da postura crítica dos pensadores, substituída por motivações de cunho exclusivamente político. 

Também nessa obra, o escritor expõe o nítido descompasso entre a retórica presente nos discursos desses intelectuais e a realidade dos regimes totalitários. 

Ele chega à constatação de que havia uma grande distância entre a realidade socialmente observada e a teoria defendida pelos pensadores. Ou seja, de que teoria e prática viviam em mundos bem diferentes. 

Aron acusa os intelectuais de então de aderirem ao marxismo como a uma “fé” que desse sentido à realidade social, quase à maneira de uma “salvação histórica”. 

Tal disposição de natureza utópica fazia, segundo ele, com que fechassem os olhos aos excessos autoritários cometidos em prol da revolução. Nesse sentido, defende que, se para Marx a religião era o “ópio do povo”, o socialismo, assim endeusado, era o “ópio dos intelectuais”.

Em oposição a muitos de seus contemporâneos, Raymond Aron sustenta que o modelo democrático-liberal é preferível a regimes baseados em partido único, defendendo o pluralismo, a liberdade crítica, o Estado de Direito e suas instituições.

O livro, como já afirmamos, traz  um texto analítico dotado de erudição, mas que em nada compromete sua clareza. 

O olhar de Raymond possui forte carga moral e o apresenta como um pensador de centro que adota o equilíbrio argumentativo e a racionalidade como móveis de sua atuação.

Escrito no contexto da Guerra Fria, “O ópio dos intelectuais” é um livro que, pela qualidade de suas ideias, ainda merece nossa atenção, permanecendo relevante na década de 20 deste século XXI. 

Sobretudo porque, em vista de uma nova era do medo, de conflitos bélicos nacionalistas, do reordenamento do cenário geopolítico mundial e da permanência da polarização, Aron soa como um alerta: os perigos da cegueira ideológica e o entrelaçamento dos interesses políticos com as doutrinas religiosas continuam a nos rondar. 

“O ópio dos intelectuais”, além de uma obra seminal, tornou-se um clássico da crítica à ideologização do pensamento. Nela, Aron reafirma o papel do intelectual como aquele que pensa com autonomia, recusando-se a erguer altares aos dogmatismos.


Referência:

ARON, Raymond. O ópio dos Intelectuais. Tradução de Vilma Ferreira Gomes. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

quarta-feira, 18 de junho de 2025

A LIÇÃO DO MESTRE

Machado de Assis e Rogério Rocha [imagem gerada por IA]

  


Por Rogério Rocha

 

Não tenho certeza de que os fatos que vou narrar são produto da imaginação, de um surto, um sonho ou mesmo se aconteceram do modo aqui descrito. O fato é que uma febre chatinha me atacou recentemente, afetando-me a saúde. Com ela também vieram umas vertigens que, além do mal-estar repentino, costumavam turvar a minha visão durante alguns minutos. Mas juro pela alma de Allan Kardec que nada do que lerão vai passar, no máximo, de um breve delírio.

Era um fim de tarde calorento em São Luís. Eu vagava pelo centro histórico, nas férias, sem nada para fazer. Foi quando parei diante de uma portinha ladeada por colunas de madeira envelhecida. Na fachada pude ler: “Livraria O Alienista”. Morrendo de curiosidade, entrei.

Lá dentro havia um gato angorá preguiçoso, deitado sobre uma pilha de livros, coçando os bigodes e com os olhos semicerrados. As estantes abrigavam nomes imortais que moravam ali: Sousândrade, Cecília Meireles, Susan Sontag, Josué Montello, Ferreira Gullar, Goethe, Schiller e vários filósofos, daqueles que ninguém lê, mas que adoram repousar sobre as prateleiras empoeiradas.

Foi então que o vi.

Estava sentado lá ao fundo, no cantinho da sessão onde ficavam as últimas estantes. Ao me aproximar, percebi que tinha nas mãos uma edição rara de “O elogio da loucura”.

Em princípio, não acreditei! Repentinamente, veio-me outra vez a tal vertigem. Uma tontura enjoativa e os olhos turvos do qual falei. Após alguns segundos, com a visão recuperada, pude notar a figura do homem de pele escura, barba imponente, olhos expressivos e uma bengala escorada na cadeira ao lado, como se fosse o cetro de um monarca.

— Com licença, meu senhor. — murmurei timidamente.

Ele ergueu os olhos como se já aguardasse minha presença.

  Sente-se, meu amigo. Vamos conversar um pouco?

  Sim, senhor! Quem sabe possamos falar sobre os livros que temos aqui.

O velho sorriu, balançando a cabeça em sinal positivo.

— Percebo que você gosta de raridades. Que prefere os mapas aos GPS’s, estou certo?

— Como soube? Sim. Mas também gosto de descobrir novos caminhos!

O velho tamborilou os dedos sobre a capa do livro.

— Pois bem, esta livraria é um mundo para mim. Dentro dela há passagens secretas, janelas misteriosas, vozes guardadas pelo tempo. E o tempo, aqui, transcorre de um modo diferente. Olhe ao seu redor.

Voltei os olhos para os cantos da livraria. Ali estavam, em estantes próximas, Borges, Vinícius, Raquel de Queirós, Cervantes, Aluísio Azevedo; lá no fundo, enciclopédias, fileiras de coleções contendo obras clássicas, versões encadernadas, de capas duras, traduções em outros idiomas.

— Rogério, diga-me uma coisa, falou o mestre, cruzando as mãos sobre a mesa. Por que as pessoas perderam o interesse pela leitura? Por que ninguém tem paciência para entender a importância desse hábito?

— Talvez porque não tenham tempo. Ou porque não aprenderam a ler. E, no fundo, quem não tem tempo nem paciência não aprende a ler.

— É um bom argumento para tentar compreender uma arte quase esquecida.

— A da leitura, não é mesmo?

— A da paciência. A velha e boa arte da paciência. — disse, esboçando um leve sorriso.

— Gostei de conversar com você, mas já é hora de voltar para a minha prateleira.

— Prateleira! Como assim?

Ele apontou para o alto da estante. Lá havia um livro antigo com seu nome na lombada. Enquanto eu olhava para cima, a imagem daquele homem enigmático começou a se dissipar.

Num piscar de olhos, eu estava sozinho na livraria.

Sobre a mesa, pude notar a edição da obra que o velho folheava e um bilhete onde dizia: "Escreva como quem duvida. Publique como quem confessa. Leia como quem suspeita.” Assinado: Machado de Assis.

Levantei-me sem acreditar e, ainda um tanto confuso, dei uma última olhada ao redor. Por fim, saí da livraria como se houvesse acordado de um estado de coma.

Desde então, confesso: toda vez que escrevo um novo texto, escuto uma voz suave, como um sussurro que viesse da minha estante. É quando, por precaução, relembrando os conselhos do mestre, o reescrevo, pacientemente.

 

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