domingo, 16 de dezembro de 2018

PADRE ANTÔNIO VIEIRA E SEUS SERMÕES

Resumo e Análise dos Sermões de Padre Antônio Vieira
Em 2016, UFRGS e UFBA são duas das universidades federais que incluirão o maior representante do conceptismo em suas provas de Literatura.
Para aumentar suas chances de aprovação, a melhor estratégia é ler bons resumos (como os presentes aqui neste artigo) ou a obra completa e, depois, testar seus conhecimentos através de questões de vestibular sobre os Sermões.
O padre Antônio Vieira (em Portugal é António Vieira) é uma das figuras mais importantes de nossa história. Primeiramente, pelo seu domínio da língua portuguesa, que fez com que Fernando Pessoa lhe dedicasse um poema em seu único livro publicado em vida, Mensagem, na parte dos poetas que anunciam o futuro.
Imperador da língua portuguesa,
Foi-nos um céu também.
Uma vez que a língua é uma parte muito importante na constituição de uma nação, Vieira é quem, pela primeira vez, encontra uma expressão apropriada para essa manifestação inicial da nacionalidade. Seu estilo é limpo, claro, conciso, e suas sentenças, semelhantes aos aforismos, são cheias de energia.
Padre Antônio Vieira
Ele também é importante pois participou da maioria das questões relevantes da história portuguesa no século XVII:
  • a questão dos índios
  • da luta dos bandeirantes paulistas contra a Companhia de Jesus
  • dos governantes contra as missões
  • da retomada da independência de Portugal
Além disso, foi embargador extraordinário nas principais cortes da Europa, participando dos debates em torno do barroco romano. Vieira também foi perseguido pela Inquisição, principalmente devido a sua defesa dos judeus, que julgava muito importantes para a restauração portuguesa.

A EDUCAÇÃO JESUÍTICA

Antônio Vieira veio ao Brasil em 1614, aos seis anos. Sua família era humilde, com provável descendência índia ou negra. Seu pai só viera trabalhar nos Tribunais de Justiça graças ao casamento, já que o cargo fora lhe oferecido como dote.
Naquela época o Brasil era dividido em dois estados, o Estado do Brasil, cuja sede estava na Bahia, e o Estado do Grão-Pará e Maranhão. Os Portugueses com algum destaque mandavam seus filhos para serem educados no Colégio da Bahia e assim também se deu com Vieira.
O Colégio da Bahia (Collegio do Salvador da Bahia), fundado em 1553 pelo padre Manuel da Nóbrega, foi a primeira instituição de Ensino Superior do Brasil. Este colégio jesuíta teve êxito graças à qualidade da educação, baseada em um modelo internacional humanista que privilegiava a educação clássica (leitura de gregos e romanos, utilização da retórica, estímulo da competição intelectual).
Collegio Salvador da Bahia - 1553
Porém, seu sucesso se deu, especialmente, pela capacidade de adaptação do ensino às culturas em que se inseriam.
No caso do Brasil, os jesuítas precisavam ir contra uma série de preceitos católicos, a fim de levar a cabo a incorporação dos índios, como assistir missas nus ou se confessar através de intérpretes. A doutrina, assim, depende da situação, não está acabada.
É importante destacar que isso não significa que os jesuítas agiam desta maneira porque respeitavam a cultura indígena. Sua ação era baseada na convicção de que revelariam a verdadeira natureza do índio até então deformado pelos costumes viciosos acumulados pelo tempo.
Os indígenas não eram cristãos, mas tinham naturezas boas em costumes equivocados e, por esta, razão, os jesuítas recuperariam sua natureza via conversão. Por isso, Vieira achava que os jesuítas deveriam ter o monopólio dos negócios indígenas, sem a interferência dos moradores ou do Estado.

A POLÍTICA DA COMPANHIA DE JESUS

Os jesuítas compreendiam a teologia ao lado da prática, ou seja, era preciso agir no mundo, através da conversão dos indivíduos e na correção das políticas do Estado. Esse grupo sempre esteve próximo das elites, participando ativamente das políticas católicas.
A política indianista dos jesuítas, desde Nóbrega, procurava separar os índios dos seus costumes:
  • As crianças eram separadas dos pais e havia um lugar em que os índios eram fixados.
  • Era importante separar os índios os brancos.
  • Os capitães de mato buscavam escravizá-los e distribuí-los para as famílias que os fariam trabalhar exaustivamente sem educação religiosa alguma.
Ou seja, pensava-se nos índios como uma “nova cristandade” e, enquanto guerreiros, capazes de formarem um exército para a Igreja. Posteriormente, com o fortalecimento dos paulistas bandeirantes, Vieira tentou negociar o trabalho indígena em determinadas partes do ano e com pagamentos, mas foi expulso do Maranhão. Os colonos argumentavam que não podiam sobreviver sem a mão de obra escrava.
Em 1661, Vieira é preso, colocado numa galé junto com seus companheiros e enviado para Portugal.
O autor dos famosos sermões voltou para Portugal pela primeira vez em 1641, depois da Restauração, aos 33 anos. Quando Dom João IV assume o poder, ele acompanha o filho do vice-rei e é logo aceito no Paço devido a sua oratória sedutora e às suas opiniões sobre diversos assuntos.
Ele hostilizou a Inquisição, por exemplo, por causa dos judeus. Achava que a saída deles do reino era um desastre anunciado. Além disso, queria suspender os confiscos.
Como diplomata, acabou, de certa forma, fracassando. As embaixadas o desgastaram e decidiu, então, voltar para o Brasil.

OS SERMÕES DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA

Uma vez que Antônio Vieira alternou sua vida entre o Portugal e Brasil, sua obra é considerada tanto literatura portuguesa quanto literatura brasileira. Sua produção literária é composta, em sua grande maioria, por sermões, os quais pregava aos índios e aos moradores da época.
Somente os sermões editados por Vieira totalizam mais de 200.
O sermão era considerado um gênero literário superior, resultado de um enorme esforço intelectual. Os jesuítas os criavam com base em estudos de retórica:
Para a sua preparação, os padres estudavam a forma de exposição, a ordem dos argumentos.
Para a elocução, atentavam para a função dos efeitos que o sermão deveria obter.
Para a execução, memorizavam, praticando impostação da voz, gestualidade e posição do corpo.
Tudo era objeto de estudos sistemáticos desde que entravam no noviciado. Nenhum padre saía dos estudos antes dos 34 anos, tendo treinamentos diários. Assim, os sermões eram pregados normalmente nas igrejas e eram muito concorridos. O anúncio de um grande orador na missa do dia, por exemplo, criava grandes expectativas na comunidade.
O sermão acontecia após a leitura do Evangelho do dia (definido canonicamente) e antes da comunhão. O padre interpretava a passagem bíblica lida anteriormente de modo a renová-la, encaixando a História com a vida. Além de seus sermões, Vieira também escreveu poesias, livros poéticos e centenas de cartas. Muito desse material ainda é inédito.

RESUMO DO SERMÃO PELO BOM SUCESSO DAS ARMAS DE PORTUGAL CONTRA AS DE HOLANDA

Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda
Este sermão foi pregado em 1640, na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, Bahia. Neste ano, a Bahia lutava contra o domínio holandês. Com o monopólio ibérico do comércio açucareiro, outros países europeus, como os holandeses, buscavam a sua fatia do mercado.
Para este fim, a Holanda instituiu a Companhia das Índias Orientais. A primeira tentativa de invasão holandesa fracassou, em 1624. Seis anos depois, porém, a nova investida terminou com a conquista de Pernambuco. Em 1640, os holandeses tentam novamente conquistar a Bahia.
Em meio à ameaça de invasão, o Padre Antônio Vieira prega, na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, um sermão que busca fortificar os ânimos da população para lutar contra os hereges holandeses. Como se em um palco, Vieira dirige-se indiretamente ao público enquanto conversa com Deus.
Vieira inicia com o Salmo bíblico 43, comentando-o.
Com tanta propriedade como isto descreve David neste Salmo nossas desgraças, contrapondo o que somos hoje ao que fomos enquanto Deus queria, para que na experiência presente cresça a dor por oposição com a memória do passado.
Para Vieira, a situação do Salmo é semelhante à situação da Bahia.
Esta é, Todo-Poderoso e Todo-Misericordioso Deus, esta é a traça de que usou para render vossa piedade, quem tanto se conformava com vosso coração. E desta usarei eu também hoje, pois o estado em que nos vemos, mais é o mesmo que semelhante. (…) O que venho a pedir ou protestar, Senhor, é que nos ajudeis e nos liberteis: Adjuva nos, et redime nos. Mui conformes são estas petições ambas ao lugar e ao tempo. Em tempo que tão oprimidos e tão cativos estamos, que devemos pedir com maior necessidade, senão que nos liberteis: Redime nos?
Viera passa a exigir de Deus uma solução. Em seguida cita as passagens bíblicas em que os hebreus conquistam Canaã e libertam-se da escravidão egípcia.
O recurso utilizado aqui é o mesmo da maioria dos sermões de Vieira: utiliza as passagens da Bíblia para solucionar problemas do presente.
Assim como os hebreus conquistaram sua terra prometida, os portugueses encontraram a sua. Ou seja, justifica a colonização. Com a iminência da invasão holandesa, Vieira cobra de Deus que expulse de Sua terra os hereges. Em um dos momentos de maior, talvez, atrevimento do sermão, Vieira diz:
Se acaso for assim (o que vós não permitais), e está determinado em vosso secreto juízo que entrem os hereges na Bahia, o que só vos represento humildemente e muito deveras, é que antes da execução da sentença repareis bem, Senhor, no que vos pode suceder depois, e que o consulteis com vosso coração enquanto é tempo; porque melhor será arrepender agora, que quando o mal passado não tenha remédio.
É uma queixa indignada, que em momentos torna-se ironia. Vieira utiliza inúmeros recursos para demonstrar que se sente desamparado, cobrando uma ação divina imediata. Como argumento, defende a superioridade da Igreja católica, especialmente em relação aos protestantes holandeses. O sermão se encerra com pedidos de perdão.

RESUMO DO SERMÃO DE SANTO ANTÔNIO AOS PEIXES

Sermão de Santo Antônio aos Peixes
Este sermão foi pregado em São Luís, Maranhão, em 13 de junho de 1654, no âmbito das lutas que dividiam os jesuítas e os colonos em razão dos índios. Três dias depois, Vieira viajaria sigilosamente para Portugal, buscando negociar com a Coroa uma lei que regulamentasse a liberdade do indígena na colônia.
O sermão parte de um conceito presente na Bíblia (em Mateus, 5:13): “Vós sois o sal da terra”. Assim Vieira interpreta a sentença:
  • “Vós” – os pregadores jesuítas;
  • “Sal” – a mensagem cristã;
  • “Terra” – o lugar e os moradores, no caso, a colônia.
Dessa forma, o sal da terra seriam os pregadores, que deveriam conservar a nova terra portuguesa com a fé cristã. Em seguida, Vieira procura os germes da corrupção do mundo. Encontra-os nos próprios pregadores, que fracassam ao pregar a doutrina errada e agindo de acordo com interesses particulares, e também nos ouvintes, que não agiriam conforme a doutrina.
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que êles fazem, que fazer o que dizem; ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si, e não a Cristo, ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade?
Uma vez que Santo Antônio, não encontrando quem ouvisse suas palavras, pregou aos peixes, Vieira imita-o e prega da mesma forma.
Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo Antônio, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles.
Primeiro, Vieira coloca os peixes acima dos seres humanos e depois trata de seus defeitos.
As virtudes são referentes aos peixes de Tobias, Rémora, Torpedo e Quatro-Olhos e os defeitos vão para os Roncadores, Pegadores, Voadores e para o Polvo. Vê-se, assim, que o recurso utilizado é o da alegoria. Ele se dirige aos peixes visando dirigir-se aos homens. As virtudes dos peixes, por exemplo, são os defeitos dos humanos. O principal defeito apontado é a voracidade, já que os peixes devoram uns aos outros, e, pior ainda, os maiores devoram os menores.
Vede, peixes, e não vos venha vanglória, quanto melhores sois que os homens. Os homens tiveram entranhas para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar vivo à terra.
Por trás dessa alegoria está a crítica ao comportamento dos colonos maranhenses em relação aos índios. Para torná-la evidente, Vieira passa várias vezes do plano alegórico para o plano concreto.
Ele termina o sermão, que é dividido em seis partes, exaltando a natureza dos peixes: não podendo ser sacrificados, sacrificam-se em respeito a Deus. E coloca-se, enquanto homem, abaixo dos peixes:
Em tudo o que vos excedo, peixes, vos reconheço muitas vantagens. A vossa bruteza é melhor que a minha razão e o vosso instinto melhor que o meu alvedrio. Eu falo, mas vós não ofendeis a Deus com as palavras; eu lembro-me, mas vós não ofendeis a Deus com a memória; eu discorro, mas vós não ofendeis a Deus com o entendimento; eu quero, mas vós não ofendeis a Deus com a vontade.
O sermão termina com uma oração de louvação a Deus.

RESUMO DO SERMÃO DA SEXAGÉSIMA

Sermão da Sexagésima
Pregado na Capela real de Lisboa, em janeiro 1655, provavelmente, para a nobreza católica de Portugal.
A palavra “sexagésima”, do título, refere-se à data em que o sermão foi exposto: segundo o calendário litúrgico católico da época, tratava-se do penúltimo domingo antes da Quaresma (ou o sexagésimo dia antes da Páscoa).
O sermão possui dez partes e trata da arte de pregar, uma espécie de poética da oratória. Inicia-se assim:
E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso auditório saísse hoje tão desenganado da pregação, como vem enganado com o pregador! Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que todo é do caso que me levou e trouxe de tão longe.
Primeiramente, Vieira afirma que seu público está enganado sobre a sua prática. Como eram conhecidas as suas posições acerca dos índios, escravos e cristãos novos, ele busca inverter essa desconfiança. Assim, ele elogia seu público, ressalta a importância do tema e relembra que viera de muito longe para pregar-lhes.
Nesse sermão, o padre mantém uma das características dos seus sermões: a elaboração de uma imagem sobre a qual o texto se apoiará e revolverá. No caso, trata-se de Lucas, 8: 11:
Ecce exiit qui seminat, seminare. Diz Cristo que «saiu o pregador evangélico a semear» a palavra divina.
Sendo ele um semeador, passa a falar dos pregadores que atuavam em sua pátria e ao seu trabalho no Maranhão. Cada pregador possui suas dificuldades e, para argumentar, Vieira utiliza a citação de passagens bíblicas e a sua experiência com os missionários no Maranhão. Na segunda parte, também explica o significado da parábola do semeador.
O trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo que é a palavra de Deus. Os espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa em que o trigo caiu, são os diversos corações dos homens. Os espinhos são os corações embaraçados com cuidados, com riquezas, com delícias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras são os corações duros e obstinados; e nestes seca-se a palavra de Deus, e se nasce, não cria raízes. Os caminhos são os corações inquietos e perturbados com a passagem e tropel das coisas do Mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque a desatendem ou a desprezam. Finalmente, a terra boa são os corações bons ou os homens de bom coração; e nestes prende e frutifica a palavra divina, com tanta fecundidade e abundância, que se colhe cento por um: Et fructum fecit centuplum.
E encerra com uma pergunta:
Pois se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, porque não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus?
Vieira seguirá o sermão respondendo a essa interrogação. Apontará as três figuras atuantes em uma pregação:
  1. Deus
  2. o ouvinte
  3. o pregador
sendo o último o responsável pelo sucesso da mensagem. Listará cinco qualidades para o pregador:
No pregador podem-se considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz. A pessoa que é, e ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue, a voz com que fala. Todas estas circunstâncias temos no Evangelho.
E em seguida, examinará cada uma dessas circunstâncias. Sobre o estilo, defenderá um estilo simples e natural, como o céu. Assim, o estilo pode ser claro e alto para agradar os que sabem e os que não sabem. Sobre a matéria do sermão, Vieira sugere o foco em um único tema, a fim de não confundir os ouvintes.
Uma árvore tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há-de ser o sermão: há-de ter raízes fortes e sólidas, porque há-de ser fundado no Evangelho; há-de ter um tronco, porque há-de ter um só assunto e tratar uma só matéria; deste tronco hão-de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria e continuados nela; estes ramos hão-de ser secos, senão cobertos de folhas, porque os discursos hão-de ser vestidos e ornados de palavras.
Vieira também defende que o pregador deve buscar a ciência e ser original, sem precisar copiar outros pregadores.
O pregador há-de pregar o seu, e não o alheio.
A voz do pregador não seria tão importante, pois Jesus pregara sem gritar, e questiona:
Em conclusão que a causa de não fazerem hoje fruto os pregadores com a palavra de Deus, nem é a circunstância da pessoa: Qui seminat: nem a do estilo: Seminare; nem a da matéria: Semen; nem a da ciência: Suum; nem a da voz: Clamabat. (…) Pois se nenhuma destas razões que discorremos, nem todas elas juntas são a causa principal nem bastante do pouco fruto que hoje faz a palavra de Deus, qual diremos finalmente que é a verdadeira causa?
Ele então responde que os pregadores mudam o sentido da palavra de Deus, impondo significados, usando a Bíblia para justificar ideias próprias.
O sermão é concluído com uma crítica: os pregadores lisonjeiam o povo por medo de perderem a reverência. Propõe que o sermão deve fazer os ouvintes refletirem sobre suas ações e a buscarem o perdão. Exemplifica com a atividade do médico, que se preocupa com a recuperação do paciente e não com a dor. O sermão termina com Vieira chamando a atenção para sua profissão:
Que conta há-de dar a Deus um pregador no Dia do Juízo? O ouvinte dirá: Não mo disseram. Mas o pregador? Vae mihi, quia tacui: Ai de mim, que não disse o que convinha! Não seja mais assim, por amor de Deus e de nós.

Concluindo

Muito se estuda sobre as características e o contexto histórico do período Barroco na escola, mas pouco foco tem sido dado ao texto literário que de fato constitui esse momento da literatura.
Padre Antônio Vieira, sem dúvida, escreveu textos em forma de sermões que ultrapassam o mero propósito religioso, chegando a um patamar artístico. Opõe-se ao grande poeta Gregório de Matos no estilo, porém o complementa através de sua prosa concisa, exata.
Como leitura obrigatória de vestibular, não é dos autores mais fáceis, o que faz com que o candidato bem preparado possa destacar-se ao possuir o conhecimento necessário sobre os sermões listados no site da UFRGS, por exemplo.
Ler o Sermão da Sexagésima, o Sermão de Santo Antônio aos Peixes e o Sermão do Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda pode não ser a tarefa mais agradável, mas certamente dará seus frutos quando sua nota em Literatura ajudar a conquistar sua vaga na universidade pública.

Referências

Entrevistas de Antônio Alcir Pécora.
PÉCORA, A. “Para ler Vieira: as 3 pontas das analogias nos sermões”, in: Floema: Caderno de Teoria e História Literária. Vitória da Conquista, nº 1, p. 29-36, 2005.
PÉCORA, A. “Vieira, a inquisição e o capital”, in: Topoi. Rio de Janeiro, nº 1, p. 178-196.
VIEIRA, A. Sermões do Padre Antônio Vieira. Porto Alegre: L&PM, 2010.

Sermão de Santo António aos Peixes

sábado, 15 de dezembro de 2018

O COLOCADOR DE PRONOMES (CONTO DE MONTEIRO LOBATO)

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Monteiro Lobato (escritor)
Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática.
Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática.
E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática.
Martir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização,
Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense” , com bastante sucesso.
Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.
Triburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara e desd’aí se transformou no tutú da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.
Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostorura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores – o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dia de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o
Acorda, donzela…
Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.
Aqui se estrepou…
Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:
Anjo adorado!
Amo-lhe!
Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto – para umas certidõesinhas, explicou.
Apesar disso o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha.
Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:
– A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca – nunca, ouviu? – que contra ela se cometa o menor deslize.
Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor de rosa, desdobrou-o
– É sua esta peça de flagrante delito?
O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.
– Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar… Pois agora…
O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.
– … é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.
O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:
– Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!…
Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.
– Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!
E voltando-se para dentro, gritou:
– Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!
O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.
– Laurinha, quer o coronel dizer…
O velho fechou de novo a carranca.
– Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama-”lhe”. Se amasse a ela deveria dezer amo-”te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher…
– Oh, coronel…
– … ou a preta Luzia, cozinheira. Escolha!
O escrevente, vencido, derrubou a cabeça com uma lágrima a escorrer rumo à asa do nariz. Silenciaram ambos, em pausa de tragédia. Por fim o coronel, batendo-lhe no ombro paternalmente, repetiu a boa lição da gramática matrimonial.
– Os pronomes, como sabe, são três: da primeira pessoa – quem fala, e neste caso vassuncê; da Segunda pessoa – a quem fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa – de quem se fala, e neste caso do Carmo, minha mulher ou a preta. Escolha!
Não havia fuga possível.
O escrevente ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira da vida, torcendo acanhada a ponta do avental. Viu também sobre a secretária uma garrucha com espoleta nova ao alcance do maquiavélico pai, submeteu-se e abraçou a urucaca, enquanto o velho, estendendo as mãos, dizia teatralmente:
– Deus vos abençoe, meus filhos!
No mês seguinte, e onze meses depois vagia nas mãos da parteira o futuro professor Aldrovando, o conspícuo sabedor de língua que durante cinqüenta anos a fio coçaria na gramática a sua incurável sarna filológica.
Até aos dez anos não revelou Aldrovando pinta nenhuma. Menino vulgar, tossiu a coqueluche em tempo próprio, teve o sarampo da praxe, mas a cachumba e a catapora. Mais tarde, no colégio, enquanto os outros enchiam as horas de estudo com invenções de matar o tempo – empalamento de moscas e moidelas das respectivas cabecinhas entre duas folhas de papel, coisa de ver o desenho que saía – Aldrovando apalpava com erótica emoção a gramática de Augusto Freire da Silva. Era o latejar do furúnculo filológico que o determinaria na vida, para matá-lo, afinal…
Deixêmo-lo, porém, evoluir e tomêmo-lo quando nos serve, aos 40 anos, já a descer o morro, arcado ao peso da ciência e combalido de rins. Lá está ele em seu gabinete de trabalho, fossando à luza dum lampião os pronomes de Filinto Elísio. Corcovado, magro, seco, óculos de latão no nariz, careca, celibatário impenitente, dez horas de aulas por dia, duzentos mil réis por mês e o rim volta e meia a fazer-se lembrado.
Já leu tudo. Sua vida foi sempre o mesmo poento idílio com as veneráveis costaneiras onde cabeceiam os clássicos lusitanos. Versou-os um por um com mão diurna e noturna. Sabe-os de cór, conhece-os pela morrinha, distingue pelo faro uma séca de Lucena duma esfalfa de Rodrigues Lobo. Digeriu todas as patranhas de Fernão Mendes Pinto. Obstruiu-se da broa encruada de Fr. Pantaleão do Aveiro. Na idade em que os rapazes correm atrás das raparigas, Aldrovando escabichava belchiores na pista dos mais esquecidos mestres da boa arte de maçar. Nunca dormiu entre braços de mulher. A mulher e o amor – mundo, diabo e carne eram para ele os alfarrábios freiráticos do quinhentismo, em cuja soporosa verborréia espapaçava os instintos lerdos, como porco em lameiro.
Em certa época viveu três anos acampado em Vieria. Depois vagabundeou, como um Robinson, pelas florestas de Bernardes.
Aldrovando nada sabia do mundo atual. Desprezava a natureza, negava o presente. Passarinho conhecia um só: o rouxinol de Bernadim Ribeiro. E se acaso o sabiá de Gonçalves Dias vinha citar “pomos de Hesperides” na laranjeira do seu quintal, Aldrovando esfogueteava-o com apostrofes:
– Salta fora, regionalismo de má sonância!
A língua lusa era-lhe um tabu sagrado que atingira a perfeição com Fr. Luiz de Sousa, e daí para cá, salvo lucilações esporádicas, vinha chafurdando no ingranzéu barbaresco.
– A ingresia d’hoje, declamava ele, está para a Língua, como o cadáver em putrefação está para o corpo vivo.
E suspirava, condoído dos nossos destinos:
– Povo sem língua!… Não me sorri o futuro de Vera-Cruz…
E não lhe objetassem que a língua é organismo vivo e que a temos a evoluir na boca do povo.
– Língua? Chama você língua à garabulha bordalenga que estampam periódicos? Cá está um desses galicígrafos. Deletreemo-lo ao acaso.
E, baixando as cangalhas, lia:
– Teve lugar ontem… É língua esta espurcícia negral? Ó meu seráfico Frei Luiz, como te conspurcam o divino idioma estes sarrafaçais da moxinifada!
– … no Trianon… Por que, Trianon? Por que este perene barbarizar com alienígenos arrevesos? Tão bem ficava – a Benfica, ou, se querem neologismo de bom cunho o Logratório…Tarelos é que são, tarelos!
E suspirava deveras compungido.
– Inútil prosseguir. A folha inteira cacografa-se por este teor. Aí! Onde param os boas letras d’antanho? Fez-se peru o níveo cisne. Ninguém atende à lei suma – Horácio! Impera o desprimor, e o mau gosto vige como suprema regra. A gálica intrujice é maré sem vazante. Quando penetro num livreiro o coração se me confrange ante o pélago de óperas barbarescas que nos vertem cá mercadores de má morte. E é de notar, outrossim, que a elas se vão as preferências do vulgacho. Muito não faz que vi com estes olhos um gentil mancebo preferir uma sordície de Oitavo Mirbelo, Canhenho duma dama de servir, (1) creio, à… advinhe ao que, amigo? A Carta de Guia do meu divino Francisco Manoel!…
– Mas a evolução…
– Basta. Conheço às sobejas a escolástica da época, a “evolução” darwinica, os vocábulos macacos – pitecofonemas que “evolveram”, perderam o pelo e se vestem hoje à moda de França, com vidro no olho. Por amor a Frei Luiz, que ali daquela costaneira escandalizado nos ouve, não remanche o amigo na esquipática sesquipedalice.
Um biógrafo ao molde clássico separaria a vida de Aldrovando em duas fases distingas: a estática, em que apenas acumulou ciência, e a dinâmica, em que, transfeito em apóstolo, veio a campo com todas as armas para contrabater o monstro da corrupção.
Abriu campanha com memorável ofício ao congresso, pedindo leis repressivas contra os ácaros do idioma.
– “Leis, senhores, leis de Dracão, que diques sejam, e fossados, e alcaçares de granito prepostos à defensão do idioma. Mister sendo, a forca se restaure, que mais o baraço merece quem conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade, que quem ao semelhante a vida tira. Vêde, senhores, os pronomes, em que lazeira jazem…
Os pronomes, aí! Eram a tortura permanente do professor Aldrovando. Doía-lhe como punhalada vê-los por aí pré ou pospostos contra-regras elementares do dizer castiço. E sua representação alargou-se nesse pormenor, flagelante, concitando os pais da pátria à criação dum Santo Ofício gramatical.
Os ignaros congressistas, porém, riram-se da memória, e grandemente piaram sobre Aldrovando as mais cruéis chalaças.
– Quer que instituamos patíbulo para os maus colocadores de pronomes! Isto seria auto-condenar-nos à morte! Tinha graça!
Também lhe foi à pele a imprensa, com pilhérias soezes. E depois, o público. Ninguém alcançara a nobreza do seu gesto, e Aldrovando, com a mortificação n’alma, teve que mudar de rumo. Planeou recorrer ao púlpito dos jornais. Para isso mister foi, antes de nada, vencer o seu velho engulho pelos “galicígrafos de papel e graxa”. Transigiu e, breve, desses “pulmões da pública opinião” apostrofou o país com o verbo tonante de Ezequiel. Encheu colunas e colunas de objurgatórias ultra violentas, escritas no mais estreme vernáculo.
Mas não foi entendido. Raro leitor metia os dentes naqueles intermináveis períodos engrenados à moda de Lucena; e ao cabo da aspérrima campanha viu que pregara em pleno deserto. Leram-no apenas a meia dúzia de Aldrovandos que vegetam sempre em toda parte, como notas rezinguentas da sinfonia universal.
A massa dos leitores, entretanto, essa permaneceu alheia aos flamívomos pelouros da sua colubrina sem raia. E por fim os “periódicos” fecharam-lhe a porta no nariz, alegando falta de espaço e coisas.
– Espaço não há para as sãs idéias, objurgou o enxotado, mas sobeja, e pressuroso, para quanto recende à podriqueira!… Gomorra! Sodoma! Fogos do céu virão um dia alimpar-vos a gafa!… exclamou, profético, sacudindo à soleira da redação o pó das cambaias botinas de elástico.
Tentou em seguida ação mais direta, abrindo consultório gramatical.
– Têm-nos os físicos (queria dizer médicos), os doutores em leis, os charlatãs de toda espécie. Abra-se um para a medicação da grande enferma, a língua. Gratuito, já se vê, que me não move amor de bens terrenos.
Falhou a nova tentativa. Apenas moscas vagabundas vinham esvoejar na salinha modesta do apóstolo. Criatura humana nem uma só lá apareceu afim de remendar-se filologicamente.
Ele, todavia, não esmoreceu.
– Experimentemos processo outro, mais suasório.
E anunciou a montagem da “Agência de Colocação de Pronômes e Reparos Estilísticos”.
Quem tivesse um autógrafo a rever, um memorial a expungir de cincas, um calhamaço a compor-se com os “afeites” do lídimo vernáculo, fosse lá que, sem remuneração nenhuma, nele se faria obra limpa e escorreita.
Era boa a idéia, e logo vieram os primeiros originais necessitados de ortopedia, sonetos a consertar pés de verso, ofícios ao governo pedindo concessões, cartas de amor.
Tais, porém, eram as reformas que nos doentes operava Aldrovando, que os autores não mais reconheciam suas próprias obras. Um dos clientes chegou a reclamar.
– Professor, v. s. enganou-se. Pedi limpa de enxada nos pronomes, mas não que me traduzisse a memória em latim…
Aldrovando empertigou-se.
– Pois, amigo, errou de porta. Seu caso é alí com o alveitar da esquina.
Pouco durou a Agência, morta à míngua de clientes. Teimava o povo em permanecer empapado no chafurdeiro da corrupção…
O rosário de insucessos, entretanto, em vez de desalentar exasperava o apóstolo.
– Hei-de influir na minha época. Aos tarelos hei de vencer. Fogem-me à férula os maráus de pau e corda? Ir-lhes-ei empós, fila-los-eis pela gorja… Salta rumor!
E foi-lhes “empós”, Andou pelas ruas examinando dísticos e tabuletas com vícios de língua. Descoberta a “asnidade”, ia ter com o proprietário, contra ele desfechando os melhores argumentos catequistas.
Foi assim com o ferreiro da esquina, em cujo portão de tenda uma tabuleta – “Ferra-se cavalos” – escoicinhava a santa gramática.
– Amigo, disse-lhe pachorrentamente Aldrovando, natural a mim me parece que erre, alarve que és. Se erram paredros, nesta época de ouro da corrupção…
O ferreiro pôs de lado o malho e entreabriu a boca.
– Mas da boa sombra do teu focinho espero, continuou o apóstolo, que ouvidos me darás. Naquela tábua um dislate existe que seriamente à língua lusa ofende. Venho pedir-te, em nome do asseio gramatical, que o expunjas.
– ? ? ?
– Que reformes a tabuleta, digo.
– Reformar a tabuleta? Uma tabuleta nova, com a licença paga? Estará acaso rachada?
– Fisicamente, não. A racha é na sintaxe. Fogem ali os dizeres à sã gramaticalidade.
O honesto ferreiro não entendia nada de nada.
– Macacos me lambam se estou entendendo o que v. s. diz…
– Digo que está a forma verbal com eiva grave. O “ferra-se” tem que cair no plural, pois que a forma é passiva e o sujeito é “cavalos”.
O ferreiro abriu o resto da boca.
– O sujeito sendo “cavalos”, continuou o mestre, a forma verbal é “ferram-se” – “ferram-se cavalos!”
– Ahn! Respondeu o ferreiro, começo agora a compreender. Diz v. s. que …
– … que “ferra-se cavalos” é um solecismo horrendo e o certo é “ferram-se cavalos”.
– V. S. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele “se” da tabuleta refere-se cá a este seu criado. É como quem diz: Serafim ferra cavalos – Ferra Serafim cavalos. Para economizar tinta e tábua abreviaram o meu nome, e ficou como está: Ferra Se (rafim) cavalos. Isto me explicou o pintor, e entendi-o muito bem.
Aldrovando ergueu os olhos para o céu e suspirou.
– Ferras cavalos e bem merecias que te fizessem eles o mesmo!… Mas não discutamos. Ofereço-te dez mil réis pela admissão dum “m” ali…
– Se V. S. paga…
Bem empregado dinheiro! A tabuleta surgiu no dia seguinte dessolecismada, perfeitamente de acordo com as boas regras da gramática. Era a primeira vitória obtida e todas as tardes Aldrovando passava por lá para gozar-se dela
Por mal seu, porém, não durou muito o regalo. Coincidindo a entronização do “m” com maus negócios na oficina, o supersticioso ferreiro atribuiu a macaca à alteração dos dizeres e lá raspou o “m” do professor.
A cara que Aldrovando fez quando no passeio desse dia deu com a vitória borrada! Entrou furioso pela oficina a dentro, e mascava uma apóstrofe de fulminar quando o ferreiro, às brutas, lhe barrou o passo.
– Chega de caraminholas, ó barata tonta! Quem manda aqui, no serviço e na língua, sou eu. E é ir andando antes que eu o ferre com bom par de ferros ingleses!
O mártir da língua meteu a gramática entre as pernas e moscou-se.
– “Sancta simplicitas!” ouviram-no murmurar na rua, de rumo à casa, em busca das consolações seráficas de Fr. Heitor Pinto. Chegado que foi ao gabinete de trabalho, caiu de borco sobre as costaneiras venerandas e não mais conteve as lágrimas, chorou…
O mundo estava perdido e os homens, sobre maus, eram impenitentes. Não havia desviá-los do ruim caminho, e ele, já velho, com o rim a rezingar, não se sentia com forças para a continuação da guerra.
– Não hei-de acabar, porém, antes de dar a prelo um grande livro onde compendie a muita ciência que hei acumulado.
E Aldrovando empreendeu a realização de um vastíssimo programa de estudos filológicos. Encabeçaria a série um tratado sobre a colocação dos pronomes, ponto onde mais claudicava a gente de Gomorra.
Fê-lo, e foi feliz nesse período de vida em que, alheio ao mundo, todo se entregou, dia e noite, à obra magnífica. Saiu trabuco volumoso, que daria três tomos de 500 páginas cada um, corpo miúdo. Que proventos não adviriam dali para a lusitanidade. Todos os casos resolvidos para sempre, todos os homens de boa vontade salvos da gafaria! O ponto fraco do brasileiro falar resolvido de vez! Maravilhosa coisa…
Pronto o primeiro tomo – Do pronome Se – anunciou a obra pelos jornais, ficando à espera das chusmas de editores que viriam disputá-la à sua porta. E por uns dias o apóstolo sonhou as delícias da estrondosa vitória literária, acrescida de gordos proventos pecuniários.
Calculava em oitenta contos o valor dos direitos autorais, que, generoso que era, cederia por cinqüenta. E cinqüenta contos para um velho celibatário como ele, sem família nem vícios, tinha a significação duma grande fortuna. Empatados em empréstimos hipotecários sempre eram seus quinhentos mil réis por mês de renda, a pingarem pelo resto da vida na gavetinha onde, até então, nunca entrara pelega maior de duzentos. Servia, servia!… E Aldrovando, contente, esfregava as mãos de ouvido alerta, preparando frases para receber o editor que vinha vindo…
Que vinha vindo mas não veio, aí!… As semanas se passaram sem que nenhum representante dessa miserável fauna de judeus surgisse a chatinar o maravilhoso livro.
– Não me vêm a mim? Salta rumor! Pois me vou a eles!
E saiu em via sacra, a correr todos os editores da cidade.
Má gente! Nenhum lhe quis o livro sob condições nenhumas. Torciam o nariz, dizendo “Não é vendável”; ou: “Porque não faz antes uma cartilha infantil aprovada pelo governo?
Aldrovando, com a morte n’alma e o rim dia a dia mais derrancado, retesou-se nas últimas resistências.
– Fá-la-ei imprimir à minha custa! Ah, amigos! Aceito o cartel. Sei pelejar com todas as armas e irei até ao fim. Bofé!
Para lugar era mister dinheiro e bem pouco do vilíssimo metal possuía na arca o alquebrado Aldrovando. Não importa! Faria dinheiro, venderia móveis, imitaria Bernardo de Pallissy, não morreria sem ter o gosto de acaçapar Gomorra sob o peso da sua ciência impressa. Editaria ele mesmo um por um todos os volumes da obra salvadora.
Disse e fez.
Passou esse período de vida alternando revisão de provas com padecimentos renais. Venceu. O livro compôs-se, magnificamente revisto, primoroso na linguagem como não existia igual.
Dedicou-o a Fr. Luz de Souza:
À memória daquele que me sabe as dores,
O Autor.
Mas não quis o destino que o já trêmulo Aldrovando colhesse os frutos de sua obra. Filho dum pronome impróprio, a má colocação doutro pronome lhe cortaria o fio da vida.
Muito corretamente havia ele escrito na dedicatória: …daquele que me sabe… e nem poderia escrever doutro modo um tão conspícuo colocador de pronomes. Maus fados intervieram, porém – até os fados conspiram contra a língua! – e por artimanha do diabo que os rege empastelou-se na oficina esta frase. Vai o tipógrafo e recompõe-na a seu modo …d’aquele que sabe-me as dores… E assim saiu nos milheiros de cópias da avultada edição.
Mas não antecipemos.
Pronta a obra e paga, ia Aldrovando recebê-la, enfim. Que glória! Construíra, finalmente, o pedestal da sua própria imortalidade, ao lado direito dos sumos cultores da língua.
A grande idéia do livro, exposta no capítulo VI – Do método automático de bem colocar os pronomes – engenhosa aplicação duma regra mirífica por meio da qual até os burros de carroça poderiam zurrar com gramática, operaria como o “914? da sintaxe, limpando-a da avariose produzida pelo espiroqueta da pronominuria.
A excelência dessa regra estava em possuir equivalentes químicos de uso na farmacopéia alopata, de modo que a um bom laboratório fácil lhe seria reduzí-la a ampolas para injeções hipodérmicas, ou a pílulas, pós ou poções para uso interno.
E quem se injetasse ou engolisse uma pípula do futuro PRONOMINOL CANTAGALO, curar-se-ia para sempre do vício, colocando os pronomes instintivamente bem, tanto no falar como no escrever. Para algum caso de pronomorreia agudo, evidentemente incurável, haveria o recurso do PRONOMINOL Nº 2, onde entrava a estriquinina em dose suficiente para libertas o mundo do infame sujeito.
Que glória! Aldrovando prelibava essas delícias todas quando lhe entrou casa a dentro a primeira carroçada de livros. Dois brutamontes de mangas arregaçadas empilharam-nos pelos cantos, em rumas que lá se iam; e concluso o serviço um deles pediu:
– Me dá um mata-bicho, patrão!
Aldrovando severizou o semblante ao ouvir aquele “Me” tão fora dos mancais, e tomando um exemplo da obra ofertou-a ao “doente”.
– Toma lá. O mau bicho que tens no sangue morrerá asinha às mãos deste vermífugo. Recomendo-te a leitura do capítulo sexto.
O carroceiro não se fez rogar; saiu com o livro, dizendo ao companheiro:
– Isto no “sebo” sempre renderá cinco tostões. Já serve!
Mal se sumiram, Aldrovando abancou-se à velha mesinha de trabalho e deu começo à tarefa de lançar dedicatórias num certo número de exemplares destinados à crítica. Abriu o primeiro, e estava já a escrever o nome de Rui Barbosa quando seus olhos deram com a horrenda cinca:
“daquele QUE SABE-ME as dores”.
– Deus do céu! Será possível?
Era possível. Era fato. Naquele, como em todos os exemplares da edição, lá estava, no hediondo relevo da dedicatória a Fr. Luiz de Souza, o horripilantíssimo
– “que sabe-me”…
Aldrovando não murmurou palavra. De olhos muito abertos, no rosto uma estranha marca de dor – dor gramatical inda não descrita nos livros de patologia – permaneceu imóvel uns momentos.
Depois empalideceu. Levou as mãos ao abdômen e estorceu-se nas garras de repentina e violentíssima ânsia.
Ergueu os olhos para Frei Luiz de Souza e murmurou:
– Luiz! Luiz! Lamma Sabachtani?!
E morreu.
De que não sabemos – nem importa ao caso. O que importa é proclamarmos aos quatro ventos que com Aldrovando morreu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da Colocação dos Pronomes.
Paz à sua alma.
1920
Fonte: http://contobrasileiro.com.br/o-colocador-de-pronomes-conto-de-monteiro-lobato/

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

OS 29 ANOS DA QUEDA DO MURO DE BERLIM

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Queda do Muro de Berlim (Fonte: História Zine)
Resultado de um complexo processo de tomadas de decisões, reuniões diplomáticas, esforços e distensões, o Muro de Berlim, ícone da Guerra Fria e símbolo da separação ideológica e política que imperou no mundo emergido do término da 2ªGuerra Mundial, "ruiu" em definitivo num dia como este, há 29 anos.

Construído pela República Democrática Alemã (socialista) no curso do que se convencionou chamar de Guerra Fria, ainda na década de 60 do século passado, constituía-se numa barreira com aproximadamente quatro metros de altura, com extensão de 155 quilômetros, circundando a capital bávara e separando a Alemanha Oriental (socialista) da Ocidental (capitalista). 

O mais importante de se analisar, para além do solidez física de um mero muro, seja lá qual for, é que aquele impôs ao mundo a criação e divisão em dois blocos radicalmente opostos.  De um lado o Ocidente, com todos os principais aliados dos Estados Unidos, e do outro um grupo de países socialistas irmanados forçosamente sob o punho de ferro da antiga URSS.  

Ferindo de morte o direito de ir e vir, assim como as preciosas liberdades e garantias constitucionais de dois milhões de habitantes da cidade de Berlim, o hoje destroçado muro, foi símbolo de tudo aquilo que o mundo não precisava (nem precisa): polarização político-ideológica.

Naquela dia de glória para o Ocidente, pra não dizer para o mundo, a estrutura físico-simbólica do projeto socialista começou a ser derrubada ainda pela noite, com uma multidão que, pouco a pouco, assomou ao lugar do obstáculo, golpeando-o em vários trechos, com martelos e picaretas, até que os primeiros vãos abertos permitissem mirar o sorriso, os gritos, o choro e os olhares de outros tantos alemães que há muito não podiam desfrutar do simples ato de locomover-se pelas cidades do seu próprio país.

Não devemos nos esquecer que nem sempre muros desmoronam por si mesmos, a não ser quando velhos, carcomidos e rachados. O de Berlim caiu quando presidia a URSS o líder Mikhail Gorbachev, mentor de dois processos concomitantes que influíram decisivamente na queda do anteparo separatista: os movimentos político-econômicos da Glasnost (transparência) e da Perestroika (reestruturação).

Ademais, um discurso do então presidente dos EUA, Ronald Reagan, em 1987, conclamando o presidente soviético a derrubar o muro, segundo entendem muitos historiadores e analistas políticos, deu o mote para tudo o que viria depois, com os mais que necessários ventos da mudança.

Por Rogério Rocha.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

3ª TURMA DO STJ FIXA TESE SOBRE ABUSO DO CANCELAMENTO DO BILHETE DE VOLTA POR NÃO COMPARECIMENTO NO VOO DE IDA

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3ª Turma do STJ (Foto: SEJURSMIG)
Em decisão unânime, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) fixou tese no sentido de que configura prática abusiva da empresa aérea, por violação direta do Código de Defesa do Consumidor, o cancelamento automático e unilateral do bilhete de retorno em virtude do não comparecimento do passageiro para o trecho de ida.

O julgamento pacifica o entendimento sobre o tema nas duas turmas de direito privado do STJ. Em novembro de 2017, a Quarta Turma já havia adotado conclusão no mesmo sentido – à época, a empresa aérea foi condenada a indenizar em R$ 25 mil uma passageira que teve o voo de volta cancelado após não ter se apresentado para embarque no voo de ida.

Com efeito, obrigar o consumidor a adquirir nova passagem aérea para efetuar a viagem no mesmo trecho e hora marcados, a despeito de já ter efetuado o pagamento, configura obrigação abusiva, pois coloca o consumidor em desvantagem exagerada, sendo, ainda, incompatível com a boa-fé objetiva que deve reger as relações contratuais (CDC, artigo 51, IV)”, afirmou o relator do recurso especial na Terceira Turma, ministro Marco Aurélio Bellizze.

Segundo o ministro, a situação também configura a prática de venda casada, pois condiciona o fornecimento do serviço de transporte aéreo de volta à utilização do trecho de ida. Além da restituição dos valores pagos com as passagens de retorno adicionais, o colegiado condenou a empresa aérea ao pagamento de indenização por danos morais de R$ 5 mil para cada passageiro.

Engano
No caso analisado pela Terceira Turma, dois clientes adquiriram passagens entre São Paulo e Brasília, pretendendo embarcar no aeroporto de Guarulhos. Por engano, eles acabaram selecionando na reserva o aeroporto de Viracopos, em Campinas (SP), motivo pelo qual tiveram que comprar novas passagens de ida com embarque em Guarulhos.
Ao tentar fazer o check-in no retorno, foram informados pela empresa aérea de que não poderiam embarcar, pois suas reservas de volta haviam sido canceladas por causa do no show no momento da ida. Por isso, tiveram que comprar novas passagens.
O pedido de indenização por danos morais e materiais foi julgado improcedente em primeiro grau, sentença mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Para o tribunal, o equívoco dos clientes quanto ao aeroporto de partida gerou o cancelamento automático do voo de retorno, não havendo abuso, venda casada ou outras violações ao CDC.

Venda casada
O ministro Marco Aurélio Bellizze apontou inicialmente que, entre os diversos mecanismos de proteção ao consumidor trazidos pelo CDC, destaca-se o artigo 51, que estabelece hipóteses de configuração de cláusulas abusivas em contratos de consumo. Além disso, o artigo 39 da lei fixa situações consideradas abusivas, entre elas a proibição da chamada “venda casada” pelo fornecedor.
No caso, a previsão de cancelamento unilateral da passagem de volta, em razão do não comparecimento para embarque no trecho de ida (no show), configura prática rechaçada pelo Código de Defesa do Consumidor, devendo o Poder Judiciário restabelecer o necessário equilíbrio contratual”, afirmou o ministro.
Além da configuração do abuso, o relator lembrou que a autorização contratual que permite ao fornecedor cancelar o contrato unilateralmente não está disponível para o consumidor, o que implica violação do artigo 51, parágrafo XI, do CDC. Bellizze disse ainda que, embora a aquisição dos bilhetes do tipo “ida e volta” seja mais barata, são realizadas duas compras na operação (uma passagem de ida, outra de volta), tanto que os valores são mais elevados caso comparados à compra de apenas um trecho.

Dessa forma, se o consumidor, por qualquer motivo, não comparecer ao embarque no trecho de ida, deverá a empresa aérea adotar as medidas cabíveis quanto à aplicação de multa ou restrições ao valor do reembolso em relação ao respectivo bilhete, não havendo, porém, qualquer repercussão no trecho de volta, caso o consumidor não opte pelo cancelamento”, concluiu o ministro ao condenar a empresa aérea ao pagamento de danos morais e materiais.

Leia o acórdão

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1699780


Fonte: STJ Notícias, em 08/10/2018.

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

7 Fatos sobre suicídio | Psiquiatra Fernando Fernandes

Rainbow - Rainbow Eyes (1978)





She's been gone since yesterday
Oh I didn't care
Never cared for yesterdays
Fancies in the air
No sighs or mysteries
She lay golden in the sun
No broken harmonies
But I've lost my way
She had rainbow eyes
Rainbow eyes
Rainbow eyes
Love should be a simple blend
A whispering on the shore
No clever words you can't defend
They lead to never more
No sighs or mysteries
She lay golden in the sun
No broken harmonies
But I've lost my way
She had rainbow eyes
Rainbow eyes
Rainbow eyes
Summer nights are colder now
They've taken down the fair
All the lights have died somehow
Or were they ever there
No sighs or mysteries
She lay golden in the sun
No broken harmonies
But I've lost my way
She had rainbow eyes
Oh, oh


Compositores: Ritchie Blackmore / Ronnie James Dio / Ronald Padavona
Letra de Rainbow Eyes © BMG Rights Management

terça-feira, 9 de outubro de 2018

A MONTANHA MÁGICA”, THOMAS MANN: UMA ESCALADA PARA PERNAS (E ESPÍRITOS) FORTES

POR  em Obvious Mag

montanha_magica.jpg
Terminei esses dias de ler “A Montanha Mágica”, do Thomas Mann.
Quem me vê falando uma frase solta assim, “terminei esses dias de ler o livro tal”, pode concluir superficialmente que se trata apenas de mais um livro, apenas de mais um dia comum em que se chega a uma última página qualquer. Quem me vê falando uma frase solta assim, “terminei esses dias de ler o livro tal”, nem imagina que levei mais de um ano, mais do que uma volta completa da Terra em torno no Sol, para chegar à última página desse livro. E nem imagina o quanto escalar essa Montanha foi uma experiência intensa, dolorida, e ao mesmo tempo Mágica - para fazer justiça ao título do livro. É pela intensidade, pela dor e pela magia da escalada que me sinto compelida a escrever um pouco sobre a experiência. Porque leituras se perdem ao longo do tempo, mas algumas sensações merecem ser eternizadas de alguma maneira.
A coisa toda começa pelo lado concreto mesmo. O livro em si já é uma montanha. São quase 900 páginas, e não páginas vis. Páginas grandes, com letras pequenas, imponentes; páginas que desafiam qualquer bom alpinista logo de cara. Nosso encontro foi na Livraria Cultura, num domingo de sol. Com milhares de exemplares disponíveis, pra quem eu fui olhar? Sim, pra Montanha. Era um dos títulos da minha lista de livros pra vida. Segurei com as duas mãos, abri, cheirei (existe cheiro melhor que cheiro de livro novo?), senti o peso – material, artístico e simbólico – daquele volume e pensei: “não é o momento!” Mas aí apareceu uma poltrona vazia na minha frente (e quem frequenta a Livraria Cultura do Conjunto Nacional de domingo sabe que poltrona vazia é basicamente um convite irrecusável da sorte!) e eu não titubeei: corri pra lá num só embalo. Levei a Montanha comigo. Resolvi ler só o prólogo, só por curiosidade, só pra uma bisbilhotada rápida. Foi então que a curiosidade se transformou em horas e quando dei por mim já estava chegando na página 60. O sol já tinha ido embora lá fora. E eu resolvi ir embora também, levando a Montanha comigo, ao melhor estilo Maomé-possessivo, a-Montanha-é-minha-e-ninguém-tasca.
Todo livro novo traz consigo uma excitação interna latente. As primeiras páginas são feitas de substâncias alucinógenas, cada vez tenho mais certeza disso. Porque cheguei em casa e pensei: se eu ler umas 100 páginas por semana, o que não é muito apesar do tamanho delas, em pouco mais de 2 meses eu termino essa joça. Foi quando ouvi o ecoar de uma sonora gargalhada vinda da Montanha, mas achei que também isso fazia parte dos tais efeitos alucinógenos e não dei credibilidade.
Lembro bem que, de casa, mandei a foto do livro pra um amigo. Ele respondeu algo como: “uau, o livro da tuberculose! Ainda não tive coragem!” Hoje o “ainda não tive coragem” dele me soa como um grande e sóbrio gesto de maturidade.
Pra mim a experiência primordial dessa leitura foi o fato de eu me sentir, enquanto leitora, completamente impotente e à mercê de um narrador brilhante, poderoso, mas também provocativo e até perverso. A proposta dele me chegou intimamente clara desde o início do texto. Algo como “olha aqui, pequena gafanhota: você só poderá escalar a Montanha se eu te conduzir. Não há outro caminho, não há outro guia, é pegar ou largar. Sua única responsabilidade é não desistir no percurso, ou você ficará para sempre perdida na vastidão desses alpes...”
De fato, o narrador me conduziu num ritmo que foi particularmente sofrido. Tive várias imersões e deserções ao longo da escalada, como quem faz o reconhecimento de uma parte e retorna ao ponto anterior para ir se acostumando com o ar mais rarefeito, gradativa e penosamente.
O narrador faz questão de se legitimar narrador. Deixa claro que não tem pressa, que vai meeeeeesmo narrar tudo em detalhes se assim julgar pertinente, que localizar eventos no tempo não é o mais importante, e por aí vamos. Ele brinca com a atribuição que lhe é sagradamente outorgada e em diversos momentos provoca o leitor – inclusive antecipando ou ocultando fatos. Eu, controladora e organizada que sou (ou tento ser) em minhas próprias narrativas, entrei em muitas crises misturadas a encantamento com a figura incrível desse narrador – a quem eu tinha de dar a mão e confiar se quisesse continuar de fato a escalada (e não, eu não queria ficar perdida pra sempre nos alpes suíços).
Não entrarei no mérito da avalanche filosófica, artística, religiosa e humanística que acomete os corajosos leitores Montanha acima. Eu nem saberia compilar minimamente essa experiência depois de apenas uma leitura (o próprio autor recomenda no mínimo duas leituras de sua obra, pai consciente que é do filho multifacetado que colocou no mundo). São páginas, páginas e mais (infindáveis) páginas de uma intensidade gritante exposta em debates e diálogos nos quais só com muito exercício de resignação consegui encontrar algum ajuste e conforto. Mais chagas no corpo espiritual de uma leitora impelida a sair de sua zona de conforto e a encarar quase que submissamente os caminhos assinalados por um narrador obstinado a, justamente, escolher as trilhas mais difíceis.
O ritmo da narrativa é admiravelmente lento. Arrastadamente lento. Desafiadoramente lento. Foi difícil me adaptar a ele. Foi difícil conciliar o meu ritmo – de vida, de sentimento, de agitação – ao ritmo do texto. E pra mim era justamente aí que jazia a maior provocação do narrador, este mago do tempo. A proposta do livro não é delinear uma fábula, não é “contar uma historinha”. O buraco é mais embaixo (ou seria mais em cima, nesse caso?). O livro nos obriga a uma aclimatação de fato; não de temperatura, mas de concepção de tempo. O livro nos obriga – e pra mim essa obrigação abalou a tendência linear da minha alma – a desapegar de relógios e calendários; tanto é verdade que só nas últimas páginas é que sabemos com clareza quanto tempo Castorp passou na montanha. O tempo é “medido” tão somente por datas comemorativas ao longo do ano e pelas alterações observáveis na vegetação e no clima através das janelas e dos jardins do sanatório. De alguma forma, o homem é convidado a voltar às suas origens, à sua integração primordial com a natureza.
O tempo que importa é o de dentro. É o tempo desacelerado do mundo interior, que nada tem a ver com os relógios alucinados e com as agendas cheias da gente da planície. O tempo que importa é o tempo que transforma; em vários momentos, aliás, nos deparamos com o “mantra” do narrador: “o tempo presentifica transformações!” O tempo que importa é o tempo que silencia. Porque só o silêncio das questões “automáticas” da vida comum é capaz de deixar falar a ESSÊNCIA, que via de regra se encontra espremida entre obrigações, pressões sociais, profissionais e familiares. No contexto do livro, o tempo que importa é o tempo que só se descobre pela via da doença. Só a doença, impondo a limitação ao corpo físico, é capaz de transformar o espírito do homem.
Aceitar essa dimensão de tempo é aceitar deixar a planície e, finalmente, se entregar à montanha. A Mágica só acontece quando estamos abertos à Montanha, à sua vulnerabilidade despreocupada, às questões fundamentais da existência - que podem parecer pequenas e tolas se analisadas “desde lá de baixo”. Quando finalmente consegui me aclimatar, quando finalmente consegui superar tamanho desconforto (e isso me tomou meia escalada inteira!), a Mágica da Montanha aconteceu. Não sei dizer nem quando e nem como – mesmo porque essas são referências secundárias no contexto da obra -, mas de repente o tempo da Montanha fazia muito mais sentido que o tempo da [minha] planície. E, afortunadamente, eu nem precisei da tuberculose pra isso.
E aí a outra metade da escalada, que pra mim teve realmente sensação de descida depois que a leitura deslanchou, tomou ares de um novo desafio: o de viver na planície ajustando tempo de relógio e tempo de Montanha. Então assim: Fernando Pessoa que me desculpe, mas esse foi meu verdadeiro “Livro do Desassossego”.
Depois de tanto esforço, tanto desconforto, tanto perrengue, tantas descobertas, tantos encantamentos e tantos questionamentos, sintetizo minha primeira aventura na Montanha de Mann como estar dentro de uma ampulheta maluca, experenciando na pele um verdadeiro tratado sobre o tempo.
Foi uma inspiração pra vida. Foi um descortinar de questões latentes que até então não estavam classificadas dentro de mim – reforçando minha teoria de que a arte, e só a arte, é capaz de nomear nossos sentimentos indigentes ou distraídos.
Ainda estou tentando equilibrar tempo de planície e tempo de Montanha, o que está sendo uma experiência altamente enriquecedora para os meus dias perpassados por relógios, agendas e calendários. Mas acho que ainda levarei um bom tempo (de planície e de Montanha) pra angariar fôlego e coragem pra uma nova escalada. Conhecendo a base dos obstáculos do terreno, espera-se que uma segunda investida montanha acima seja menos sofrida e mais proveitosa. Entretanto, resolvi seguir a tradição do Berghof: uma nova subida aos alpes só acontecerá quando a vida na planície exigir, outra vez, distância e recolhimento em nome da cura.


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Constituição 30 anos: A celebração da data na visão de ministros do STF

Ministros que integram e que integraram o STF nos 30 anos de vigência da Constituição reafirmam a sua importância para a restauração do Estado Democrático de Direito e para a estabilidade institucional vivida pelo Brasil desde a sua promulgação.


Ministros que integram e que integraram o Supremo Tribunal Federal nos 30 anos de vigência da Constituição da República, celebrados no dia 5 de outubro, são unânimes em reafirmar a importância da Carta para a restauração do Estado Democrático de Direito e para a estabilidade institucional vivida pelo Brasil desde a sua promulgação. Outro ponto ressaltado é seu papel na garantia dos direitos fundamentais e na promoção dos direitos sociais. Acompanhe a seguir a declaração de alguns ministros do STF.
Ministro Marco Aurélio
O que é a Constituição Federal? É a maior das leis. Ela está no ápice da pirâmide das normas jurídicas e visa reger em última palavra a sociedade. Porém, mais importante do que o aspecto formal, do que se contém na Constituição Federal, é a sua observância. Temos uma Carta calcada principalmente na consagração de direitos sociais e de direitos fundamentais.
Ministro Gilmar Mendes
Essa Constituição produziu 30 anos de estabilidade. No que ela se diferencia das outras constituições? Ela é democrática e respeitosa para com os direitos fundamentais. Ela fortaleceu os direitos do cidadão no âmbito do Judiciário. Tem defeitos? Claro que tem. Pode ser aprimorada? Pode. Deve ser supressa? Acredito que não. Ombudsman, ela permitiu que de fato as questões fossem tratadas com maior respeito. Quando se diz que há um direito, mas que não se pode exercê-lo porque falta uma lei, é possível discutir isso no Judiciário alegando que há uma omissão inconstitucional. Tudo isso está previsto no seu próprio texto.
Ministro Roberto Barroso
Conseguimos conquistas muito importantes: estabilidade institucional e monetária, ampla inclusão social, avanços relevantes em matéria de direitos fundamentais de mulheres, negros, gays e populações indígenas e avanços na liberdade de expressão. Acho que a Constituição brasileira reflete uma história de sucesso.
Ministro Edson Fachin
A Constituição redesenhou o Brasil do ponto de vista normativo, político e econômico. E, passados 30 anos, não há dúvida de que seu programa normativo se realizou, com as instituições cumprindo as suas funções e sendo também submetidas ao escrutínio da sociedade. Por outro lado, as liberdades políticas, a realização deste programa de uma Constituição aberta, plural e inclusiva também se levou a efeito nesses 30 anos. Hoje, não há dúvida alguma de que vivemos num país com muitos desafios, mas com inequívoca liberdade de pensamento e de expressão. Portanto, a Constituição da redemocratização efetivamente trouxe uma república ao Brasil, com compromissos que foram realizados e outros tantos que ainda devem ser levados a efeito, para que ela não seja apenas uma peça de museu ou, como diziam alguns teóricos, um pedaço de papel.
Ministro Alexandre de MoraesDurante 30 anos, mesmo com todas as crises políticas, econômicas e éticas que o País vive e viveu, mantivemos a estabilidade democrática e institucional graças, principalmente, a esse equilíbrio entre os Poderes e à aposta que fez o legislador constituinte no Supremo Tribunal Federal e no Poder Judiciário como o poder do Estado apto a moderar e equilibrar eventuais desavenças entre os Poderes, entre estados-membros e entre a União e os estados. Esse papel significativo do Supremo Tribunal Federal que foi ampliado pela Constituição de 1988 – e que todas as gerações que vêm passando pelo Supremo vêm reforçando – é importantíssimo para manter no país a estabilidade.
Ministro Francisco Rezek (aposentado)
Essa Constituição pode ser emendada em pequenas coisas corretivas ou minimamente ampliativas, mas vem sendo observada com relativo rigor na fidelidade ao seu texto por todos os agentes públicos dos Três Poderes e pela sociedade em geral. É uma Constituição da qual o País se orgulha.
Ministro Nelson Jobim (aposentado)
A Constituição sobreviveu e claramente conseguiu gerir, com as suas instituições, as crises políticas que ocorreram, como o impeachment do presidente Collor e o da presidente Dilma. As instituições estão funcionando. Estamos, evidentemente, com um gap de transição entre gerações no que diz respeito aos novos políticos que aparecem, mas tudo isso é normal no processo democrático.
Acesse o site comemorativo do STF aos 30 anos da Constituição Federal.

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