No curso da operação zelotes, investiga-se a possibilidade de ter havido a “compra” de medidas provisórias[1]. Nas delações havidas no curso da operação “lava jato”, sugere-se que a Odebrecht teria também pago pela aprovação de leis[2].
A
comprovação da ocorrência desses eventos levantará dúvidas não apenas a
respeito da legitimidade do processo legislativo praticado na nossa
jovem democracia, mas também suscitará indagações a respeito da higidez
dos atos normativos editados pelo Congresso Nacional em vista da mácula
em sua formação.
É certo que, numa democracia, espera-se que a
política seja utilizada como mecanismo de defesa de interesses, numa
sociedade pluralista, que conduz à formação das regras que nortearão a
nossa vida em sociedade. É nesse contexto que surge aquilo que Jeremy
Waldron chamou da contingência do Direito: o Direito, no Estado moderno,
está sujeito a modificações, que devem ocorrer ordinariamente no meio
político, pelos representantes legitimamente eleitos, no exercício
regular de seus mandatos (observadas, por óbvio, as regras do jogo
estabelecidas pelo Direito)[3].
Essa
defesa de interesses degenera-se em corrupção quando se perde a ideia
de bem comum que deve conduzir o processo legislativo e que constitui
premissa norteadora da formação da vontade política e das leis.
Por
isso, a ocorrência de “compra de leis”, além de colocar em xeque as
bases em que se assentam o Estado de Direito, põe em discussão a
possibilidade de aplicação de sanções jurídicas para o parlamentar e
para a lei fruto da manifestação de vontade viciada. Surge, portanto,
indagação sobre os efeitos dessa prática nefasta nos institutos da
imunidade parlamentar e do controle de constitucionalidade.
Como
se sabe, é para resguardar o adequado funcionamento da democracia que se
conferiu a imunidade ao parlamentar no exercício de seu múnus público.
No Brasil, a imunidade parlamentar não tem sido considerada barreira
para a responsabilização penal dos parlamentares. De fato, é certo que
hoje se entende que o parlamentar, no exercício de suas funções, está
sujeito a um regime de responsabilidade não apenas eleitoral (perante os
eleitores), mas também disciplinar e mesmo penal.
No que se
refere à responsabilidade disciplinar, prescreve o art. 55, §1º, da
Constituição Federal que “é incompatível com o decoro parlamentar, além
dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas
asseguradas a membros do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens
indevidas”.
Na Ação Penal 470[4]
(conhecida como processo do “mensalão”), o Supremo Tribunal Federal
entendeu configurada a responsabilidade penal dos parlamentares e a
prática de ilícito penal, tendo em vista a “comprovação do amplo esquema
de distribuição de dinheiro a parlamentares, os quais, em troca,
ofereceram seu apoio e o de seus correligionários aos projetos de
interesse do Governo Federal na Câmara dos Deputados”.
Dissociando
a discussão do período pré-eleitoral e afastando a tese do crime
eleitoral de “caixa 2”, entendeu-se que “os parlamentares receberam o
dinheiro em razão da função, em esquema que viabilizou o pagamento e o
recebimento de vantagem indevida, tendo em vista a prática de atos de
ofício”.
A questão é saber se o vício de vontade do parlamentar,
se a corrupção da sua ação macula a validade da lei, por
inconstitucionalidade. A inconstitucionalidade é um vício que deriva de
uma relação de desvalor, que se configura pela desconformidade de
determinado ato com a Constituição, atribuindo-se a esse vício uma
sanção, ordinariamente associada à declaração de sua nulidade.
Há
inconstitucionalidade formal quando não se observam as regras
constitucionais “respeitantes à produção e à revelação de um acto
jurídico-público”[5]
(observância dos procedimentos necessários para a aprovação do texto
normativo, como iniciativa, quórum e rito). A inconstitucionalidade
material se manifesta quando ocorre uma lesão direta a “um enunciado
substantivo da normação constitucional”[6].
Nesse
juízo de desconformidade, assume-se que, em princípio, a vontade do
legislador é irrelevante (até porque, dado que a lei é fruto do concurso
de vontade de diversos agentes e decorre de um complexo processo, a
ideia de vontade do legislador é uma ficção jurídica). Nesse sentido, há
orientação antiga do Supremo Tribunal Federal de que “eventuais vícios
que se possam verificar nos motivos do ato estatal não contagiam as
normas nele veiculadas[7]”.
Esse
pensamento poderia conduzir à conclusão de a corrupção de um
parlamentar não seria juridicamente relevante para a realização do
controle de constitucionalidade. Certamente, dado o contexto político e
constitucional que vivemos, essa orientação será desafiada.
Nos
autos da ADI 4.885, por exemplo, a AMB e a Anamatra postulam o
reconhecimento da inconstitucionalidade formal da EC 41/2003, que
instituiu o Fundo de Previdência para os servidores públicos, por
entender que os atos criminosos praticados por parlamentares,
constatados na já mencionada Ação Penal 470, importariam em violação ao
art. 1º, parágrafo único, da Constituição, porque a Emenda
Constitucional não expressou a efetiva vontade do povo (exercida por
meio de seus representantes); art. 5º, inciso LV, da Constituição, em
vista da ofensa ao devido processo legislativo; e aos arts. 60, § 2º, e
37, caput, da Constituição, porque não se observou materialmente o rito
deliberativo para aprovação das emendas constitucionais e houve ofensa
ao princípio da moralidade.
No parecer que apresentou na ADI, o
procurador-geral da República, apesar de reconhecer que “o vício na
formação da vontade no procedimento legislativo viola diretamente os
princípios democráticos e do devido processo legislativo e implica,
necessariamente, a inconstitucionalidade do ato normativo produzido”,
pugnou pela improcedência da ação.
Segundo o PGR, “por força
desses mesmos princípios, bem como em razão da garantia constitucional
da presunção de não culpabilidade (art. 5º, LVII, da CR), é
indispensável que haja a comprovação da maculação da vontade de
parlamentares em número suficiente para alterar o quadro de aprovação do
ato normativo, o que não ocorre na hipótese ora analisada”, dado que na
AP 470 “foram condenados sete parlamentares em razão de sua
participação no esquema de compra e venda de votos e apoio político”.
Essa ADI, que se encontra sob a relatoria do ministro Marco Aurélio,
está pendente de julgamento.
No plano da inconstitucionalidade
material, examinando o conteúdo da norma, hoje já se admite que, no
controle de constitucionalidade, se faça um juízo sobre fatos e
prognoses legislativa[8].
É dizer que se leve em consideração, no julgamento de
constitucionalidade, os fatos e o diagnóstico presentes no momento da
elaboração da norma ou mesmo sua motivação.
Nos Estados Unidos, a
possibilidade de realizar juízo de constitucionalidade a partir das
motivações legislativas constitui um tema polêmico na prática
constitucional da Suprema Corte.
Conforme nos relata John Hart
Ely, a recusa do exame das motivações para a apreciação da
inconstitucionalidade de uma dada lei deriva da dificuldade de
determinar se uma motivação ilegítima influenciou uma decisão. Mas
haverá situações em que “não haverá explicação alternativa legítima para
o ato em questão, situações em que portanto é possível deduzir de modo
responsável que o ato teve motivação inconstitucional”[9].
Apresentando
um histórico do controle de constitucionalidade das motivações
legislativas, Caleb Nelson, professor da Universidade da Virgínia,
conclui que, a partir da década de 70 do século passado, a Suprema Corte
expandiu as fontes de informação para passar a consultar dados
relativos ao histórico do processo legislativo, o que até então se
considerava fora dos limites do juízo de constitucionalidade[10].
É
preciso destacar que esse procedimento foi adotado, inicialmente, para
permitir a adequada proteção dos direitos fundamentais, notadamente os
previstos na 14ª Emenda, no que se refere à proteção contra a
discriminação (racial, religiosa e de gênero). Hoje, não obstante tenha
sido superado o dogma de que as motivações legislativas não são
judicializáveis, propõe-se que o exame das motivações legislativas
adquira relevância para o controle de constitucionalidade apenas quando o
ato normativo produz certos efeitos reais não albergados pela
Constituição[11].
Nessa
perspectiva, caberia voltar a nossa indagação, a respeito da
viabilidade de declarar de inconstitucionalidade de uma norma que tenha
atendido os interesses escusos de uma dada empresa.
De um lado,
poderia se argumentar que, se a corrupção tiver sido causa suficiente
para a edição do ato normativo, estaria viciada a vontade dos
representantes e comprometida a motivação legislativa, a justificar o
reconhecimento de sua inconstitucionalidade. Por outro lado, o
atendimento de interesses escusos não significa necessariamente que os
atos de corrupção tenham sido causa suficiente para a edição do ato
normativo e que não se façam presentes razões jurídicas legítimas para a
elaboração de uma lei geral e abstrata sobre determinado tema.
Para
ilustrar, cogite-se da edição de uma lei instituindo programa de
refinanciamento de dívidas tributárias que seja fruto de “atos de
corrupção” de parlamentares. Essa lei pode ter beneficiado a empresa que
a “encomendou” ilegitimamente para determinados parlamentares, mas
também terá alcançado milhares de outros contribuintes que são
totalmente estranhos ao processo de produção da legislação.
Pode-se
opor a essa dificuldade, própria do juízo proferido em controle
concentrado e abstrato de constitucionalidade, que a censura pela edição
de ato derivado de motivação espúria é cabível no controle difuso,
concreto e incidental, com o afastamento da aplicação do ato normativo
inconstitucional para aquele que diretamente deu causa ao vício na
formação da vontade política e dela se beneficiou. Essa discussão
poderia surgir, por exemplo, em ação de improbidade ajuizada contra
aqueles que praticaram tais atos.
De todo modo, cumpre concluir
que o grau de deformação do sistema político alcançou, no Brasil, não
apenas o sistema político-eleitoral, mas também espraiou seus efeitos
para o sistema legislativo, o que pode conduzir a uma nova reflexão
sobre os limites do controle de constitucionalidade, que deve sempre
estar atento aos perigos de uma judicialização excessiva da política.
Sendo ou não motivo de orgulho, cabe-nos reconhecer a possibilidade de o
Direito Constitucional brasileiro oferecer mais uma contribuição
original para o rico debate sobre os limites do controle de
constitucionalidade.
* Esta coluna é produzida pelos membros
do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional
(OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
[1] Confira-se a notícia jornalística: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,pf-indicia-lula-por-venda-de-medida-provisoria,70001784261
[2] Confira-se a notícia jornalística: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/12/12/politica/1481572367_344629.html
[3] WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Cap. 1: a indignidade da legislação (especialmente pp. 13-20).
[4]
AP 470, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em
17/12/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-074 DIVULG 19-04-2013 PUBLIC
22-04-2013
[5] MORAIS, Carlos Blanco. Justiça Constitucional. Tomo I (Garantia da Constituição e Controlo da Constitucionalidade). 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p.149.
[6] MORAIS, Carlos Blanco. Justiça Constitucional. Tomo I (Garantia da Constituição e Controlo da Constitucionalidade). 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p.138.
[7]
ADI 432, Rel. Min. Celso De Mello, Tribunal Pleno, julgado em
15/05/1991, DJ 13/9/1991. Nesse caso, o Supremo Tribunal Federal
entendeu que não seria possível exercer juízo de constitucionalidade, em
sede de controle concentrado, de portarias ministeriais a partir de
consideranda do ato estatal.
[8]
Vide decisão monocrática proferida nos autos da ADI 2.548, em
18/10/2005, pelo ministro Gilmar Mendes, na qual se cogitou a “a
possibilidade efetiva de o Tribunal Constitucional lançar mão de
quaisquer das perspectivas disponíveis para a apreciação da legitimidade
de um determinado ato questionado. A constatação de que, no processo de
controle de constitucionalidade, se faz, necessária e inevitavelmente, a
verificação de fatos e prognoses legislativos, sugere a necessidade de
adoção de um modelo procedimental que outorgue ao Tribunal as condições
necessárias para proceder a essa aferição.” (Informativo 406 do STF).
[9] ELY, John Hart. Democracia e Desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 184.
[10] Caleb Nelson, Judicial Review of Legislative Purpose, 83 New York University Law Review, 1784, 2008.
[11] Caleb Nelson, Judicial Review of Legislative Purpose, 83 New York University Law Review, 1784, 2008. pp. 1.850-1857.
Fábio Lima Quintas é editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional. Doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito do Estado pela UnB. Professor de processo civil e advogado.
Fonte: Consultor Jurídico
Fábio Lima Quintas é editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional. Doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito do Estado pela UnB. Professor de processo civil e advogado.
Fonte: Consultor Jurídico