Márcio Adriano Anselmo*
A presidência do inquérito policial está centralizada na figura do delegado de polícia, cujo modelo se consolidou com a Constituição Federal de 1988, fortalecido pela Lei 12.830/13. Com base nesse formato, busca-se uma dinâmica investigatória que visa sopesar direitos e garantias fundamentais do indivíduo, sem que este novo delineamento acarrete prejuízos à ordem pública, à eficácia da lei penal ou aos interesses da coletividade.
Portanto, ao final de todo o procedimento investigatório, o quadro fático desenhado pelo delegado de polícia deverá se aproximar dos acontecimentos reais, propiciando a responsabilização criminal de uns e a ratificação da inocência de outros, como forma de aplicação dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito, impedindo acusações injustas, arbitrárias e desprovidas de necessidade. A investigação criminal atua, portanto, como o primeiro filtro a evitar um processo penal desnecessário.
Nesse cenário, cabe inicialmente estabelecer o papel do órgão ministerial no que diz respeito à sua atuação em relação às investigações conduzidas pelo delegado de polícia, cujo artigo 129 da Constituição Federal aponta como função “VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais”.
A Lei Complementar 75/93, ato normativo primário que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, aponta, no artigo 38, entre suas funções institucionais, “requisitar diligências investigatórias e instauração de inquérito policial, podendo acompanhá-los e apresentar provas”.
Percebe-se que o órgão ministerial, quanto a sua relação com inquérito policial, não tem disponíveis poderes ou funções que o autorizem a atuar como ator principal no inquérito policial. Cabe-lhe, nos termos legais, funções anômalas, estranhas à capacidade investigatória do delegado de polícia. Não se descuida aqui da decisão no Recurso Extraordinário 593.727 MG, que atribui ao Ministério Público poderes investigatórios, mas se busca tratar do papel do delegado de polícia na condução da investigação criminal consubstanciada no inquérito policial.
A requisição de instauração de inquérito policial, o acompanhamento de sua tramitação, o direito de apresentação de provas e, por fim, a requisição de diligências investigatórias são poderes decorrentes da função fiscalizatória que a lei e o texto constitucional atribuem ao parquet.
A Lei 12.830/13 buscou sedimentar o papel do delegado de polícia na condução do inquérito policial, conferindo-lhe as características de discricionariedade, autonomia e exclusividade para a condução da investigação criminal.
Quanto à discricionariedade, tal característica da atuação do delegado de polícia é evidenciada desde a entrada em vigor do Código de Processo Penal, por meio da redação do artigo 6º, quando coloca, à disposição da autoridade policial, sem caráter de exaustividade ou vinculação, inúmeras diligências investigatórias que, conforme juízo de oportunidade e conveniência, poderão ser adotadas para alcance da apuração de autoria e materialidade. A Lei 12.830/13, por sua vez, dispôs que “durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos”.
O atributo da autonomia da autoridade policial está instituído no artigo 2º, parágrafo 1º da referida lei, quando é colocada como incumbência do delegado de polícia a condução da investigação criminal. O termo “condução” pressupõe a direção, o exercício de toda a atividade investigatória desenvolvida no decurso do inquérito policial, o que implica a inadmissibilidade de interferências internas, dentro do próprio órgão da Polícia Judiciária, ou externas, provenientes de demais participantes da persecução penal, impedindo-os de se imiscuir na esfera decisória do delegado de polícia.
Por fim, no que toca ao atributo da exclusividade, observa-se que a lei atribui ao delegado de polícia a privatividade para o indiciamento por meio da Lei 12.830/13. Ora, se a análise da materialidade e indícios de autoria é privativa do delegado de polícia, somente a este cabe, ao término da investigação, apontar a ocorrência de infração penal e sua eventual autoria.
A condução do inquérito policial, conferido com exclusividade, autonomia e discricionariedade, impede que outros órgãos ou entes se manifestem na fase investigatória da persecução penal de modo a se imiscuir no juízo de oportunidade e conveniência do delegado de polícia.
O órgão ministerial, por sua vez, deve ser incumbido da função fiscalizatória sobre a investigação criminal, exercendo estritamente um controle de legalidade em todo o decurso da fase apuratória. Esse papel apresenta-se fundamental, sobretudo a fim de evitar-se o nefasto desvirtuamento da investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia. Nesse cenário, assume papel de suma importância o controle externo da atividade policial exercido pelo parquet.
Dessa forma, a interação entre o órgão ministerial, enquanto titular da ação penal e custos legis, e o delegado de polícia, enquanto presidente do inquérito policial, deve observar os contornos de seus papéis em três momentos distintos da investigação criminal:
a) fase anterior à instauração da investigação;
b) fase de tramitação do inquérito policial (da instauração até o relatório);
c) fase posterior à finalização das apurações.
Na fase anterior ao início da investigação criminal, situada entre a prática delitiva e a instauração do inquérito policial, o órgão ministerial desempenha sua função fiscalizatória por meio da requisição de instauração do inquérito policial. Em virtude do princípio da obrigatoriedade, inexiste juízo de oportunidade e conveniência do delegado de polícia para decidir se instaura ou não o inquérito policial, salvo se a requisição é manifestamente ilegal.
A requisição da instauração do inquérito policial, como dito, apresenta caráter vinculado, devendo ser atendida pela autoridade policial. Apesar disso, o conteúdo da portaria, peça que formaliza o início da investigação criminal, é campo discricionário e exclusivo do delegado de polícia, a quem cabe definir a capitulação legal e as diligências investigatórias iniciais. É vedado ao órgão ministerial se imiscuir neste campo sob pena de assumir, por via oblíquas, a presidência/condução da investigação criminal, o que encontra expressa vedação na Lei 12.830/13 e na jurisprudência dos tribunais superiores. Eventuais diligências referidas na requisição de instauração, em que pese posição contraria de Aury Lopes Junior e Ricardo Jacobsen Gloeckner[1], devem ser entendidas como sugestões de diligências, sempre submetidas ao juízo do presidente da investigação, a quem compete analisar sua conveniência e oportunidade.
No curso do inquérito policial, compreendido entre a portaria de instauração e a confecção do relatório final, cabe unicamente ao delegado de polícia decidir sobre a diligência investigatória empregada, momento adequado para execução, técnicas de inteligência necessárias e teses jurídicas que se mostrarão úteis para a apuração dos fatos. Essas variáveis localizam-se na órbita do juízo de oportunidade e conveniência do delegado de polícia, campo de mérito administrativo. Cabe destacar que o parquet no curso do inquérito policial, citando novamente Aury e Ricardo Gloeckner[2], tem presença “secundária, acessória e contingente, pois o órgão encarregado de dirigir o inquérito policial é a polícia judiciária”. Caso pretenda dirigir a investigação criminal, deve o órgão ministerial fazê-lo mediante seus procedimentos próprios de investigação (já considerados válidos pelo Supremo Tribunal Federal), e não pelo inquérito policial.
Ademais, as diligências requeridas pelo parquet no curso da investigação devem ser compreendidas à luz do artigo 14 do CPP, que estabelece que “o ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade”, sob pena de clara afronta ao princípio de paridade de armas, que deve ser aplicado também à fase do inquérito policial.
A requisição de diligências investigatórias pelo órgão geraria, de forma transversa e arbitrária, uma usurpação do papel de condutor da investigação. Em regra, a execução de diligências investigatórias é feita pelo delegado de polícia, seja diretamente ou por meio de seus agentes, independente de manifestação ministerial e de prévia autorização judicial, utilizando-se para isso do poder requisitório, por meio do qual são trazidas aos autos o resultado de perícias, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos, conforme prescreve o artigo 2º, parágrafo 2º da Lei 12.830/13.
Em caráter excepcional, no caso de medidas invasivas, a execução de diligências investigatórias pelo delegado de polícia submetidas à prévia autorização judicial, o Ministério Público fiscaliza a regularidade da medida, exarando, para isso, parecer de legalidade da medida.
Por fim, um terceiro momento do inquérito policial se dá com o oferecimento do relatório, que marca o encerramento da atuação da polícia judiciária, uma vez que a autoridade policial reconhece que foram exauridas as diligências investigatórias disponíveis e adotadas as teses jurídicas mais adequadas para a busca do esclarecimento dos fatos. Abre-se, a partir de então, espaço para a apreciação do resultado da investigação pelo órgão ministerial.
A partir da apresentação do relatório, o papel de protagonista da persecução penal é transferido do delegado de polícia, presidente da investigação criminal, para o Ministério Público, titular da ação penal, a quem cabe promover a processualização do feito por meio da apresentação da peça acusatória.
Aqui reside o instante em que se mostra cabível a requisição das diligências investigatórias em face do delegado, enquanto presidente da investigação, sem que ocorra disfunção ou desvirtuamento dos órgãos da persecução penal. Não obstante tal autorização, a requisição de diligências investigatórias deve obedecer aos limites legais e constitucionais impostos ao exercício do poder requisitório ministerial, sob pena de ser negada, de forma legítima, pela autoridade policial o cumprimento das diligências.
Estabelecido o momento de seu cabimento no curso do inquérito policial, é necessário definir os limites do poder requisitório a fim de se evitar abusos ou ilegalidades. O artigo 16 do CPP traz uma primeira limitação, tornando a requisição cabível somente quando a diligência for imprescindível para o oferecimento da denúncia:
Sendo assim, nota-se que a diligência deve ter por finalidade a construção da materialidade e dos indícios de autoria relacionados aos fatos sob apuração, já que são esses os requisitos para o oferecimento da denúncia, não sendo cabível o uso da requisição para obtenção de informações destoantes do contexto investigativo ou para instruir indiretamente procedimentos de natureza cível ou administrativa.
Por conseguinte, não é pertinente a requisição para que a autoridade policial expeça ofícios a outros órgãos nem determine a execução de outros atos de natureza cartorária ou sem conexão com a atividade-fim da Polícia Judiciária, sob o risco de tornar ilegítimo o exercício do seu poder requisitório. Observa-se, portanto, que a diligência deve ser imprescindível ao oferecimento da denúncia.
O artigo 47 do CPP impede ainda que parquet faça requisições à autoridade policial quando as informações complementares estejam na posse de outra instituição, vedando que se utilize da intermediação de outra instituição para a obtenção dos elementos de convicção que julgar necessários, sob pena de se causar ônus desnecessário ao órgão de Polícia Judiciária:
Artigo 47. Se o Ministério Público julgar necessários maiores esclarecimentos e documentos complementares ou novos elementos de convicção, deverá requisitá-los, diretamente, de quaisquer autoridades ou funcionários que devam ou possam fornecê-los.
Outro ponto que carece de análise aqui é a questão da cota ministerial para fins de indiciamento, cujo entendimento pacífico já se demonstra no sentido do não cabimento, uma vez que se trata de ato privativo da autoridade policial, que, da mesma forma, não vincula ao órgão ministerial para o oferecimento da denúncia.
Em síntese conclusiva, em conformidade com o quadro constitucional e legal existente, nota-se que o poder de requisição de diligências do parquet no curso do inquérito policial somente pode ser exercido nos dois momentos bem definidos: anteriormente à instauração do inquérito policial, sem qualquer interferência em outros aspectos discricionários do delegado de polícia; no segundo momento, entre a confecção do relatório conclusivo e a propositura da ação penal. Contudo, as requisições de diligências após essa fase devem apresentar as seguintes características para serem reputadas legítimas:
I) natureza investigatória criminal: consiste em diligências que devam ter a necessária intermediação da Polícia Judiciária, a quem cabe a exclusividade de atuação investigatória no inquérito policial, excetuando-se, assim, diligências que tenham por objetivo a instrução de procedimentos civis;
II) imprescindibilidade para o oferecimento da denúncia: consiste na diligência que tenha como escopo a identificação da materialidade e autoria delitiva dentro do contexto investigativo;
III) domínio da polícia judiciária: consiste na diligência que tenha como destinatário final a Polícia Judiciária, devendo a requisição, caso assim não ocorra, ser encaminhada diretamente ao órgão que possua a informação, documento ou qualquer outro elemento de informação que seja pertinente.
IV) fundamentação: as requisições de diligências devem ser fundamentadas e não meramente pontuadas no poder requisitório genérico previsto no artigo 129 da Constituição Federal. A fundamentação é elemento essencial a fim de que se possa ser realizado o controle de legalidade do ato. Assim, caso o delegado de polícia entenda incabível a diligência requisitada, por ausência de fundamento legal, deve submeter o feito ao controle judicial de legalidade.
O panorama contemporâneo da investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia, delineado pelo texto constitucional e pela Lei 12830/13, confere clara função investigatória à autoridade policial, com evidentes marcas de exclusividade, autonomia e discricionariedade. Por outro lado, é dada ao órgão ministerial uma função fiscalizadora, de notável importância, colocando-o como órgão de controle de legalidade da Polícia Judiciária, seja por meio do seu poder requisitório, seja por meio de manifestações posteriores às representações do delegado de polícia, emanados por meio de parecer.
Essa divisão de papéis, pois, é imprescindível para o desempenho de uma persecução penal em completa consonância com os mais basilares preceitos do Estado Democrático de Direito e garantias do indivíduo sujeito à investigação por meio do inquérito policial.
Portanto, ao final de todo o procedimento investigatório, o quadro fático desenhado pelo delegado de polícia deverá se aproximar dos acontecimentos reais, propiciando a responsabilização criminal de uns e a ratificação da inocência de outros, como forma de aplicação dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito, impedindo acusações injustas, arbitrárias e desprovidas de necessidade. A investigação criminal atua, portanto, como o primeiro filtro a evitar um processo penal desnecessário.
Nesse cenário, cabe inicialmente estabelecer o papel do órgão ministerial no que diz respeito à sua atuação em relação às investigações conduzidas pelo delegado de polícia, cujo artigo 129 da Constituição Federal aponta como função “VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais”.
A Lei Complementar 75/93, ato normativo primário que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, aponta, no artigo 38, entre suas funções institucionais, “requisitar diligências investigatórias e instauração de inquérito policial, podendo acompanhá-los e apresentar provas”.
Percebe-se que o órgão ministerial, quanto a sua relação com inquérito policial, não tem disponíveis poderes ou funções que o autorizem a atuar como ator principal no inquérito policial. Cabe-lhe, nos termos legais, funções anômalas, estranhas à capacidade investigatória do delegado de polícia. Não se descuida aqui da decisão no Recurso Extraordinário 593.727 MG, que atribui ao Ministério Público poderes investigatórios, mas se busca tratar do papel do delegado de polícia na condução da investigação criminal consubstanciada no inquérito policial.
A requisição de instauração de inquérito policial, o acompanhamento de sua tramitação, o direito de apresentação de provas e, por fim, a requisição de diligências investigatórias são poderes decorrentes da função fiscalizatória que a lei e o texto constitucional atribuem ao parquet.
A Lei 12.830/13 buscou sedimentar o papel do delegado de polícia na condução do inquérito policial, conferindo-lhe as características de discricionariedade, autonomia e exclusividade para a condução da investigação criminal.
Quanto à discricionariedade, tal característica da atuação do delegado de polícia é evidenciada desde a entrada em vigor do Código de Processo Penal, por meio da redação do artigo 6º, quando coloca, à disposição da autoridade policial, sem caráter de exaustividade ou vinculação, inúmeras diligências investigatórias que, conforme juízo de oportunidade e conveniência, poderão ser adotadas para alcance da apuração de autoria e materialidade. A Lei 12.830/13, por sua vez, dispôs que “durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos”.
O atributo da autonomia da autoridade policial está instituído no artigo 2º, parágrafo 1º da referida lei, quando é colocada como incumbência do delegado de polícia a condução da investigação criminal. O termo “condução” pressupõe a direção, o exercício de toda a atividade investigatória desenvolvida no decurso do inquérito policial, o que implica a inadmissibilidade de interferências internas, dentro do próprio órgão da Polícia Judiciária, ou externas, provenientes de demais participantes da persecução penal, impedindo-os de se imiscuir na esfera decisória do delegado de polícia.
Por fim, no que toca ao atributo da exclusividade, observa-se que a lei atribui ao delegado de polícia a privatividade para o indiciamento por meio da Lei 12.830/13. Ora, se a análise da materialidade e indícios de autoria é privativa do delegado de polícia, somente a este cabe, ao término da investigação, apontar a ocorrência de infração penal e sua eventual autoria.
A condução do inquérito policial, conferido com exclusividade, autonomia e discricionariedade, impede que outros órgãos ou entes se manifestem na fase investigatória da persecução penal de modo a se imiscuir no juízo de oportunidade e conveniência do delegado de polícia.
O órgão ministerial, por sua vez, deve ser incumbido da função fiscalizatória sobre a investigação criminal, exercendo estritamente um controle de legalidade em todo o decurso da fase apuratória. Esse papel apresenta-se fundamental, sobretudo a fim de evitar-se o nefasto desvirtuamento da investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia. Nesse cenário, assume papel de suma importância o controle externo da atividade policial exercido pelo parquet.
Dessa forma, a interação entre o órgão ministerial, enquanto titular da ação penal e custos legis, e o delegado de polícia, enquanto presidente do inquérito policial, deve observar os contornos de seus papéis em três momentos distintos da investigação criminal:
a) fase anterior à instauração da investigação;
b) fase de tramitação do inquérito policial (da instauração até o relatório);
c) fase posterior à finalização das apurações.
Na fase anterior ao início da investigação criminal, situada entre a prática delitiva e a instauração do inquérito policial, o órgão ministerial desempenha sua função fiscalizatória por meio da requisição de instauração do inquérito policial. Em virtude do princípio da obrigatoriedade, inexiste juízo de oportunidade e conveniência do delegado de polícia para decidir se instaura ou não o inquérito policial, salvo se a requisição é manifestamente ilegal.
A requisição da instauração do inquérito policial, como dito, apresenta caráter vinculado, devendo ser atendida pela autoridade policial. Apesar disso, o conteúdo da portaria, peça que formaliza o início da investigação criminal, é campo discricionário e exclusivo do delegado de polícia, a quem cabe definir a capitulação legal e as diligências investigatórias iniciais. É vedado ao órgão ministerial se imiscuir neste campo sob pena de assumir, por via oblíquas, a presidência/condução da investigação criminal, o que encontra expressa vedação na Lei 12.830/13 e na jurisprudência dos tribunais superiores. Eventuais diligências referidas na requisição de instauração, em que pese posição contraria de Aury Lopes Junior e Ricardo Jacobsen Gloeckner[1], devem ser entendidas como sugestões de diligências, sempre submetidas ao juízo do presidente da investigação, a quem compete analisar sua conveniência e oportunidade.
No curso do inquérito policial, compreendido entre a portaria de instauração e a confecção do relatório final, cabe unicamente ao delegado de polícia decidir sobre a diligência investigatória empregada, momento adequado para execução, técnicas de inteligência necessárias e teses jurídicas que se mostrarão úteis para a apuração dos fatos. Essas variáveis localizam-se na órbita do juízo de oportunidade e conveniência do delegado de polícia, campo de mérito administrativo. Cabe destacar que o parquet no curso do inquérito policial, citando novamente Aury e Ricardo Gloeckner[2], tem presença “secundária, acessória e contingente, pois o órgão encarregado de dirigir o inquérito policial é a polícia judiciária”. Caso pretenda dirigir a investigação criminal, deve o órgão ministerial fazê-lo mediante seus procedimentos próprios de investigação (já considerados válidos pelo Supremo Tribunal Federal), e não pelo inquérito policial.
Ademais, as diligências requeridas pelo parquet no curso da investigação devem ser compreendidas à luz do artigo 14 do CPP, que estabelece que “o ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade”, sob pena de clara afronta ao princípio de paridade de armas, que deve ser aplicado também à fase do inquérito policial.
A requisição de diligências investigatórias pelo órgão geraria, de forma transversa e arbitrária, uma usurpação do papel de condutor da investigação. Em regra, a execução de diligências investigatórias é feita pelo delegado de polícia, seja diretamente ou por meio de seus agentes, independente de manifestação ministerial e de prévia autorização judicial, utilizando-se para isso do poder requisitório, por meio do qual são trazidas aos autos o resultado de perícias, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos, conforme prescreve o artigo 2º, parágrafo 2º da Lei 12.830/13.
Em caráter excepcional, no caso de medidas invasivas, a execução de diligências investigatórias pelo delegado de polícia submetidas à prévia autorização judicial, o Ministério Público fiscaliza a regularidade da medida, exarando, para isso, parecer de legalidade da medida.
Por fim, um terceiro momento do inquérito policial se dá com o oferecimento do relatório, que marca o encerramento da atuação da polícia judiciária, uma vez que a autoridade policial reconhece que foram exauridas as diligências investigatórias disponíveis e adotadas as teses jurídicas mais adequadas para a busca do esclarecimento dos fatos. Abre-se, a partir de então, espaço para a apreciação do resultado da investigação pelo órgão ministerial.
A partir da apresentação do relatório, o papel de protagonista da persecução penal é transferido do delegado de polícia, presidente da investigação criminal, para o Ministério Público, titular da ação penal, a quem cabe promover a processualização do feito por meio da apresentação da peça acusatória.
Aqui reside o instante em que se mostra cabível a requisição das diligências investigatórias em face do delegado, enquanto presidente da investigação, sem que ocorra disfunção ou desvirtuamento dos órgãos da persecução penal. Não obstante tal autorização, a requisição de diligências investigatórias deve obedecer aos limites legais e constitucionais impostos ao exercício do poder requisitório ministerial, sob pena de ser negada, de forma legítima, pela autoridade policial o cumprimento das diligências.
Estabelecido o momento de seu cabimento no curso do inquérito policial, é necessário definir os limites do poder requisitório a fim de se evitar abusos ou ilegalidades. O artigo 16 do CPP traz uma primeira limitação, tornando a requisição cabível somente quando a diligência for imprescindível para o oferecimento da denúncia:
Sendo assim, nota-se que a diligência deve ter por finalidade a construção da materialidade e dos indícios de autoria relacionados aos fatos sob apuração, já que são esses os requisitos para o oferecimento da denúncia, não sendo cabível o uso da requisição para obtenção de informações destoantes do contexto investigativo ou para instruir indiretamente procedimentos de natureza cível ou administrativa.
Por conseguinte, não é pertinente a requisição para que a autoridade policial expeça ofícios a outros órgãos nem determine a execução de outros atos de natureza cartorária ou sem conexão com a atividade-fim da Polícia Judiciária, sob o risco de tornar ilegítimo o exercício do seu poder requisitório. Observa-se, portanto, que a diligência deve ser imprescindível ao oferecimento da denúncia.
O artigo 47 do CPP impede ainda que parquet faça requisições à autoridade policial quando as informações complementares estejam na posse de outra instituição, vedando que se utilize da intermediação de outra instituição para a obtenção dos elementos de convicção que julgar necessários, sob pena de se causar ônus desnecessário ao órgão de Polícia Judiciária:
Artigo 47. Se o Ministério Público julgar necessários maiores esclarecimentos e documentos complementares ou novos elementos de convicção, deverá requisitá-los, diretamente, de quaisquer autoridades ou funcionários que devam ou possam fornecê-los.
Outro ponto que carece de análise aqui é a questão da cota ministerial para fins de indiciamento, cujo entendimento pacífico já se demonstra no sentido do não cabimento, uma vez que se trata de ato privativo da autoridade policial, que, da mesma forma, não vincula ao órgão ministerial para o oferecimento da denúncia.
Em síntese conclusiva, em conformidade com o quadro constitucional e legal existente, nota-se que o poder de requisição de diligências do parquet no curso do inquérito policial somente pode ser exercido nos dois momentos bem definidos: anteriormente à instauração do inquérito policial, sem qualquer interferência em outros aspectos discricionários do delegado de polícia; no segundo momento, entre a confecção do relatório conclusivo e a propositura da ação penal. Contudo, as requisições de diligências após essa fase devem apresentar as seguintes características para serem reputadas legítimas:
I) natureza investigatória criminal: consiste em diligências que devam ter a necessária intermediação da Polícia Judiciária, a quem cabe a exclusividade de atuação investigatória no inquérito policial, excetuando-se, assim, diligências que tenham por objetivo a instrução de procedimentos civis;
II) imprescindibilidade para o oferecimento da denúncia: consiste na diligência que tenha como escopo a identificação da materialidade e autoria delitiva dentro do contexto investigativo;
III) domínio da polícia judiciária: consiste na diligência que tenha como destinatário final a Polícia Judiciária, devendo a requisição, caso assim não ocorra, ser encaminhada diretamente ao órgão que possua a informação, documento ou qualquer outro elemento de informação que seja pertinente.
IV) fundamentação: as requisições de diligências devem ser fundamentadas e não meramente pontuadas no poder requisitório genérico previsto no artigo 129 da Constituição Federal. A fundamentação é elemento essencial a fim de que se possa ser realizado o controle de legalidade do ato. Assim, caso o delegado de polícia entenda incabível a diligência requisitada, por ausência de fundamento legal, deve submeter o feito ao controle judicial de legalidade.
O panorama contemporâneo da investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia, delineado pelo texto constitucional e pela Lei 12830/13, confere clara função investigatória à autoridade policial, com evidentes marcas de exclusividade, autonomia e discricionariedade. Por outro lado, é dada ao órgão ministerial uma função fiscalizadora, de notável importância, colocando-o como órgão de controle de legalidade da Polícia Judiciária, seja por meio do seu poder requisitório, seja por meio de manifestações posteriores às representações do delegado de polícia, emanados por meio de parecer.
Essa divisão de papéis, pois, é imprescindível para o desempenho de uma persecução penal em completa consonância com os mais basilares preceitos do Estado Democrático de Direito e garantias do indivíduo sujeito à investigação por meio do inquérito policial.
[1] Investigação Preliminar no Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 276-277.
[2] Op. Cit., p. 250.
*Márcio Adriano Anselmo é delegado da Polícia Federal, doutor pela Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela UCB e especialista em investigação criminal pela ESP/ANP e em Direito do Estado pela UEL.
Fonte: Site da Escola Superior da Polícia Civil do Paraná http://www.escolasuperiorpoliciacivil.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=2292&tit=A-presidencia-do-inquerito-policial-e-a-requisicao-de-diligencias