Entrou em vigor a Lei
13.432/17, com o propósito de disciplinar a atividade do detetive
particular. Definiu sua natureza como não criminal (artigo 2º), exigiu
contrato escrito com estipulação de honorários e prazo (artigos 7º e 8º)
e confecção de relatório do serviço (artigo 9º), além de estabelecer
vedações (artigo 10), deveres (artigo 11) e direitos (artigo 12).
Possibilitou ainda a colaboração do detetive profissional com a
investigação policial mediante autorização do contratante e aceite do
delegado de polícia (artigo 5º). A lei não instituiu carteira de
identidade profissional (como desejava a versão inicial do projeto de
lei) nem concedeu porte de arma de fogo ao detetive. A regulamentação é
complementada pela Lei 3.099/57 e pelo Decreto 50.532/61, que não foram
revogados expressa ou tacitamente pela Lei 13.432/17.
O detetive
particular pode atuar “por conta própria ou na forma de sociedade civil
ou empresarial” (artigo 2º). Caso opte por constituir sociedade, deve
estar registrada na Junta Comercial do estado respectivo (artigo 1º da
Lei 3.099/57), bem como na delegacia de polícia do local de atuação
(artigo 1º do Decreto 50.532/61).
A atuação do detetive é restrita
territorialmente. Não altera essa constatação o fato de ser direito do
detetive (artigo 12, I) exercer a profissão “em todo o território
nacional”, pois isso deve ser feito “na forma desta Lei”, ou seja,
observando a exigência de estipulação contratual do “local em que será
prestado o serviço” (artigo 8º, V).
A legislação não criou a
figura de investigador privado, eis que a atuação do detetive particular
deve ser extrapenal. Sua função é de coleta de informações de natureza
não criminal, limitando-se ao “esclarecimento de assuntos de interesse
privado do contratante” (artigo 2º), que constituem, ao menos em
princípio, irrelevantes penais (tais como infidelidade conjugal e
desaparecimento de pessoas ou animais).
Sua atividade é movida
pelo lucro (artigo 8º, VI), e não pelo interesse público. Por isso, foi
vetado o dispositivo (artigo 12, V) que o definia como “profissional
colaborador da Justiça e dos órgãos de polícia judiciária”, justamente
para evitar “confusão entre atividade pública e privada, com prejuízos a
ambas e ao interesse público”.
Com efeito, a investigação
criminal continua sendo atividade essencial e exclusiva de Estado, em
homenagem ao princípio da oficialidade, o que significa dizer que as
funções de apuração de infrações penais e de polícia judiciária são
exercidas pela polícia judiciária, com a presidência do procedimento
policial nas mãos do delegado de polícia (artigo 144 da CF e artigo 2º,
parágrafo 1º da Lei 12.830/13). Eventual contrato que ajustar a
investigação criminal como objeto é nulo em razão da expressa vedação
legal (artigo 2º).
E nem mesmo a reunião de dados de interesse
privado é exclusiva do detetive profissional, conforme consignam os
vetos aos artigos 1º e 3º, podendo perfeitamente ser exercida, por
exemplo, por um advogado.
A lei não empregou os termos investigação ou apuração, preferindo coleta de dados e informações
(artigos 2º, 9º e 10, III e V), deixando claro que não se confunde com a
investigação criminal ou tampouco com a atividade de inteligência.
Diferencia-se
da investigação criminal, pois o detetive profissional não possui poder
de polícia (não pode condicionar a liberdade e a propriedade dos
indivíduos mediante ações preventivas e repressivas). A coleta
particular de dados é desprovida dos atributos da discricionariedade,
autoexecutoriedade e coercibilidade, inexistindo supremacia do seu agir
em relação ao particular, ao contrário da atuação do membro da polícia
judiciária (artigo 144 da CF, artigo 2º, parágrafo 2º da Lei 12.830/13 e
artigo 6º do CPP).
Também se distingue da atividade de
inteligência, executada para obtenção de dados negados de difícil acesso
e/ou para neutralizar ações adversas marcadas por dificuldades e/ou
riscos iminentes. A compilação privada de elementos de convicção não
abrange o emprego de pessoal, material e técnicas especializadas
(Portaria 2/16 do Ministério da Justiça, que aprovou a Doutrina Nacional
de Inteligência de Segurança Pública).
Ou seja, o detetive está
longe de ser um policial privado ou um agente de inteligência
particular. Age como um despachante do cliente, arrecadando informações
de natureza não criminal, como pode ser feito por qualquer pessoa;
inclusive pelo contratante, que todavia preferiu a comodidade de pagar
para que alguém faça esse serviço em seu lugar. Isto é, cuida-se de um
contrato específico de prestação de serviços (sinalagmático, oneroso e intuitu personae).
A Lei 13.432/17 não conferiu ao prestador do serviço qualquer
prerrogativa ou vantagem na coleta de dados, pelo contrário, trouxe mais
exigências para a formalização do contrato e admitiu sua colaboração
somente dentro de rígidos limites.
Sua atuação é apenas
complementar. Não pode executar técnicas ordinárias de investigação
(tais quais oitivas e quebra de sigilo de dados) nem meios
extraordinários de obtenção de prova (como infiltração policial comum ou
virtual). Também não tem autorização para implementar ações de
inteligência de segurança pública (a exemplo de vigilância e
entrevista).
O detetive não pode participar diretamente de
diligência policial (artigo 10, IV). Além disso, os recursos de pesquisa
permitidos ao contratado são apenas aqueles disponíveis a qualquer
cidadão, que não podem atingir direitos fundamentais alheios (artigo 3º
do Decreto 50.532/61), sendo um de seus deveres justamente “respeitar o
direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem das pessoas”
(artigo 11, II).
Outrossim, o detetive pode apenas pesquisar
informações em fontes abertas (tais quais redes sociais e sites de
órgãos públicos e privados), em locais públicos (como vias públicas e
áreas não restritas de estabelecimentos) e sem molestar envolvidos
(vítima, testemunha ou suspeito). Sua atuação se dá por meio da sugestão
de fontes de prova (a exemplo de indicação de testemunha, localização
de objeto e exibição de documento e apontamento de dados). A efetiva
obtenção do meio de prova (intimação e oitiva da testemunha, apreensão e
perícia na coisa e requisição de dados) será feita pela polícia
judiciária, sob o manto estatal.
Não vingou a redação original do
Projeto de Lei 1.211/11, que autorizava o detetive a realizar
investigação criminal, por meio de diligências como “relatórios de
investigações privadas, juntando descrições, croquis, gráficos,
fotografias, filmes e gravações magnéticas” referentes a “situação
hipotética envolvendo fato, criminoso ou não”. Nessa esteira, o
relatório a que faz menção o artigo 9º consiste em simples prestação de
contas ao contratante em relação ao serviço realizado, e não
documentação de diligência de investigação criminal, razão pela qual não
deve ser juntado no procedimento policial.
A limitação do
trabalho do detetive é essencial para garantir a higidez da persecução
penal e evitar a perda de uma chance probatória, além de preservar a
própria integridade física do detetive, que atua desarmado, sem
identidade profissional e movido por interesse financeiro.
A atuação do detetive fora dos limites enseja responsabilidade pessoal e ilicitude de provas.
O
detetive particular que exceder aos limites da chancela autorizadora do
delegado de polícia será responsabilizado por usurpação de função
pública (artigo 328 do CP), pois não abarcado pela excludente de
ilicitude de exercício regular de direito (artigo 23, III do CP),
admitindo-se cumulação de outras infrações penais como violação de
domicílio (artigo 150 do CP), lesão corporal (artigo 129 do CP),
interceptação telefônica clandestina (artigo 10 da Lei 9.296/96) ou
perturbação da tranquilidade (artigo 65 da LCP).
Ademais, se a
obtenção da informação pelo detetive ocorrer mediante violação de normas
legais ou constitucionais (realizando ato típico de investigação
criminal ou inteligência de segurança pública, em vez de se limitar a
pesquisar em locais públicos e fontes abertas), a prova será ilícita e
não poderá ser aproveitada (artigo 5º, LVI da CF e artigo 157 do CPP).
Excepcionalmente,
a ilicitude de prova clandestina será excluída por aplicação da máxima
da proporcionalidade, quando a colheita ilícita da prova se der para o
suspeito se defender e provar sua inocência (prova ilícita pro reo)[1], ou a vítima proteger seu bem jurídico ofendido ou colocado em risco (prova ilícita em legítima defesa)[2], podendo se valer de auxílio técnico do detetive[3]. Sublinhe-se: apenas como desvio da regra geral.
Como
regra, o detetive atua em situação penalmente atípica (a exemplo de
levantamento da vida pregressa de um postulante a cargo em empresa,
verificação da idoneidade de contratante ou constatação das companhias
de um filho). Entretanto, muitas situações (como o inadimplemento
contratual e o desaparecimento de pessoa) se encontram no limbo entre o
que é extrapenal e penal; ocasiões em que geralmente a polícia
judiciária possui dados precários que não se qualificam como indícios
mínimos aptos a ensejar a instauração de inquérito policial.
Nesse
contexto sobressai a verificação da procedência das informações (artigo
5º, parágrafo 3º do CPP). Possui a finalidade de comprovação da
verossimilhança da notitia criminis apresentada[4], evitando a instauração despropositada de inquérito policial se não houver evidência mínima da infração penal[5].
Permite a confirmação ou não da notícia de crime, de modo que a
instauração do inquérito policial ocorrerá apenas se diante de início de
justa causa (juízo de possibilidade), sob pena de trancamento[6].
Nessa
vereda, a colaboração do detetive, quando autorizada, possui como
principal utilidade servir de elemento de convicção que permita a
deflagração do inquérito policial, e não instruir um procedimento
policial já instaurado. Isso porque, se o inquérito policial está em
curso, é sinal de que o delegado já obteve os mínimos dados necessários e
a polícia judiciária já definiu caminho investigativo para extrair os
meios de prova, sendo o aprofundamento da investigação incompatível com a
possibilidade limitada de atuação do detetive. Apenas excepcionalmente
deve ser admitida a participação do contratado para indicar fontes de
prova ainda não conhecidas do Estado-Investigação.
Além do mais, a
atuação do advogado já é suficiente para tutelar os direitos do
investigado ou da vítima no inquérito policial. O trabalho que o
detetive particular poderia exercer será melhor realizado pelo
causídico, já que o rol de ferramentas do advogado em muito excede ao do
detetive particular, a exemplo da apresentação de razões e quesitos
(artigo 7º, XXI da Lei 8.906/94) e acesso às diligências concluídas do
inquérito policial (artigo7º, parágrafo 11 do Estatuto da OAB e Súmula
Vinculante 14 do STF), bem como requerimento de diligências (artigo 14
do CPP).
O detetive sequer pode requerer diligências em nome do
cliente (artigo 14 do CPP), pois celebra contrato de prestação de
serviços de coleta de dados (artigos 2º e 8º da Lei 13.432/17), e não de
mandato (artigo 653 do CC e artigo 1º, II do Estatuto da OAB) que o
habilitaria a pleitear perante a polícia judiciária.
Em epítome, a
partir da instauração do inquérito policial, desaparece a legitimidade
do detetive particular, ganhando relevo a atuação do advogado na defesa
dos interesses de seu cliente.
A colaboração do detetive
profissional com a investigação policial deve ser precedida de
autorização do cliente e concordância do delegado de polícia (artigo
5º).
A anuência do contratante deve ser expressa (por escrito) e
específica (documento à parte, não bastando cláusula genérica no
contrato). Isso porque o pacto negocial possui natureza não criminal e
fugiria ao espírito da lei uma autorização geral para colaboração
criminal que não passasse pelo crivo especial do cliente.
Intitulamos o documento que formaliza a colaboração de termo de colaboração particular circunstanciada. O nome do documento já permite a identificação das principais características:
a)
termo de colaboração: autorização escrita do delegado de polícia para
que o detetive auxilie a polícia judiciária provendo elementos mínimos
iniciais;
b) particular: o detetive
atua em caráter privado, preservando a oficialidade da investigação
criminal e a presidência do procedimento policial nas mãos do delegado
de polícia (sem qualquer protagonismo do prestador de serviço);
c)
circunstanciada: a atuação do detetive deve ser especificada do modo
mais detalhado possível. É restrita, não podendo o detetive participar
diretamente de diligência policial (artigo 10, IV) e só podendo realizar
pesquisas disponíveis a qualquer cidadão, sem imperatividade e sem
atingir direitos fundamentais alheios (artigo 11, II e artigo 3º do
Decreto 50.532/61).
Caso já disponha de
informações, o detetive deve imediatamente fornecê-las indicando as
fontes de prova (pessoas e coisas) de onde a polícia judiciária possa
extrair os elementos de convicção. Se não dispuser dos dados, a busca
pode ser feita em determinado lapso temporal fixado pelo delegado (que
não irá extrapolar o prazo estabelecido no contrato firmado pelo
detetive e seu cliente para atuação não criminal — artigo 8º, II).
Deve
ficar registrado no termo qual é o interesse do cliente para motivar a
proposição de colaboração na investigação policial, seja na condição de
vítima ou suspeito. Não pode o detetive colaborar com o Estado quando
não houver interesse particular a ser tutelado (como no caso de crimes
vagos).
Além disso, o detetive não pode
atuar em investigação policial relativa a crimes violentos, ocasião em
que deve não só se abster de colaborar com a polícia judiciária, mas
inclusive renunciar ao serviço contratado face ao risco à sua
integridade física ou moral (artigo 12, III).
São anexos
obrigatórios do termo: a) autorização expressa do contratante, que deve
ser feita por escrito; b) contrato de prestação de serviços do detetive
para seu cliente (artigo 8º), que precisa conter a qualificação
completa, natureza da coleta de dados não criminais (especificação do
problema, tal qual infidelidade conjugal), local de coleta de dados,
prazo, relação de documentos e dados fornecidos pelo contratante e
estipulação de honorários.
Não se exige concordância do Ministério Público nem chancela judicial.
A
ação penal do crime não afeta a possibilidade de colaboração. Em crimes
de ação penal pública condicionada ou privada, caso o contratante seja a
vítima, sua autorização já constituirá a condição de procedibilidade
para deflagração do procedimento policial.
A autoridade de polícia
judiciária pode exercer juízo de retratação e voltar atrás em seu ato
discricionário para determinar a qualquer tempo a cessação da
colaboração em curso (artigo 5º, parágrafo único da Lei 13.432/17); o
contratado também deve interromper o auxílio em caso de extinção do
contrato (pressuposto da colaboração) em razão da rescisão por
inadimplemento ou força maior (artigo 607 do CC).
A participação
do detetive particular no curso da investigação policial é uma
discricionariedade do delegado de polícia, e não uma prerrogativa
profissional. Registre-se ainda que não há qualquer menção sobre a
possibilidade de tal profissional auxiliar no curso do processo
criminal.
É vedado ao detetive divulgar os meios e os resultados
da coleta de dados e informações a que tiver acesso no exercício da
profissão, salvo em defesa própria (artigo 10, III).
E é seu dever
profissional preservar o sigilo das fontes de informação (artigo 11,
I). Obviamente esse segredo não pode impedir o fornecimento de
documentos e indicação de pessoas e coisas pelo detetive ao delegado, se
autorizado a colaborar com a investigação criminal.
É crível
concluir que a lei não promoveu alargamento na utilização da
investigação criminal privada (e sua espécie investigação criminal
defensiva)[7],
ao contrário do que ocorreria com aprovação do novo Código de Processo
Penal (Projeto de Lei 156/09, artigo 13), que faculta ao investigado
entrevistar pessoas. Na atual sistemática, a vítima ou suspeito não pode
produzir a prova com imperatividade.
Para que a informação obtida
pelo particular se revista de idoneidade a embasar a persecução penal,
já que não possui fé pública, deve ser submetida à supervisão estatal,
sem a qual não há como assegurar a confiabilidade dos relatos[8].
Incide a chamada teoria da canalização, segundo a qual o elemento de
convicção, para ser considerado válido e aproveitável na persecução
criminal, deve obter a chancela estatal, dando verniz de oficialidade.
Além disso, a ação instrutória do particular não pode obstruir a
investigação policial por meio de inovação artificiosa do estado de
lugar, coisa ou pessoa, sob pena de crime (artigo 347 do CP).
[1] STF, RE 402.717, rel. min Cezar Peluso, DJ 2/12/2008.
[2] STJ, REsp 1.026.605, rel. min. Rogerio Schietti Cruz, DJ 13/5/2014.
[3] Para gravação de conversa telefônica ou ambiental, por exemplo.
[4] STJ, RHC 14.434, rel. min. Jorge Scartezzini, DJ 1/4/2004.
[5] COSTA, Adriano Sousa; SILVA, Laudelina Inácio da. Prática policial sistematizada. Niterói: Impetus, 2016.
Fonte: Consultor Jurídico
[6] STF, HC 132.170 AgR, rel. min Teori Zavascki, DJ 16/2/2016.
[7] MACHADO, André Augusto Mendes. Investigação criminal defensiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
[8] STF, AP 912, rel. min. Luiz Fux, DJ 14/2/2017.
[2] STJ, REsp 1.026.605, rel. min. Rogerio Schietti Cruz, DJ 13/5/2014.
[3] Para gravação de conversa telefônica ou ambiental, por exemplo.
[4] STJ, RHC 14.434, rel. min. Jorge Scartezzini, DJ 1/4/2004.
[5] COSTA, Adriano Sousa; SILVA, Laudelina Inácio da. Prática policial sistematizada. Niterói: Impetus, 2016.
Fonte: Consultor Jurídico
[6] STF, HC 132.170 AgR, rel. min Teori Zavascki, DJ 16/2/2016.
[7] MACHADO, André Augusto Mendes. Investigação criminal defensiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
[8] STF, AP 912, rel. min. Luiz Fux, DJ 14/2/2017.