Por um tempo, o hábito se tornou tão incomum, que algumas civilizações tomavam apenas um banho por ano
Bruno Vieira Feijó
A humanidade melhora com o passar dos séculos, certo? Nem sempre.
Prova disso é o que ocorreu com um de nossos hábitos mais comuns, o
banho. Durante a Idade Média, os ocidentais abandonaram os sofisticados
rituais de limpeza da Antiguidade e mergulharam numa profunda sujeira.
Principalmente por causa da religião, o homem medieval comum achava
suficiente tomar um banho por ano. Foi preciso muito tempo – e alguns
bons exemplos dos povos orientais e indígenas – para que voltássemos às
nossas asseadas origens.
Acredita-se que todos os povos, desde tempos imemoriais, tenham
praticado alguma forma de higiene pessoal. Os primeiros registros do ato
de se banhar individualmente pertencem ao antigo Egito, por volta de
3000 a.C. Os egípcios realizavam rituais sagrados na água e tomavam ao
menos três banhos por dia, dedicados a divindades como Thot, deus do
conhecimento, e Bes, deus da fertilidade.
“Mais do que limpar o corpo, eles presumiam que a água purificava a
alma”, diz o egiptólogo francês Christian Jacq, fundador do Instituto
Ramsés, em Paris. “A crença valia tanto para a realeza, cortejada com
óleos aromáticos e massagens aplicadas pelos escravos, quanto para as
populações mais pobres, que recorriam inclusive a profissionais de rua
quando não conseguiam tratar da própria beleza.” O apreço pela higiene é
o motivo ao qual arqueólogos atribuíram a sobrevivência dos egípcios às
pragas e doenças que assolaram a Antiguidade.
A Grécia foi outro local em que os banhos prosperaram. Em Cnossos e
Faístos, na ilha de Creta, os palácios de 1700 a.C. a 1200 a.C,
surpreenderam por suas avançadas técnicas de distribuição da água. “Todo
banquete que precisava ser luxuoso incluía uma sessão de banho para os
convidados”, explica Georges Vigarello, professor de Ciências da
Educação da Universidade de Paris-5.
Embora os gregos tenham iniciado a prática dos banhos públicos no
Ocidente, os pioneiros nos balneários coletivos foram os babilônios. A
diferença é que, na Grécia, o banho não era motivado apenas pela higiene
e espiritualidade. Entre 800 a.C. e 400 a.C., o esporte,
particularmente a natação, era um dos três pilares da educação juvenil –
ao lado das letras e da música. Bom cidadão era aquele que sabia ler e
nadar, como comprovam imagens presentes em centenas de vasos de cerâmica
pintados naquela época.
Os romanos herdaram muito da cultura da Grécia, incluindo a adoração
pelo banho. Mas, entre eles, esse hábito tomou proporções inéditas.
Enquanto construíam um dos maiores impérios de todos os tempos, os
romanos levavam a suntuosidade de suas termas (enormes balneários
públicos) aos mais diversos lugares. Por causa disso, algumas cidades
europeias ganharam nomes que incluem, literalmente, a palavra “banho” – é
o caso de Bath, na Inglaterra, Baden Baden e Wiesbaden, na Alemanha, e Aix-le-Bains,
na França. Mas as maiores termas ficavam mesmo na capital do império,
Roma: eram as de Caracala, inauguradas em 217, e as de Diocleciano, do
ano 305. Esses edifícios, cujos nomes homenageavam imperadores, tinham
capacidade para receber, respectivamente, 1.600 e 3.200 pessoas.
Romanas nas termas da Pompéia / Wikimedia Commons
A engenharia romana teve que se desdobrar para acompanhar o frenesi
dos banhos. Na onda das termas surgiu o hipocausto, uma espécie de
assoalho construído sobre câmaras de gás subterrâneas. Esse sistema
ajudava a esquentar os cômodos e mantê-los climatizados. Cada salão das
termas era decorado com estatuetas e mosaicos. Ao redor de um pátio
central, havia uma espécie de sauna, um vestiário e piscinas de água
quente, morna, fria e ao ar livre. Os complexos de banho do Império
Romano tinham ainda jardins, bibliotecas e restaurantes (como se fossem
antepassados dos spas e resorts de hoje).
As visitas diárias às termas tinham fundo religioso, já que o banho
público era um ato de adoração à deusa Minerva. E o costume não era
restrito às classes mais abastadas. Boêmios, prostitutas, imperadores,
filósofos, políticos, velhos e crianças, todos se banhavam no mesmo
espaço, sem constrangimento. Ponto de encontro e de troca de
informações, era o lugar onde um aristocrata podia medir sua
popularidade de acordo com a quantidade de cumprimentos que recebia. “Em
épocas de plebiscito, os plebeus nem precisavam pagar a pequena taxa
que geralmente era cobrada. Os custos da entrada eram cobertos pelos
ricos e nobres”, escreveu o historiador francês Jérôme Carcopino no
livro Aspects Mystiques de la Rome Païenne (“Aspectos místicos da Roma pagã”).
Prazeres perdidos
A liberdade que os romanos tinham de se banhar e ficar nus em público
foi entrando em declínio à medida que uma nova religião se tornava
popular por todo o império. Era o cristianismo, que pregava a castidade e
se tornou a crença oficial de Roma no ano 380. Menos de um século
depois, o império viria abaixo, junto com vários de seus costumes.
Enquanto isso, a Igreja seguiria cada vez mais forte. Foi a gota d’água
para que os prazeres do banho fossem boicotados durante cinco séculos. ➽
Mania de brasileiro
A higiene dos índios demorou a ser aceita pela elite portuguesa
Obra mostra como a água dominava a vida dos indígenas / Albert Eckout
Quando aportaram por aqui, em 1500, os portugueses se assustaram com a limpeza dos índios, que mergulhavam em rios e no mar até 12 vezes ao dia. Pero Vaz de Caminha, escrivão da esquadra de Cabral, chegou a escrever, surpreso: “São tão limpos e tão gordos e tão formosos que não podem ser mais”. Os portugueses acabaram cedendo aos hábitos dos nativos brasileiros, percebendo que eles eram muito mais saudáveis que os da Europa. Os membros da corte, entretanto, resistiram aos deleites da água, pois estavam acostumados a passar meses sem sequer mudar de camisa. Já os mais humildes aceitaram o banho mais facilmente – começaram lavando os pés diariamente em bacias. “Com o tempo, o rio se tornou extensão da casa. Sem rede encanada, era nele onde se lavavam as roupas, as louças e o corpo”, escrevem Renata Ashcar e Roberta Faria no livro Banho – Histórias e Rituais. No século 18, algumas cidades já usavam a água de poços e chafarizes mantidos pelo Estado. Quando a família real portuguesa chegou ao Brasil, em 1808, fez do Rio de Janeiro o primeiro município a contar com água encanada no país.
➽ Começava
a Idade Média, época em que a cristandade varreu da Europa as termas, o
esporte e outras atividades em que as pessoas se expusessem demais.
Gregório I, o Grande, que foi papa entre 590 e 604, chegou a qualificar o
corpo de “abominável vestimenta da alma” – ou seja, a carne era o
depósito de tudo o que era pecado. Com tantos pudores, o prazer de tomar
banho de corpo inteiro passou a ser visto como um ato de luxúria. Lavar
as mãos e o rosto (às vezes nem isso) bastava. Quando muito, era
aceitável tomar um banho por ano. Um único barril de água servia para
toda a família, sem que a água fosse trocada. “O privilégio do primeiro
mergulho era do homem da casa, enquanto as crianças ficavam por último,
na sopa suja que sobrava”, escrevem Renata Ashcar e Roberta Faria no
livro Banho – Histórias e Rituais.
Sem água corrente, as pessoas se viravam como podiam. A limpeza da
pele era feita friccionando-a com um pano úmido. Mas, mesmo entre os
nobres, o ritual era repetido apenas a cada dois dias. Os cabelos deviam
ser escovados com um tipo de pó que supostamente mantinha os fios
limpos. E, como não podia deixar de ser, era preciso muita maquiagem e
perfume – nas roupas, nos corpos e nos cabelos – para amenizar o mau
cheiro.
Toda essa falta de higiene abriu as portas para epidemias
devastadoras, propagadas principalmente por roedores. Foi o caso da
peste, que matou cerca de 200 milhões de pessoas ao longo da Idade
Média. Ao notar que muitos judeus não pegavam a doença, a Inquisição
chegou a julgá-los e executá-los, acusados de bruxaria. Mas eles, na
verdade, não agiam de má-fé – muito pelo contrário. O que fazia os
judeus serem menos suscetíveis a doenças era uma recomendação religiosa
que seguiam: lavar as mãos antes das refeições e tomar banho ao menos
uma vez por semana.
Escravos do antigo Egito dando banho em seu senhor / Wikimedia Commons
Foi só durante as Cruzadas, as guerras religiosas travadas entre os
séculos 11 e 13, que muitos europeus puderam redescobrir as delícias da
água, na aproximação – ainda que violenta – entre Oriente e Ocidente. É
que, fora dos territórios dominados pela Igreja, onde ocorreram muitos
combates, os banhos públicos da Antiguidade haviam sido mantidos, com
seus rituais e instalações sofisticados. Nas hamans,
casas de banho turco-árabes, os muçulmanos aproveitavam o prazer de
alternar águas quentes e frias. Sessões de banhos completos incluíam
depilação, massagem, hidratação, branqueamento dos dentes e maquiagem –
ritual que, até hoje, é seguido meticulosamente. Os cavaleiros cristãos
que partiram para o Oriente com a missão de tomar a Terra Santa dos
muçulmanos não se fizeram de rogados. “Não só passaram a se banhar por
lá mesmo, como espalharam pela Europa a prática de jogar água pelo corpo
quando retornavam dos combates”, contam Renata Ashcar e Roberta Faria. A
certa altura, a atitude contagiou o restante da população européia
medieval e alguns banhos públicos chegaram a reabrir as portas.
Nem só aos sábados
Depois do fim da Idade Média, a religião voltou a suprimir os banhos
no Ocidente. Nos séculos 16 e 17, irredutíveis cristãos bradavam que a
água dilatava os poros da pele, por onde a saúde escaparia e o mal
penetraria, em formas como a friagem e os germes. Todo mundo acreditou
nisso, incluindo os médicos. E, enquanto nações como Portugal e Espanha
descobriam, na América, populações que amavam tomar banho, os europeus
voltavam para o mundo da sujeira.
Existiam algumas medidas de higiene, é verdade. Mas elas não eram lá
essas coisas. Antes ou depois de qualquer atividade física e após as
refeições enxugava-se a pele com um pano e simplesmente mudava-se de
camisa. Supunha-se que a roupa branca agia como “esponja” e absorvia a
sujeira. Assim, trocar de roupa passou a ser sinônimo de se lavar – e,
para se sentir limpas, as pessoas usavam punhos e colarinhos impecáveis.
A privação de água durou até o século 18, quando se provou
definitivamente que as doenças se originavam não do banho, mas da falta
dele. O iluminismo, que celebrava a razão e defendia a tese de que o
mundo deveria ser esclarecido pela ciência, ajudou a fazer do ato de se
lavar o símbolo da saúde. Banhos públicos para higiene, esporte e
terapia foram, aos poucos, sendo reabilitados.
Mas, após anos de religiosos dizendo o contrário, não foi todo mundo
que voltou a tomar banho, mesmo com insistentes conselhos médicos.
Quando a célebre rainha Vitória subiu ao trono, em 1837, ainda não havia
local para banho no palácio de Buckingham, sede da coroa inglesa. Até
os anos 1870, eram raras as casas ocidentais que tinham um cômodo para
seus habitantes se lavarem.
Já cientes do bem que a água podia fazer pela saúde, médicos banhavam
doentes à força em hospitais. “Não era difícil encontrar um sujeito
que, tendo de enfrentar a experiência do primeiro banho, demonstrasse
verdadeiro terror, gritasse, tentasse escapar da sensação de sufocamento
e palpitação que a água fria proporcionava”, diz um relato da época,
citado pelo historiador americano Lawrence Wright no livro Clean and Decent: The Fascinating History of the Bathroom (“Limpo e Decente: A Fascinante História do Banheiro”).
Os banhos rotineiros reapareceram definitivamente nas grandes cidades
ocidentais apenas por volta dos anos 1930. Mas, no começo, eles não
eram lá tão frequentes. Eram tomados aos sábados, dia em que também eram
trocadas as roupas de baixo das crianças. Nessa época, navios ofereciam
cabines de banho e barcos delimitavam áreas em rios que serviam como
piscinas naturais. Após o fim da Segunda Guerra, em 1945, quando boa
parte das casas europeias teve que ser reconstruída, elas ganharam
banheiros, abastecidos com a cada vez mais comum água encanada. A França
foi a pioneira nas inovações sanitárias, seguida pela Inglaterra e pela
Alemanha.
Hoje, voltamos a expor nossos corpos sem pudor, como fazíamos na
Antiguidade. Mas isso não ocorre mais durante o ato de se lavar, e sim
depois dele. “Ao mesmo tempo em que os trajes começam a valorizar o
corpo e deixar adivinhar suas formas, realçando-as e, por vezes,
revelando o bronzeado e a pele lisa e firme, o banho se transforma num
hábito estritamente íntimo”, escrevem os historiadores franceses Gerard
Vincent e Antoine Prost na obra História da Vida Privada: da Primeira Guerra aos Dias Atuais.
Tomar banho virou um método individual de se preparar para a exposição
pública. Não é à toa que todo banheiro contemporâneo que se preze tem um
espelho – um objeto que, dificilmente seria visto num lugar como esse.
Difícil higiene
Saiba como os antigos se viravam sem sabão, chuveiro ou xampu
Antigo balneário romano na Inglaterra / Reprodução
➽ Ferro no couro: Uma espátula de ferro de mais ou menos 30 centímetros, o strigil era
usado pelos antigos gregos e romanos para esfregar vigorosamente a
pele, untada com um óleo verde-oliva. Entre os ricos, essa limpeza era
feita por escravos.
➽ Cascata caseira:
Sem rede encanada, os povos antigos tomavam banho com água derramada de
bacias e jarros. Às vezes a pessoa ficava dentro de uma banheira rasa
de pedra, mas o mais comum era se inclinar num banco de pedra.
➽ Limpeza pesada:
Os babilônios ferviam gordura animal com cinzas vegetais para passar
sobre a pele e os cabelos. Já no Egito, uma mistura de bicarbonato de
sódio, cinzas e argila fazia as vezes do sabão.
➽ Arranca-cascão: No Oriente, materiais ásperos feitos de rocha ou cerâmica eram usados para esfoliar a pele e retirar a sujeira. O ritual se completava com o uso de água de flor de laranjeira, pentes, pastas e perfumes.
➽ Asseio preguiçoso:
As banheiras portáteis se popularizaram no fim do século 19,
primeiramente entre os ingleses. Quando um fidalgo ia tomar banho,
camareiras carregavam a banheira para o quarto e a enchiam à mão, com
água aquecida.
Saiba mais
Banho - Histórias e Rituais, Renata Ashcar e Roberta Faria, 2006
Uma História do Corpo na Idade Média, Jacques Le Goff e Nicolas Truong, 2006
Clean and Decent: the Fascinating History of the Bathroom, Lawrence Wright, 2005
Retirado da Revista Aventuras na História
Link: http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/aguas-tempo-historia-banho-435136.phtml#.WXpJQOmQzIU