sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Lei 13.432/2017 limitou investigação por detetive particular (por Henrique Hoffmann Monteiro de Castro e Adriano Sousa Costa)

Entrou em vigor a Lei 13.432/17, com o propósito de disciplinar a atividade do detetive particular. Definiu sua natureza como não criminal (artigo 2º), exigiu contrato escrito com estipulação de honorários e prazo (artigos 7º e 8º) e confecção de relatório do serviço (artigo 9º), além de estabelecer vedações (artigo 10), deveres (artigo 11) e direitos (artigo 12). Possibilitou ainda a colaboração do detetive profissional com a investigação policial mediante autorização do contratante e aceite do delegado de polícia (artigo 5º). A lei não instituiu carteira de identidade profissional (como desejava a versão inicial do projeto de lei) nem concedeu porte de arma de fogo ao detetive. A regulamentação é complementada pela Lei 3.099/57 e pelo Decreto 50.532/61, que não foram revogados expressa ou tacitamente pela Lei 13.432/17.

O detetive particular pode atuar “por conta própria ou na forma de sociedade civil ou empresarial” (artigo 2º). Caso opte por constituir sociedade, deve estar registrada na Junta Comercial do estado respectivo (artigo 1º da Lei 3.099/57), bem como na delegacia de polícia do local de atuação (artigo 1º do Decreto 50.532/61).

A atuação do detetive é restrita territorialmente. Não altera essa constatação o fato de ser direito do detetive (artigo 12, I) exercer a profissão “em todo o território nacional”, pois isso deve ser feito “na forma desta Lei”, ou seja, observando a exigência de estipulação contratual do “local em que será prestado o serviço” (artigo 8º, V).

A legislação não criou a figura de investigador privado, eis que a atuação do detetive particular deve ser extrapenal. Sua função é de coleta de informações de natureza não criminal, limitando-se ao “esclarecimento de assuntos de interesse privado do contratante” (artigo 2º), que constituem, ao menos em princípio, irrelevantes penais (tais como infidelidade conjugal e desaparecimento de pessoas ou animais).

Sua atividade é movida pelo lucro (artigo 8º, VI), e não pelo interesse público. Por isso, foi vetado o dispositivo (artigo 12, V) que o definia como “profissional colaborador da Justiça e dos órgãos de polícia judiciária”, justamente para evitar “confusão entre atividade pública e privada, com prejuízos a ambas e ao interesse público”.

Com efeito, a investigação criminal continua sendo atividade essencial e exclusiva de Estado, em homenagem ao princípio da oficialidade, o que significa dizer que as funções de apuração de infrações penais e de polícia judiciária são exercidas pela polícia judiciária, com a presidência do procedimento policial nas mãos do delegado de polícia (artigo 144 da CF e artigo 2º, parágrafo 1º da Lei 12.830/13). Eventual contrato que ajustar a investigação criminal como objeto é nulo em razão da expressa vedação legal (artigo 2º).

E nem mesmo a reunião de dados de interesse privado é exclusiva do detetive profissional, conforme consignam os vetos aos artigos 1º e 3º, podendo perfeitamente ser exercida, por exemplo, por um advogado.

A lei não empregou os termos investigação ou apuração, preferindo coleta de dados e informações (artigos 2º, 9º e 10, III e V), deixando claro que não se confunde com a investigação criminal ou tampouco com a atividade de inteligência.

Diferencia-se da investigação criminal, pois o detetive profissional não possui poder de polícia (não pode condicionar a liberdade e a propriedade dos indivíduos mediante ações preventivas e repressivas). A coleta particular de dados é desprovida dos atributos da discricionariedade, autoexecutoriedade e coercibilidade, inexistindo supremacia do seu agir em relação ao particular, ao contrário da atuação do membro da polícia judiciária (artigo 144 da CF, artigo 2º, parágrafo 2º da Lei 12.830/13 e artigo 6º do CPP).

Também se distingue da atividade de inteligência, executada para obtenção de dados negados de difícil acesso e/ou para neutralizar ações adversas marcadas por dificuldades e/ou riscos iminentes. A compilação privada de elementos de convicção não abrange o emprego de pessoal, material e técnicas especializadas (Portaria 2/16 do Ministério da Justiça, que aprovou a Doutrina Nacional de Inteligência de Segurança Pública).

Ou seja, o detetive está longe de ser um policial privado ou um agente de inteligência particular. Age como um despachante do cliente, arrecadando informações de natureza não criminal, como pode ser feito por qualquer pessoa; inclusive pelo contratante, que todavia preferiu a comodidade de pagar para que alguém faça esse serviço em seu lugar. Isto é, cuida-se de um contrato específico de prestação de serviços (sinalagmático, oneroso e intuitu personae). A Lei 13.432/17 não conferiu ao prestador do serviço qualquer prerrogativa ou vantagem na coleta de dados, pelo contrário, trouxe mais exigências para a formalização do contrato e admitiu sua colaboração somente dentro de rígidos limites.

Sua atuação é apenas complementar. Não pode executar técnicas ordinárias de investigação (tais quais oitivas e quebra de sigilo de dados) nem meios extraordinários de obtenção de prova (como infiltração policial comum ou virtual). Também não tem autorização para implementar ações de inteligência de segurança pública (a exemplo de vigilância e entrevista).

O detetive não pode participar diretamente de diligência policial (artigo 10, IV). Além disso, os recursos de pesquisa permitidos ao contratado são apenas aqueles disponíveis a qualquer cidadão, que não podem atingir direitos fundamentais alheios (artigo 3º do Decreto 50.532/61), sendo um de seus deveres justamente “respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem das pessoas” (artigo 11, II).

Outrossim, o detetive pode apenas pesquisar informações em fontes abertas (tais quais redes sociais e sites de órgãos públicos e privados), em locais públicos (como vias públicas e áreas não restritas de estabelecimentos) e sem molestar envolvidos (vítima, testemunha ou suspeito). Sua atuação se dá por meio da sugestão de fontes de prova (a exemplo de indicação de testemunha, localização de objeto e exibição de documento e apontamento de dados). A efetiva obtenção do meio de prova (intimação e oitiva da testemunha, apreensão e perícia na coisa e requisição de dados) será feita pela polícia judiciária, sob o manto estatal.

Não vingou a redação original do Projeto de Lei 1.211/11, que autorizava o detetive a realizar investigação criminal, por meio de diligências como “relatórios de investigações privadas, juntando descrições, croquis, gráficos, fotografias, filmes e gravações magnéticas” referentes a “situação hipotética envolvendo fato, criminoso ou não”. Nessa esteira, o relatório a que faz menção o artigo 9º consiste em simples prestação de contas ao contratante em relação ao serviço realizado, e não documentação de diligência de investigação criminal, razão pela qual não deve ser juntado no procedimento policial.

A limitação do trabalho do detetive é essencial para garantir a higidez da persecução penal e evitar a perda de uma chance probatória, além de preservar a própria integridade física do detetive, que atua desarmado, sem identidade profissional e movido por interesse financeiro.

A atuação do detetive fora dos limites enseja responsabilidade pessoal e ilicitude de provas.

O detetive particular que exceder aos limites da chancela autorizadora do delegado de polícia será responsabilizado por usurpação de função pública (artigo 328 do CP), pois não abarcado pela excludente de ilicitude de exercício regular de direito (artigo 23, III do CP), admitindo-se cumulação de outras infrações penais como violação de domicílio (artigo 150 do CP), lesão corporal (artigo 129 do CP), interceptação telefônica clandestina (artigo 10 da Lei 9.296/96) ou perturbação da tranquilidade (artigo 65 da LCP).

Ademais, se a obtenção da informação pelo detetive ocorrer mediante violação de normas legais ou constitucionais (realizando ato típico de investigação criminal ou inteligência de segurança pública, em vez de se limitar a pesquisar em locais públicos e fontes abertas), a prova será ilícita e não poderá ser aproveitada (artigo 5º, LVI da CF e artigo 157 do CPP).

Excepcionalmente, a ilicitude de prova clandestina será excluída por aplicação da máxima da proporcionalidade, quando a colheita ilícita da prova se der para o suspeito se defender e provar sua inocência (prova ilícita pro reo)[1], ou a vítima proteger seu bem jurídico ofendido ou colocado em risco (prova ilícita em legítima defesa)[2], podendo se valer de auxílio técnico do detetive[3]. Sublinhe-se: apenas como desvio da regra geral.

Como regra, o detetive atua em situação penalmente atípica (a exemplo de levantamento da vida pregressa de um postulante a cargo em empresa, verificação da idoneidade de contratante ou constatação das companhias de um filho). Entretanto, muitas situações (como o inadimplemento contratual e o desaparecimento de pessoa) se encontram no limbo entre o que é extrapenal e penal; ocasiões em que geralmente a polícia judiciária possui dados precários que não se qualificam como indícios mínimos aptos a ensejar a instauração de inquérito policial.

Nesse contexto sobressai a verificação da procedência das informações (artigo 5º, parágrafo 3º do CPP). Possui a finalidade de comprovação da verossimilhança da notitia criminis apresentada[4], evitando a instauração despropositada de inquérito policial se não houver evidência mínima da infração penal[5]. Permite a confirmação ou não da notícia de crime, de modo que a instauração do inquérito policial ocorrerá apenas se diante de início de justa causa (juízo de possibilidade), sob pena de trancamento[6].

Nessa vereda, a colaboração do detetive, quando autorizada, possui como principal utilidade servir de elemento de convicção que permita a deflagração do inquérito policial, e não instruir um procedimento policial já instaurado. Isso porque, se o inquérito policial está em curso, é sinal de que o delegado já obteve os mínimos dados necessários e a polícia judiciária já definiu caminho investigativo para extrair os meios de prova, sendo o aprofundamento da investigação incompatível com a possibilidade limitada de atuação do detetive. Apenas excepcionalmente deve ser admitida a participação do contratado para indicar fontes de prova ainda não conhecidas do Estado-Investigação.
Além do mais, a atuação do advogado já é suficiente para tutelar os direitos do investigado ou da vítima no inquérito policial. O trabalho que o detetive particular poderia exercer será melhor realizado pelo causídico, já que o rol de ferramentas do advogado em muito excede ao do detetive particular, a exemplo da apresentação de razões e quesitos (artigo 7º, XXI da Lei 8.906/94) e acesso às diligências concluídas do inquérito policial (artigo7º, parágrafo 11 do Estatuto da OAB e Súmula Vinculante 14 do STF), bem como requerimento de diligências (artigo 14 do CPP).

O detetive sequer pode requerer diligências em nome do cliente (artigo 14 do CPP), pois celebra contrato de prestação de serviços de coleta de dados (artigos 2º e 8º da Lei 13.432/17), e não de mandato (artigo 653 do CC e artigo 1º, II do Estatuto da OAB) que o habilitaria a pleitear perante a polícia judiciária.

Em epítome, a partir da instauração do inquérito policial, desaparece a legitimidade do detetive particular, ganhando relevo a atuação do advogado na defesa dos interesses de seu cliente.

A colaboração do detetive profissional com a investigação policial deve ser precedida de autorização do cliente e concordância do delegado de polícia (artigo 5º).

A anuência do contratante deve ser expressa (por escrito) e específica (documento à parte, não bastando cláusula genérica no contrato). Isso porque o pacto negocial possui natureza não criminal e fugiria ao espírito da lei uma autorização geral para colaboração criminal que não passasse pelo crivo especial do cliente.

Intitulamos o documento que formaliza a colaboração de termo de colaboração particular circunstanciada. O nome do documento já permite a identificação das principais características:

a) termo de colaboração: autorização escrita do delegado de polícia para que o detetive auxilie a polícia judiciária provendo elementos mínimos iniciais;
b) particular: o detetive atua em caráter privado, preservando a oficialidade da investigação criminal e a presidência do procedimento policial nas mãos do delegado de polícia (sem qualquer protagonismo do prestador de serviço);
c) circunstanciada: a atuação do detetive deve ser especificada do modo mais detalhado possível. É restrita, não podendo o detetive participar diretamente de diligência policial (artigo 10, IV) e só podendo realizar pesquisas disponíveis a qualquer cidadão, sem imperatividade e sem atingir direitos fundamentais alheios (artigo 11, II e artigo 3º do Decreto 50.532/61).
Caso já disponha de informações, o detetive deve imediatamente fornecê-las indicando as fontes de prova (pessoas e coisas) de onde a polícia judiciária possa extrair os elementos de convicção. Se não dispuser dos dados, a busca pode ser feita em determinado lapso temporal fixado pelo delegado (que não irá extrapolar o prazo estabelecido no contrato firmado pelo detetive e seu cliente para atuação não criminal — artigo 8º, II).

Deve ficar registrado no termo qual é o interesse do cliente para motivar a proposição de colaboração na investigação policial, seja na condição de vítima ou suspeito. Não pode o detetive colaborar com o Estado quando não houver interesse particular a ser tutelado (como no caso de crimes vagos).

Além disso, o detetive não pode atuar em investigação policial relativa a crimes violentos, ocasião em que deve não só se abster de colaborar com a polícia judiciária, mas inclusive renunciar ao serviço contratado face ao risco à sua integridade física ou moral (artigo 12, III).

São anexos obrigatórios do termo: a) autorização expressa do contratante, que deve ser feita por escrito; b) contrato de prestação de serviços do detetive para seu cliente (artigo 8º), que precisa conter a qualificação completa, natureza da coleta de dados não criminais (especificação do problema, tal qual infidelidade conjugal), local de coleta de dados, prazo, relação de documentos e dados fornecidos pelo contratante e estipulação de honorários.

Não se exige concordância do Ministério Público nem chancela judicial.

A ação penal do crime não afeta a possibilidade de colaboração. Em crimes de ação penal pública condicionada ou privada, caso o contratante seja a vítima, sua autorização já constituirá a condição de procedibilidade para deflagração do procedimento policial.

A autoridade de polícia judiciária pode exercer juízo de retratação e voltar atrás em seu ato discricionário para determinar a qualquer tempo a cessação da colaboração em curso (artigo 5º, parágrafo único da Lei 13.432/17); o contratado também deve interromper o auxílio em caso de extinção do contrato (pressuposto da colaboração) em razão da rescisão por inadimplemento ou força maior (artigo 607 do CC).

A participação do detetive particular no curso da investigação policial é uma discricionariedade do delegado de polícia, e não uma prerrogativa profissional. Registre-se ainda que não há qualquer menção sobre a possibilidade de tal profissional auxiliar no curso do processo criminal.

É vedado ao detetive divulgar os meios e os resultados da coleta de dados e informações a que tiver acesso no exercício da profissão, salvo em defesa própria (artigo 10, III).

E é seu dever profissional preservar o sigilo das fontes de informação (artigo 11, I). Obviamente esse segredo não pode impedir o fornecimento de documentos e indicação de pessoas e coisas pelo detetive ao delegado, se autorizado a colaborar com a investigação criminal.

É crível concluir que a lei não promoveu alargamento na utilização da investigação criminal privada (e sua espécie investigação criminal defensiva)[7], ao contrário do que ocorreria com aprovação do novo Código de Processo Penal (Projeto de Lei 156/09, artigo 13), que faculta ao investigado entrevistar pessoas. Na atual sistemática, a vítima ou suspeito não pode produzir a prova com imperatividade.

Para que a informação obtida pelo particular se revista de idoneidade a embasar a persecução penal, já que não possui fé pública, deve ser submetida à supervisão estatal, sem a qual não há como assegurar a confiabilidade dos relatos[8]. Incide a chamada teoria da canalização, segundo a qual o elemento de convicção, para ser considerado válido e aproveitável na persecução criminal, deve obter a chancela estatal, dando verniz de oficialidade. Além disso, a ação instrutória do particular não pode obstruir a investigação policial por meio de inovação artificiosa do estado de lugar, coisa ou pessoa, sob pena de crime (artigo 347 do CP).


[1] STF, RE 402.717, rel. min Cezar Peluso, DJ 2/12/2008.
[2] STJ, REsp 1.026.605, rel. min. Rogerio Schietti Cruz, DJ 13/5/2014.
[3] Para gravação de conversa telefônica ou ambiental, por exemplo.
[4] STJ, RHC 14.434, rel. min. Jorge Scartezzini, DJ 1/4/2004.
[5] COSTA, Adriano Sousa; SILVA, Laudelina Inácio da. Prática policial sistematizada. Niterói: Impetus, 2016.

Fonte: Consultor Jurídico
[6] STF, HC 132.170 AgR, rel. min Teori Zavascki, DJ 16/2/2016.
[7] MACHADO, André Augusto Mendes. Investigação criminal defensiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
[8] STF, AP 912, rel. min. Luiz Fux, DJ 14/2/2017.

Lei que regulamenta profissão de detetive particular (N.º 13.342/17)

LEI Nº 13.432, DE 11 DE ABRIL DE 2017.
Mensagem de veto
Dispõe sobre o exercício da profissão de detetive particular.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o  (VETADO).
Art. 2º  Para os fins desta Lei, considera-se detetive particular o profissional que, habitualmente, por conta própria ou na forma de sociedade civil ou empresarial, planeje e execute coleta de dados e informações de natureza não criminal, com conhecimento técnico e utilizando recursos e meios tecnológicos permitidos, visando ao esclarecimento de assuntos de interesse privado do contratante.
§ 1º  Consideram-se sinônimas, para efeito desta Lei, as expressões “detetive particular”, “detetive profissional” e outras que tenham ou venham a ter o mesmo objeto.
§ 2º  (VETADO).
Art. 3º  (VETADO).
Art. 4º  (VETADO).
Art. 5º  O detetive particular pode colaborar com investigação policial em curso, desde que expressamente autorizado pelo contratante.
Parágrafo único. O aceite da colaboração ficará a critério do delegado de polícia, que poderá admiti-la ou rejeitá-la a qualquer tempo.
Art. 6º  Em razão da natureza reservada de suas atividades, o detetive particular, no desempenho da profissão, deve agir com técnica, legalidade, honestidade, discrição, zelo e apreço pela verdade.
Art. 7º  O detetive particular é obrigado a registrar em instrumento escrito a prestação de seus serviços.
Art. 8º  O contrato de prestação de serviços do detetive particular conterá:
I - qualificação completa das partes contratantes;
II - prazo de vigência;
III - natureza do serviço;
IV - relação de documentos e dados fornecidos pelo contratante;
V - local em que será prestado o serviço;
VI - estipulação dos honorários e sua forma de pagamento.
Parágrafo único. É facultada às partes a estipulação de seguro de vida em favor do detetive particular, que indicará os beneficiários, quando a atividade envolver risco de morte.
Art. 9º  Ao final do prazo pactuado para a execução dos serviços profissionais, o detetive particular entregará ao contratante ou a seu representante legal, mediante recibo, relatório circunstanciado sobre os dados e informações coletados, que conterá:
I - os procedimentos técnicos adotados;
II - a conclusão em face do resultado dos trabalhos executados e, se for o caso, a indicação das providências legais a adotar;
III - data, identificação completa do detetive particular e sua assinatura.
Art. 10.  É vedado ao detetive particular:
I - aceitar ou captar serviço que configure ou contribua para a prática de infração penal ou tenha caráter discriminatório;
II - aceitar contrato de quem já tenha detetive particular constituído, salvo:
a) com autorização prévia daquele com o qual irá colaborar ou a quem substituirá;
b) na hipótese de dissídio entre o contratante e o profissional precedente ou de omissão deste que possa causar dano ao contratante;
III - divulgar os meios e os resultados da coleta de dados e informações a que tiver acesso no exercício da profissão, salvo em defesa própria;
IV - participar diretamente de diligências policiais;
V - utilizar, em demanda contra o contratante, os dados, documentos e informações coletados na execução do contrato.
Art. 11.  São deveres do detetive particular:
I - preservar o sigilo das fontes de informação;
II - respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem das pessoas;
III - exercer a profissão com zelo e probidade;
IV - defender, com isenção, os direitos e as prerrogativas profissionais, zelando pela própria reputação e a da classe;
V - zelar pela conservação e proteção de documentos, objetos, dados ou informações que lhe forem confiados pelo cliente;
VI - restituir, íntegro, ao cliente, findo o contrato ou a pedido, documento ou objeto que lhe tenha sido confiado;
VII - prestar contas ao cliente.
Art. 12.  São direitos do detetive particular:
I - exercer a profissão em todo o território nacional na defesa dos direitos ou interesses que lhe forem confiados, na forma desta Lei;
II - recusar serviço que considere imoral, discriminatório ou ilícito;
III - renunciar ao serviço contratado, caso gere risco à sua integridade física ou moral;
IV - compensar o montante dos honorários recebidos ou recebê-lo proporcionalmente, de acordo com o período trabalhado, conforme pactuado;
V - (VETADO);
VI - reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer autoridade, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento;
VII - ser publicamente desagravado, quando injustamente ofendido no exercício da profissão.
Art. 13.  Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília,  11  de abril de 2017; 196o da Independência e 129o da República.
MICHEL TEMER
Osmar Serraglio
Henrique Meirelles
Ronaldo Nogueira de Oliveira
Eliseu Padilha
Grace Maria Fernandes Mendonça
Este texto não substitui o publicado no DOU de 12.4.2017
Fonte: Site do Planalto

A presidência do inquérito policial e a requisição de diligências

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Márcio Adriano Anselmo*

A presidência do inquérito policial está centralizada na figura do delegado de polícia, cujo modelo se consolidou com a Constituição Federal de 1988, fortalecido pela Lei 12.830/13. Com base nesse formato, busca-se uma dinâmica investigatória que visa sopesar direitos e garantias fundamentais do indivíduo, sem que este novo delineamento acarrete prejuízos à ordem pública, à eficácia da lei penal ou aos interesses da coletividade.

Portanto, ao final de todo o procedimento investigatório, o quadro fático desenhado pelo delegado de polícia deverá se aproximar dos acontecimentos reais, propiciando a responsabilização criminal de uns e a ratificação da inocência de outros, como forma de aplicação dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito, impedindo acusações injustas, arbitrárias e desprovidas de necessidade. A investigação criminal atua, portanto, como o primeiro filtro a evitar um processo penal desnecessário.

Nesse cenário, cabe inicialmente estabelecer o papel do órgão ministerial no que diz respeito à sua atuação em relação às investigações conduzidas pelo delegado de polícia, cujo artigo 129 da Constituição Federal aponta como função “VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais”.

A Lei Complementar 75/93, ato normativo primário que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, aponta, no artigo 38, entre suas funções institucionais, “requisitar diligências investigatórias e instauração de inquérito policial, podendo acompanhá-los e apresentar provas”.

Percebe-se que o órgão ministerial, quanto a sua relação com inquérito policial, não tem disponíveis poderes ou funções que o autorizem a atuar como ator principal no inquérito policial. Cabe-lhe, nos termos legais, funções anômalas, estranhas à capacidade investigatória do delegado de polícia. Não se descuida aqui da decisão no Recurso Extraordinário 593.727 MG, que atribui ao Ministério Público poderes investigatórios, mas se busca tratar do papel do delegado de polícia na condução da investigação criminal consubstanciada no inquérito policial.

A requisição de instauração de inquérito policial, o acompanhamento de sua tramitação, o direito de apresentação de provas e, por fim, a requisição de diligências investigatórias são poderes decorrentes da função fiscalizatória que a lei e o texto constitucional atribuem ao parquet.

A Lei 12.830/13 buscou sedimentar o papel do delegado de polícia na condução do inquérito policial, conferindo-lhe as características de discricionariedade, autonomia e exclusividade para a condução da investigação criminal.

Quanto à discricionariedade, tal característica da atuação do delegado de polícia é evidenciada desde a entrada em vigor do Código de Processo Penal, por meio da redação do artigo 6º, quando coloca, à disposição da autoridade policial, sem caráter de exaustividade ou vinculação, inúmeras diligências investigatórias que, conforme juízo de oportunidade e conveniência, poderão ser adotadas para alcance da apuração de autoria e materialidade. A Lei 12.830/13, por sua vez, dispôs que “durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos”.

O atributo da autonomia da autoridade policial está instituído no artigo 2º, parágrafo 1º da referida lei, quando é colocada como incumbência do delegado de polícia a condução da investigação criminal. O termo “condução” pressupõe a direção, o exercício de toda a atividade investigatória desenvolvida no decurso do inquérito policial, o que implica a inadmissibilidade de interferências internas, dentro do próprio órgão da Polícia Judiciária, ou externas, provenientes de demais participantes da persecução penal, impedindo-os de se imiscuir na esfera decisória do delegado de polícia.

Por fim, no que toca ao atributo da exclusividade, observa-se que a lei atribui ao delegado de polícia a privatividade para o indiciamento por meio da Lei 12.830/13. Ora, se a análise da materialidade e indícios de autoria é privativa do delegado de polícia, somente a este cabe, ao término da investigação, apontar a ocorrência de infração penal e sua eventual autoria.

A condução do inquérito policial, conferido com exclusividade, autonomia e discricionariedade, impede que outros órgãos ou entes se manifestem na fase investigatória da persecução penal de modo a se imiscuir no juízo de oportunidade e conveniência do delegado de polícia.

O órgão ministerial, por sua vez, deve ser incumbido da função fiscalizatória sobre a investigação criminal, exercendo estritamente um controle de legalidade em todo o decurso da fase apuratória. Esse papel apresenta-se fundamental, sobretudo a fim de evitar-se o nefasto desvirtuamento da investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia. Nesse cenário, assume papel de suma importância o controle externo da atividade policial exercido pelo parquet.

Dessa forma, a interação entre o órgão ministerial, enquanto titular da ação penal e custos legis, e o delegado de polícia, enquanto presidente do inquérito policial, deve observar os contornos de seus papéis em três momentos distintos da investigação criminal:

a) fase anterior à instauração da investigação;
b) fase de tramitação do inquérito policial (da instauração até o relatório);
c) fase posterior à finalização das apurações.

Na fase anterior ao início da investigação criminal, situada entre a prática delitiva e a instauração do inquérito policial, o órgão ministerial desempenha sua função fiscalizatória por meio da requisição de instauração do inquérito policial. Em virtude do princípio da obrigatoriedade, inexiste juízo de oportunidade e conveniência do delegado de polícia para decidir se instaura ou não o inquérito policial, salvo se a requisição é manifestamente ilegal.

A requisição da instauração do inquérito policial, como dito, apresenta caráter vinculado, devendo ser atendida pela autoridade policial. Apesar disso, o conteúdo da portaria, peça que formaliza o início da investigação criminal, é campo discricionário e exclusivo do delegado de polícia, a quem cabe definir a capitulação legal e as diligências investigatórias iniciais. É vedado ao órgão ministerial se imiscuir neste campo sob pena de assumir, por via oblíquas, a presidência/condução da investigação criminal, o que encontra expressa vedação na Lei 12.830/13 e na jurisprudência dos tribunais superiores. Eventuais diligências referidas na requisição de instauração, em que pese posição contraria de Aury Lopes Junior e Ricardo Jacobsen Gloeckner[1], devem ser entendidas como sugestões de diligências, sempre submetidas ao juízo do presidente da investigação, a quem compete analisar sua conveniência e oportunidade.

No curso do inquérito policial, compreendido entre a portaria de instauração e a confecção do relatório final, cabe unicamente ao delegado de polícia decidir sobre a diligência investigatória empregada, momento adequado para execução, técnicas de inteligência necessárias e teses jurídicas que se mostrarão úteis para a apuração dos fatos. Essas variáveis localizam-se na órbita do juízo de oportunidade e conveniência do delegado de polícia, campo de mérito administrativo. Cabe destacar que o parquet no curso do inquérito policial, citando novamente Aury e Ricardo Gloeckner[2], tem presença “secundária, acessória e contingente, pois o órgão encarregado de dirigir o inquérito policial é a polícia judiciária”. Caso pretenda dirigir a investigação criminal, deve o órgão ministerial fazê-lo mediante seus procedimentos próprios de investigação (já considerados válidos pelo Supremo Tribunal Federal), e não pelo inquérito policial.

Ademais, as diligências requeridas pelo parquet no curso da investigação devem ser compreendidas à luz do artigo 14 do CPP, que estabelece que “o ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade”, sob pena de clara afronta ao princípio de paridade de armas, que deve ser aplicado também à fase do inquérito policial.

A requisição de diligências investigatórias pelo órgão geraria, de forma transversa e arbitrária, uma usurpação do papel de condutor da investigação. Em regra, a execução de diligências investigatórias é feita pelo delegado de polícia, seja diretamente ou por meio de seus agentes, independente de manifestação ministerial e de prévia autorização judicial, utilizando-se para isso do poder requisitório, por meio do qual são trazidas aos autos o resultado de perícias, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos, conforme prescreve o artigo 2º, parágrafo 2º da Lei 12.830/13.

Em caráter excepcional, no caso de medidas invasivas, a execução de diligências investigatórias pelo delegado de polícia submetidas à prévia autorização judicial, o Ministério Público fiscaliza a regularidade da medida, exarando, para isso, parecer de legalidade da medida.

Por fim, um terceiro momento do inquérito policial se dá com o oferecimento do relatório, que marca o encerramento da atuação da polícia judiciária, uma vez que a autoridade policial reconhece que foram exauridas as diligências investigatórias disponíveis e adotadas as teses jurídicas mais adequadas para a busca do esclarecimento dos fatos. Abre-se, a partir de então, espaço para a apreciação do resultado da investigação pelo órgão ministerial.

A partir da apresentação do relatório, o papel de protagonista da persecução penal é transferido do delegado de polícia, presidente da investigação criminal, para o Ministério Público, titular da ação penal, a quem cabe promover a processualização do feito por meio da apresentação da peça acusatória.

Aqui reside o instante em que se mostra cabível a requisição das diligências investigatórias em face do delegado, enquanto presidente da investigação, sem que ocorra disfunção ou desvirtuamento dos órgãos da persecução penal. Não obstante tal autorização, a requisição de diligências investigatórias deve obedecer aos limites legais e constitucionais impostos ao exercício do poder requisitório ministerial, sob pena de ser negada, de forma legítima, pela autoridade policial o cumprimento das diligências.

Estabelecido o momento de seu cabimento no curso do inquérito policial, é necessário definir os limites do poder requisitório a fim de se evitar abusos ou ilegalidades. O artigo 16 do CPP traz uma primeira limitação, tornando a requisição cabível somente quando a diligência for imprescindível para o oferecimento da denúncia:

Sendo assim, nota-se que a diligência deve ter por finalidade a construção da materialidade e dos indícios de autoria relacionados aos fatos sob apuração, já que são esses os requisitos para o oferecimento da denúncia, não sendo cabível o uso da requisição para obtenção de informações destoantes do contexto investigativo ou para instruir indiretamente procedimentos de natureza cível ou administrativa.

Por conseguinte, não é pertinente a requisição para que a autoridade policial expeça ofícios a outros órgãos nem determine a execução de outros atos de natureza cartorária ou sem conexão com a atividade-fim da Polícia Judiciária, sob o risco de tornar ilegítimo o exercício do seu poder requisitório. Observa-se, portanto, que a diligência deve ser imprescindível ao oferecimento da denúncia.

O artigo 47 do CPP impede ainda que parquet faça requisições à autoridade policial quando as informações complementares estejam na posse de outra instituição, vedando que se utilize da intermediação de outra instituição para a obtenção dos elementos de convicção que julgar necessários, sob pena de se causar ônus desnecessário ao órgão de Polícia Judiciária:

Artigo 47. Se o Ministério Público julgar necessários maiores esclarecimentos e documentos complementares ou novos elementos de convicção, deverá requisitá-los, diretamente, de quaisquer autoridades ou funcionários que devam ou possam fornecê-los.

Outro ponto que carece de análise aqui é a questão da cota ministerial para fins de indiciamento, cujo entendimento pacífico já se demonstra no sentido do não cabimento, uma vez que se trata de ato privativo da autoridade policial, que, da mesma forma, não vincula ao órgão ministerial para o oferecimento da denúncia.

Em síntese conclusiva, em conformidade com o quadro constitucional e legal existente, nota-se que o poder de requisição de diligências do parquet no curso do inquérito policial somente pode ser exercido nos dois momentos bem definidos: anteriormente à instauração do inquérito policial, sem qualquer interferência em outros aspectos discricionários do delegado de polícia; no segundo momento, entre a confecção do relatório conclusivo e a propositura da ação penal. Contudo, as requisições de diligências após essa fase devem apresentar as seguintes características para serem reputadas legítimas:

I) natureza investigatória criminal: consiste em diligências que devam ter a necessária intermediação da Polícia Judiciária, a quem cabe a exclusividade de atuação investigatória no inquérito policial, excetuando-se, assim, diligências que tenham por objetivo a instrução de procedimentos civis;

II) imprescindibilidade para o oferecimento da denúncia: consiste na diligência que tenha como escopo a identificação da materialidade e autoria delitiva dentro do contexto investigativo;

III) domínio da polícia judiciária: consiste na diligência que tenha como destinatário final a Polícia Judiciária, devendo a requisição, caso assim não ocorra, ser encaminhada diretamente ao órgão que possua a informação, documento ou qualquer outro elemento de informação que seja pertinente.

IV) fundamentação: as requisições de diligências devem ser fundamentadas e não meramente pontuadas no poder requisitório genérico previsto no artigo 129 da Constituição Federal. A fundamentação é elemento essencial a fim de que se possa ser realizado o controle de legalidade do ato. Assim, caso o delegado de polícia entenda incabível a diligência requisitada, por ausência de fundamento legal, deve submeter o feito ao controle judicial de legalidade.

O panorama contemporâneo da investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia, delineado pelo texto constitucional e pela Lei 12830/13, confere clara função investigatória à autoridade policial, com evidentes marcas de exclusividade, autonomia e discricionariedade. Por outro lado, é dada ao órgão ministerial uma função fiscalizadora, de notável importância, colocando-o como órgão de controle de legalidade da Polícia Judiciária, seja por meio do seu poder requisitório, seja por meio de manifestações posteriores às representações do delegado de polícia, emanados por meio de parecer.

Essa divisão de papéis, pois, é imprescindível para o desempenho de uma persecução penal em completa consonância com os mais basilares preceitos do Estado Democrático de Direito e garantias do indivíduo sujeito à investigação por meio do inquérito policial.

[1] Investigação Preliminar no Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 276-277.
[2] Op. Cit., p. 250.
*Márcio Adriano Anselmo é delegado da Polícia Federal, doutor pela Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela UCB e especialista em investigação criminal pela ESP/ANP e em Direito do Estado pela UEL.

Fonte: Site da Escola Superior da Polícia Civil do Paraná http://www.escolasuperiorpoliciacivil.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=2292&tit=A-presidencia-do-inquerito-policial-e-a-requisicao-de-diligencias

sábado, 2 de setembro de 2017

Demain dès l'aube - poème de Victor Hugo (Amanhã, ao amanhecer - poema de Victor Hugo)

Nesse post faço uma homenagem, com um vídeo-poema, ao grande escritor e poeta francês Victor Hugo. Trago para vocês um de seus poemas mais tocantes, chamado "Demain dès l'aube" (Amanhã, ao amanhecer), escrito em memória da filha morta, Léopoldine Hugo. Em complemento, abaixo estão o texto original de Hugo, em sua língua natal, e uma tradução em português, de autoria de JB Xavier.

O vídeo que aqui abrilhanta ainda mais os versos hugueanos, e que vocês certamente gostarão de ver, foi produzido, montado e realizado por Geoffroy Groult, com Nicolas Vincent, Rémi Monedi e Elise Correard. Deleitem-se!


Demain, dès l’aube…

Victor Hugo
Demain, dès l’aube, à l’heure où blanchit la campagne,
Je partirai. Vois-tu, je sais que tu m’attends.
J’irai par la forêt, j’irai par la montagne.
Je ne puis demeurer loin de toi plus longtemps.

Je marcherai les yeux fixés sur mes pensées,
Sans rien voir au dehors, sans entendre aucun bruit,
Seul, inconnu, le dos courbé, les mains croisées,
Triste, et le jour pour moi sera comme la nuit.

Je ne regarderai ni l’or du soir qui tombe,
Ni les voiles au loin descendant vers Harfleur,
Et quand j’arriverai, je mettrai sur ta tombe
Un bouquet de houx vert et de bruyère en fleur.


Victor Hugo, extrait du recueil «Les Contemplations»


Amanhã, ao amanhecer...
Victor Hugo
Tradução: JB Xavier
 
Amanhã, ao amanhecer, quando de branco o campo se banha,
Eu partirei. Sei que você me vê, e sei que espera por mim...
Seguirei pelas florestas e cruzarei a montanha.
Não posso ficar longe de você tanto tempo assim...
 
Marcharei com os olhos fixos em meu pensamento,
Sem desviar minha atenção, sem ouvir qualquer ruído,
Só e desconhecido, costas encurvadas, as mãos num lamento,
Dia triste como a noite para mim, quando eu tiver partido.
 
Nem para o dourado da noite que cai eu olharei,
Nem verei as velas que para Harfleur descem em triste ardor...
E quando eu chegar, em seu túmulo colocarei
Um buquê de verde azevinho e urzes em flor.
 
Fontes e referências:
geoffroy-groult.com Canal do YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=lwVWtPzTFIU
Poema em tradução portuguesa por JB Xavier em http://www.jbxavier.com.br
Poema em francês retirado do site: www.poetica.fr

Ednardo - Terral (Pessoal do Ceará)

domingo, 27 de agosto de 2017

Agonia e esperança (por Marco Antonio Villa)

Marco Antonio Villa

O governo Michel Temer agoniza. Na nossa história não será o primeiro Presidente da República que encerra melancolicamente seu mandato muito antes do término do período determinado pela Constituição. A diferença é que Temer ao assumir o cargo — em um cenário de desmoralização das instituições — sinalizou que seria o presidente das reformas, que moralizaria a administração pública e conduziria à retomada do crescimento econômico. Acabou estimulando otimismo em um país abalado pelo impeachment de Dilma Rousseff.
Estas expectativas duraram cerca de um ano, até a noite do dia 17 de maio, quando o Brasil tomou conhecimento da delação premiada da JBS. O impacto das revelações aprofundou a crise ética do governo — já abalado por várias denúncias de corrupção que atingiram o círculo íntimo do Presidente — e aumentou a impopularidade de Temer, chegando ao patamar mais baixo de avaliação negativa dos últimos trinta anos. Pior: fez com que a base parlamentar no Congresso Nacional fosse erodida. Desde então, qualquer votação tem resultado incerto, fazendo com que a negociação de cargos e favores se transformasse em política de governo.
Michel Temer chegou ao governo por um dispositivo constitucional. Era o Vice Presidente da República. Simplesmente compôs a chapa. No primeiro mandato de Dilma Rousseff pouco apareceu. Dedicou-se a manter o controle do PMDB, sempre lutando contra a bancada do Senado, que desejava partilhar os ganhos obtidos na intermediação de nebulosos negócios públicos. Insatisfeito com as nomeações controladas pelo PT, divulgou uma carta-manifesto que caiu no vazio. Isto porque não exigia o cumprimento de princípios políticos. Pelo contrário, reclamava que seus amigos do PMDB não estavam sendo contemplados no saque organizado pelo projeto criminoso de poder petista.
O fracasso do governo Temer acabou atingindo os brasileiros que imaginavam que o país poderia enfrentar a corrupção e voltar a crescer. O cenário de desânimo é a cada dia mais presente no cotidiano. Como se não adiantasse fazer política — ou, ao menos, acompanhar os acontecimentos. No ar fica a sensação de ausência de rumo, como se tivéssemos condenados a viver em meio à corrupção e com uma elite política insensível. O desafio é evitar que a agonia do governo Temer não atinja a esperança da mudança almejada pelos brasileiros.
Fonte: Revista IstoÉ Online
http://istoe.com.br/agonia-e-esperanca/

"O crime se globalizou antes das nações" (Entrevista com o sociólogo Hugo Acero Velásquez)

O sociólogo colombiano Hugo Acero Velásquez virou uma autoridade em segurança pública após encabeçar iniciativas bem-sucedidas em seu país, que resultaram na queda de índices de violência. Ele chega ao Rio de Janeiro nesta semana para dar sua contribuição ao Reage, Rio, movimento lançado pelos jornais O Globo e Extra, que promove um debate na quarta-feira, dia 30, e na quinta-feira, dia 31, no Museu de Arte do Rio (MAR), com o intuito de discutir propostas para o estado em diversos setores. “É preciso um trabalho integrado para enfrentar organizações criminosas complexas, cujas estruturas vão muito além dos territórios das favelas”, aponta Velásquez em entrevista a ÉPOCA, por telefone, diretamente da cidade de Medellín, onde ele assessora a prefeitura e a polícia local.
Hugo Acero no Brasil.Ele vêm ao Rio para debater soluções para a crise de segurança (Foto: Newman Homrich)
ÉPOCA – No Rio de Janeiro, algumas favelas contempladas com programa de pacificação voltaram a sofrer com o narcotráfico. É possível reaprumar o projeto de pacificação?
Hugo Acero Velásquez  – 
Estamos falando de um tema complexo, que não se restringe à distribuição de drogas. A droga que chega ao Rio de Janeiro não ingressa quilo a quilo, grama a grama, mas, sim, em grandes quantidades. Estamos diante de estruturas complexas do crime organizado. Portanto, é um problema que não diz respeito somente ao prefeito ou ao governador. É necessário um trabalho conjunto, que deve ter o envolvimento do governo federal, das polícias Federal e Militar, do Ministério Público, todos trabalhando em equipe. É preciso um trabalho integrado para enfrentar organizações criminosas complexas, cujas estruturas vão muito além dos territórios das favelas.
ÉPOCA – Que estruturas criminosas vão além das favelas?
Velásquez  – 
O narcotráfico é um problema anterior às favelas, e de ordem mundial. Há um segundo tema, que não diz respeito somente ao narcotráfico. No interior das favelas há o fenômeno da extorsão. Há também milícias que em alguns casos dizem combater os traficantes, mas terminam por se associar a esse negócio. O narcotráfico é um tema muito mais complexo. Ele é como uma grande franquia, que se espalha por vários negócios. É narcotráfico, mas é também sicariato [ação de pistoleiros], assassinato, extorsão, sequestro, e em alguns casos incrementa outros delitos, como o furto, pois os usuários que consomem drogas necessitam de dinheiro para comprá-la. Como se vê, é uma cadeia mais ampla, de maior complexidade.
ÉPOCA – Há poucas instituições do estado intervindo nas favelas?
Velásquez  – É necessário haver uma intervenção integral. O setor público tem de articular as investigações com base na inteligência policial, mas só isso não basta. O estado possui outras ferramentas. Não se trata só de entrar e deter os delinquentes. Não é apenas uma questão de polícia e Justiça. É preciso também melhorar as condições de vida. São crianças, jovens, homens e mulheres que terminam no narcotráfico ou em negócios ilegais por não terem outras possibilidades. As intervenções sociais não transformaram as favelas.
ÉPOCA – Estamos vendo no Brasil, e em especial no Rio de Janeiro, o aumento do uso de armamentos pesados, como fuzis. Como acabar com esse problema?
Velásquez  – A incidência da violência com armas mais sofisticadas, como fuzis, e não só pistolas e revólveres, mostra que se está diante de estruturas criminosas que não podem ser combatidas apenas com ações de transformações sociais. Essas estruturas criminosas não nasceram devido ao fenômeno da desigualdade social. Elas nasceram porque o negócio é rentável. Esses grupos atuam e se armam porque o narcotráfico rende muito dinheiro, e é importante reconhecer isso para enfrentá-lo. A intervenção deve ser feita para que os bandidos não controlem territórios. Mas, infelizmente, o negócio das drogas não vai acabar. Enquanto houver consumo, haverá venda.
ÉPOCA – Proibir o porte de arma por decreto, como ocorreu em Bogotá, seria uma boa medida para o Brasil?
Velásquez  – O delinquente não se importa se há ou não restrição. Ele circula por esses territórios com plena liberdade, exibindo fuzis. Se a autoridade está disposta a combater, não é só uma questão de inteligência e Justiça, é necessário enfrentamento. As estruturas são muito mais complexas do que aquelas que cercam os jovens nas favelas. Outros líderes muito grandes estão à frente do negócio.
ÉPOCA – Até agora, o Rio de Janeiro atingiu a marca de quase 100 policiais mortos em 2017. Por outro lado, verifica-se também o aumento de criminosos mortos em confronto. Como deter essa escalada de violência?
Velásquez  – 
Isso é possível se, e somente se, as autoridades, as diferentes polícias, os setores de inteligência e de investigação criminal, tanto federal quanto estadual e municipal, trabalharem em conjunto. É preciso haver organização para fazer frente a essa estrutura.
ÉPOCA – No Brasil, e no Rio de Janeiro em particular, a impressão que temos é que o combate à violência é como enxugar gelo. Há solução a curto prazo que nos dê esperança de dias melhores?
Velásquez  – 
Há que ter esperança, mas é necessário trabalhar duro. Há muitos anos venho trabalhando em várias cidades colombianas e obtendo bons resultados. Em Medellín, onde trabalho agora, temos problemas, que estamos enfrentando. Chegamos a registrar 20, 30 mortes diárias. Em 2002, Medellín teve uma taxa de 186 homicídios para cada 100 mil habitantes. Esse índice caiu para 34 homicídios em 2007, nos dois anos seguintes subiu para 94, e desde 2010 vem baixando, a ponto de hoje estar na casa de 21 homicídios para cada 100 mil habitantes.
"A legalização das drogas é uma das soluções, ao lado de ações no âmbito de segurança pública e Justiça"
ÉPOCA – O Primeiro Comando da Capital (PCC), uma facção de São Paulo, assumiu as ações na fronteira com o Paraguai. Que risco isso representa?
Velásquez  – 
O PCC cresceu, em parte, porque o Estado não está completamente organizado para enfrentá-lo. O narcotráfico é um negócio transnacional. A droga que chega ao Rio de Janeiro é cultivada na Colômbia, no Peru. A Colômbia chegou a ter dois cartéis dos mais poderosos do mundo, o de Cali e o de Medellín. A máfia colombiana, que chegou a ser a primeira do mundo em determinado momento nos anos 1980 e 1990, hoje é a quarta ou a quinta, já não tem tanto prestígio. Hoje a máfia mexicana está no Brasil, na Argentina, assim como a máfia russa, que atua no continente de maneira muito forte. Os primeiros que vieram com a globalização foram os delinquentes. O crime organizado se globalizou antes mesmo das nações. Ele tem mais dinâmica que os Estados. Os Estados são mais burocráticos, têm de fazer acordos, convênios, pactos, e tudo isso demora.
ÉPOCA – O tráfico de drogas cresce na Amazônia. O que explica esse evento?
Velásquez  – 
Na Colômbia, a área de cultivo de folha de coca se multiplicou por três. E não é só com a folha de coca. Aumentou também o cultivo de papoula, para a fabricação de heroína, devido ao crescimento da demanda. Ambas são cultivadas perto da fronteira com o Brasil, país que se tornou um ponto na rota da droga que vai para a África e a Europa. Ela é embarcada em portos convencionais, onde as máfias atuam.
ÉPOCA – É somente uma falsa percepção ou a insegurança de fato cresce no continente?
Velásquez  – 
As más notícias não podem ser atribuídas aos meios de comunicação. Há países sul-americanos e centro-americanos que conseguiram reduzir substancialmente seus índices de violência. A situação está estável no Peru, Equador e Chile. Por outro lado, há nações, como a Venezuela, onde a violência tem crescido muito. Por uma decisão política, resolveram armar as pessoas para fazer a revolução, e elas agora podem estar roubando e assaltando. Argentina e Paraguai também têm problemas.
ÉPOCA – O senhor defende, não é de hoje, uma articulação de alcance mundial para a legalização das drogas. Esse debate ganhou força?
Velásquez  – 
A legalização não é a única saída para o problema. Mas é uma das soluções, ao lado de ações no âmbito de segurança pública e Justiça. Nos Estados Unidos, a maconha já é legalizada em alguns estados. No Uruguai, começou um experimento interessante por iniciativa do presidente José  Mujica. É um debate que está avançando muito. Há uns anos ganhou o impulso de ex-presidentes, como Fernando Henrique Cardoso e César Gaviria. Há exatamente seis anos, nosso atual presidente, Juan Manuel Santos, levantou esse debate num encontro antidrogas. O tema, que era discutido por acadêmicos, intelectuais e investigadores, passou a ser uma posição de governo
Fonte: revista Época Online
http://epoca.globo.com/brasil/noticia/2017/08/hugo-acero-velasquez-o-crime-se-globalizou-antes-das-nacoes.html

Arqueólogos israelenses descobrem mosaico de 1.500 anos


quinta-feira, 27 de julho de 2017

As águas do tempo: a história do banho

Por um tempo, o hábito se tornou tão incomum, que algumas civilizações tomavam apenas um banho por ano

Bruno Vieira Feijó

 A obra barroca 'The Bathing Pool' | <i>Crédito: Wikimedia Commons
A obra barroca 'The Bathing Pool' | Crédito: Wikimedia Commons

A humanidade melhora com o passar dos séculos, certo? Nem sempre. Prova disso é o que ocorreu com um de nossos hábitos mais comuns, o banho. Durante a Idade Média, os ocidentais abandonaram os sofisticados rituais de limpeza da Antiguidade e mergulharam numa profunda sujeira. Principalmente por causa da religião, o homem medieval comum achava suficiente tomar um banho por ano. Foi preciso muito tempo – e alguns bons exemplos dos povos orientais e indígenas – para que voltássemos às nossas asseadas origens.
Acredita-se que todos os povos, desde tempos imemoriais, tenham praticado alguma forma de higiene pessoal. Os primeiros registros do ato de se banhar individualmente pertencem ao antigo Egito, por volta de 3000 a.C. Os egípcios realizavam rituais sagrados na água e tomavam ao menos três banhos por dia, dedicados a divindades como Thot, deus do conhecimento, e Bes, deus da fertilidade.
“Mais do que limpar o corpo, eles presumiam que a água purificava a alma”, diz o egiptólogo francês Christian Jacq, fundador do Instituto Ram­sés, em Paris. “A crença valia tanto para a realeza, cortejada com óleos aromáticos e massagens aplicadas pelos escravos, quanto para as populações mais pobres, que recorriam inclusive a profissionais de rua quando não conseguiam tratar da própria beleza.” O apreço pela higiene é o motivo ao qual arqueólogos atribuíram a sobrevivência dos egípcios às pragas e doenças que assolaram a Antiguidade.
A Grécia foi outro local em que os banhos prosperaram. Em Cnossos e Faístos, na ilha de Creta, os palácios de 1700 a.C. a 1200 a.C, surpreenderam por suas avançadas técnicas de distribuição da água. “Todo banquete que precisava ser luxuoso incluía uma sessão de banho para os convidados”, explica Georges Vigarello, professor de Ciências da Educação da Universidade de Paris-5.
Embora os gregos tenham iniciado a prática dos banhos públicos no Ocidente, os pioneiros nos balneários coletivos foram os babilônios. A diferença é que, na Grécia, o banho não era motivado apenas pela higiene e espiritualidade. Entre 800 a.C. e 400 a.C., o esporte, particularmente a natação, era um dos três pilares da educação juvenil – ao lado das letras e da música. Bom cidadão era aquele que sabia ler e nadar, como comprovam imagens presentes em centenas de vasos de cerâmica pintados naquela época.
Os romanos herdaram muito da cultura da Grécia, incluindo a adoração pelo banho. Mas, entre eles, esse hábito tomou proporções inéditas. Enquanto construíam um dos maiores impérios de todos os tempos, os romanos levavam a suntuosidade de suas termas (enormes balneários públicos) aos mais diversos lugares. Por causa disso, algumas cidades europeias ganharam nomes que incluem, literalmente, a palavra “banho” – é o caso de Bath, na Inglaterra, Baden Baden e Wiesbaden, na Alemanha, e Aix-le-Bains, na França. Mas as maiores termas ficavam mesmo na capital do império, Roma: eram as de Caracala, inauguradas em 217, e as de Diocleciano, do ano 305. Esses edifícios, cujos nomes homenageavam imperadores, tinham capacidade para receber, respectivamente, 1.600 e 3.200 pessoas.
Romanas nas termas da Pompéia / Wikimedia Commons
A engenharia romana teve que se desdobrar para acompanhar o frenesi dos banhos. Na onda das termas surgiu o hipocausto, uma espécie de assoalho construído sobre câmaras de gás subterrâneas. Esse sistema ajudava a esquentar os cômodos e mantê-los climatizados. Cada salão das termas era decorado com estatuetas e mosaicos. Ao redor de um pátio central, havia uma espécie de sauna, um vestiário e piscinas de água quente, morna, fria e ao ar livre. Os complexos de banho do Império Romano tinham ainda jardins, bibliotecas e restaurantes (como se fossem antepassados dos spas e resorts de hoje).
As visitas diárias às termas tinham fundo religioso, já que o banho público era um ato de adoração à deusa Minerva. E o costume não era restrito às classes mais abastadas. Boêmios, prostitutas, imperadores, filósofos, políticos, velhos e crianças, todos se banhavam no mesmo espaço, sem constrangimento. Ponto de encontro e de troca de informações, era o lugar onde um aristocrata podia medir sua popularidade de acordo com a quantidade de cumprimentos que recebia. “Em épocas de plebiscito, os plebeus nem precisavam pagar a pequena taxa que geralmente era cobrada. Os custos da entrada eram cobertos pelos ricos e nobres”, escreveu o historiador francês Jérôme Carcopino no livro Aspects Mystiques de la Rome Païenne (“Aspectos místicos da Roma pagã”).
Prazeres perdidos
A liberdade que os romanos tinham de se banhar e ficar nus em público foi entrando em declínio à medida que uma nova religião se tornava popular por todo o império. Era o cristianismo, que pregava a castidade e se tornou a crença oficial de Roma no ano 380. Menos de um século depois, o império viria abaixo, junto com vários de seus costumes. Enquanto isso, a Igreja seguiria cada vez mais forte. Foi a gota d’água para que os prazeres do banho fossem boicotados durante cinco séculos. 

Mania de brasileiro
A higiene dos índios demorou a ser aceita pela elite portuguesa
Obra mostra como a água dominava a vida dos indígenas  /  Albert Eckout
Quando aportaram por aqui, em 1500, os portugueses se assustaram com a limpeza dos índios, que mergulhavam em rios e no mar até 12 vezes ao dia. Pero Vaz de Caminha, escrivão da esquadra de Cabral, chegou a escrever, surpreso: “São tão limpos e tão gordos e tão formosos que não podem ser mais”. Os portugueses acabaram cedendo aos hábitos dos nativos brasileiros, percebendo que eles eram muito mais saudáveis que os da Europa. Os membros da corte, entretanto, resistiram aos deleites da água, pois estavam acostumados a passar meses sem sequer mudar de camisa. Já os mais humildes aceitaram o banho mais facilmente – começaram lavando os pés diariamente em bacias. “Com o tempo, o rio se tornou extensão da casa. Sem rede encanada, era nele onde se lavavam as roupas, as louças e o corpo”, escrevem Renata Ashcar e Roberta Faria no livro Banho – Histórias e Rituais. No século 18, algumas cidades já usavam a água de poços e chafarizes mantidos pelo Estado. Quando a família real portuguesa chegou ao Brasil, em 1808, fez do Rio de Janeiro o primeiro município a contar com água encanada no país.

➽ Começava a Idade Média, época em que a cristandade varreu da Europa as termas, o esporte e outras atividades em que as pessoas se expusessem demais. Gregório I, o Grande, que foi papa entre 590 e 604, chegou a qualificar o corpo de “abominável vestimenta da alma” – ou seja, a carne era o depósito de tudo o que era pecado. Com tantos pudores, o prazer de tomar banho de corpo inteiro passou a ser visto como um ato de luxúria. Lavar as mãos e o rosto (às vezes nem isso) bastava. Quando muito, era aceitável tomar um banho por ano. Um único barril de água servia para toda a família, sem que a água fosse trocada. “O privilégio do primeiro mergulho era do homem da casa, enquanto as crianças ficavam por último, na sopa suja que sobrava”, escrevem Renata Ashcar e Roberta Faria no livro Banho – Histórias e Rituais.
Sem água corrente, as pessoas se viravam como podiam. A limpeza da pele era feita friccionando-a com um pano úmido. Mas, mesmo entre os nobres, o ritual era repetido apenas a cada dois dias. Os cabelos deviam ser escovados com um tipo de pó que supostamente mantinha os fios limpos. E, como não podia deixar de ser, era preciso muita maquiagem e perfume – nas roupas, nos corpos e nos cabelos – para amenizar o mau cheiro.
Toda essa falta de higiene abriu as portas para epidemias devastadoras, propagadas principalmente por roedores. Foi o caso da peste, que matou cerca de 200 milhões de pessoas ao longo da Idade Média. Ao notar que muitos judeus não pegavam a doença, a Inquisição chegou a julgá-los e executá-los, acusados de bruxaria. Mas eles, na verdade, não agiam de má-fé – muito pelo contrário. O que fazia os judeus serem menos suscetíveis a doenças era uma recomendação religiosa que seguiam: lavar as mãos antes das refeições e tomar banho ao menos uma vez por semana.
Escravos do antigo Egito dando banho em seu senhor / Wikimedia Commons
Foi só durante as Cruzadas, as guerras religiosas travadas entre os séculos 11 e 13, que muitos europeus puderam redescobrir as delícias da água, na aproximação – ainda que violenta – entre Oriente e Ocidente. É que, fora dos territórios dominados pela Igreja, onde ocorreram muitos combates, os banhos públicos da Antiguidade haviam sido mantidos, com seus rituais e instalações sofisticados. Nas hamans, casas de banho turco-árabes, os muçulmanos aproveitavam o prazer de alternar águas quentes e frias. Sessões de banhos completos incluíam depilação, massagem, hidratação, branqueamento dos dentes e maquiagem – ritual que, até hoje, é seguido meticulosamente. Os cavaleiros cristãos que partiram para o Oriente com a missão de tomar a Terra Santa dos muçulmanos não se fizeram de rogados. “Não só passaram a se banhar por lá mesmo, como espalharam pela Europa a prática de jogar água pelo corpo quando retornavam dos combates”, contam Renata Ashcar e Roberta Faria. A certa altura, a atitude contagiou o restante da população européia medieval e alguns banhos públicos chegaram a reabrir as portas.
Nem só aos sábados
Depois do fim da Idade Média, a religião voltou a suprimir os banhos no Ocidente. Nos séculos 16 e 17, irredutíveis cristãos bradavam que a água dilatava os poros da pele, por onde a saúde escaparia e o mal penetraria, em formas como a friagem e os germes. Todo mundo acreditou nisso, incluindo os médicos. E, enquanto nações como Portugal e Espanha descobriam, na América, populações que amavam tomar banho, os europeus voltavam para o mundo da sujeira.
Existiam algumas medidas de higiene, é verdade. Mas elas não eram lá essas coisas. Antes ou depois de qualquer atividade física e após as refeições enxugava-se a pele com um pano e simplesmente mudava-se de camisa. Supunha-se que a roupa branca agia como “esponja” e absorvia a sujeira. Assim, trocar de roupa passou a ser sinônimo de se lavar – e, para se sentir limpas, as pessoas usavam punhos e colarinhos impecáveis.
A privação de água durou até o século 18, quando se provou definitivamente que as doenças se originavam não do banho, mas da falta dele. O iluminismo, que celebrava a razão e defendia a tese de que o mundo deveria ser esclarecido pela ciência, ajudou a fazer do ato de se lavar o símbolo da saúde. Banhos públicos para higiene, esporte e terapia foram, aos poucos, sendo reabilitados.
Mas, após anos de religiosos dizendo o contrário, não foi todo mundo que voltou a tomar banho, mesmo com insistentes conselhos médicos. Quando a célebre rainha Vitória subiu ao trono, em 1837, ainda não havia local para banho no palácio de Buckingham, sede da coroa inglesa. Até os anos 1870, eram raras as casas ocidentais que tinham um cômodo para seus habitantes se lavarem.
Já cientes do bem que a água podia fazer pela saúde, médicos banhavam doentes à força em hospitais. “Não era difícil encontrar um sujeito que, tendo de enfrentar a experiência do primeiro banho, demonstrasse verdadeiro terror, gritasse, tentasse escapar da sensação de sufocamento e palpitação que a água fria proporcionava”, diz um relato da época, citado pelo historiador americano Law­rence Wright no livro Clean and Decent: The Fascinating History of the Bathroom (“Limpo e Decente: A Fascinante História do Banheiro”).
Os banhos rotineiros reapareceram definitivamente nas grandes cidades ocidentais apenas por volta dos anos 1930. Mas, no começo, eles não eram lá tão frequentes. Eram tomados aos sábados, dia em que também eram trocadas as roupas de baixo das crianças. Nessa época, navios ofereciam cabines de banho e barcos delimitavam áreas em rios que serviam como piscinas naturais. Após o fim da Segunda Guerra, em 1945, quando boa parte das casas europeias teve que ser reconstruída, elas ganharam banheiros, abastecidos com a cada vez mais comum água encanada. A França foi a pioneira nas inovações sanitárias, seguida pela Inglaterra e pela Alemanha.
Hoje, voltamos a expor nossos corpos sem pudor, como fazíamos na Antiguidade. Mas isso não ocorre mais durante o ato de se lavar, e sim depois dele. “Ao mesmo tempo em que os trajes começam a valorizar o corpo e deixar adivinhar suas formas, realçando-as e, por vezes, revelando o bronzeado e a pele lisa e firme, o banho se transforma num hábito estritamente íntimo”, escrevem os historiadores franceses Gerard Vincent e Antoine Prost na obra História da Vida Privada: da Primeira Guerra aos Dias Atuais. Tomar banho virou um método individual de se preparar para a exposição pública. Não é à toa que todo banheiro contemporâneo que se preze tem um espelho – um objeto que, dificilmente seria visto num lugar como esse.

 Difícil higiene
Saiba como os antigos se viravam sem sabão, chuveiro ou xampu
Antigo balneário romano na Inglaterra / Reprodução 
➽ Ferro no couro: Uma espátula de ferro de mais ou menos 30 centímetros, o strigil era usado pelos antigos gregos e romanos para esfregar vigorosamente a pele, untada com um óleo verde-oliva. Entre os ricos, essa limpeza era feita por escravos.
➽ Cascata caseira: Sem rede encanada, os povos antigos tomavam banho com água derramada de bacias e jarros. Às vezes a pessoa ficava dentro de uma banheira rasa de pedra, mas o mais comum era se inclinar num banco de pedra.
➽ Limpeza pesada: Os babilônios ferviam gordura animal com cinzas vegetais para passar sobre a pele e os cabelos. Já no Egito, uma mistura de bicarbonato de sódio, cinzas e argila fazia as vezes do sabão.
➽ Arranca-cascão: No Oriente, materiais ásperos feitos de rocha ou cerâmica eram usados para esfoliar a pele e retirar a sujeira. O ritual se completava com o uso de água de flor de laranjeira, pentes, pastas e perfumes.
➽ Asseio preguiçoso: As banheiras portáteis se popularizaram no fim do século 19, primeiramente entre os ingleses. Quando um fidalgo ia tomar banho, camareiras carregavam a banheira para o quarto e a enchiam à mão, com água aquecida.

Saiba mais
Banho - Histórias e Rituais, Renata Ashcar e Roberta Faria, 2006
Uma História do Corpo na Idade Média, Jacques Le Goff e Nicolas Truong, 2006
Clean and Decent: the Fascinating History of the Bathroom, Lawrence Wright, 2005 

Retirado da Revista Aventuras na História
Link: http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/aguas-tempo-historia-banho-435136.phtml#.WXpJQOmQzIU

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