Murilo Rubião (*1916 +1991)
Desde o lançamento de sua primeira obra, chamada O ex-mágico, e que veio ao mundo no distante ano de 1947, o escritor Murilo Rubião já trazia em seu estilo as tintas do gênero que, alguns bons anos depois, seria chamado de literatura fantástica (aquelas narrativas baseadas em acontecimentos surreais ou inexplicáveis pelas convenções da lógica).
Pois vejam bem! Debaixo das narinas e na frente dos olhos cegos da crítica brasileira de então, o tímido (e também talentoso) contista das Minas Gerais abria uma trilha que, posteriormente, tornaria notáveis autores como Julio Cortázar e o genial García Márquez.
De escrita fácil, direta e inteligente, os contos de Rubião invadem o espaço da fantasia como caminho para encetar uma crítica sutil à realidade.
Foi certamente daqueles escritores raros e que tiveram a má sorte de um contexto histórico que lhe foi desfavorável e da pouca divulgação de suas obras, apesar da inquestionável qualidade de seus textos. Por isso mesmo resolvi rememorá-lo aqui.
A seguir, deixo a vocês um conto do singular autor mineiro, para o deleite dos leitores deste blog. Espero que gostem! Grande abraço!
OS DRAGÕES
"Fui irmão de dragões e companheiro de avestruzes." (Jó, XXX, 29)
Os primeiros dragões que apareceram na cidade muito
sofreram com o atraso dos nossos costumes. Receberam precários
ensinamentos e a sua formação moral ficou irremediavelmente
comprometida pelas absurdas discussões surgidas com a
chegada deles ao lugar.
Poucos souberam compreendê-los e a ignorância geral fez
com que, antes de iniciada a sua educação, nos perdêssemos
em contraditórias suposições sobre o país e a raça a que poderiam
pertencer.
A controvérsia inicial foi desencadeada pelo vigário.
Convencido de que eles, apesar da aparência dócil e meiga, não
passavam de enviados do demônio, não me permitiu educá-los.
Ordenou que fossem encerrados numa casa velha, previamente
exorcismada, onde ninguém poderia penetrar.
Ao se arrepender
de seu erro, a polêmica já se alastrara e o velho gramático
negava-lhes a qualidade de dragões,“coisa asiática, de importação
europeia”. Um leitor de jornais, com vagas ideias científicas e um
curso ginasial feito pelo meio, falava em monstros antediluvianos.
O povo benzia-se, mencionando mulas sem cabeça, lobisomens.
Apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os
nossos hóspedes, sabiam que os novos companheiros eram
simples dragões. Entretanto, elas não foram ouvidas.
O cansaço e o tempo venceram a teimosia de muitos.
Mesmo mantendo suas convicções, evitavam abordar o assunto.
Dentro em breve, porém, retomariam o tema. Serviu de
pretexto uma sugestão do aproveitamento dos dragões na
tração de veículos. A ideia pareceu boa a todos, mas se desavieram
asperamente quando se tratou da partilha dos animais.
O número destes era inferior ao dos pretendentes.
Desejando encerrar a discussão, que se avolumava sem
alcançar objetivos práticos, o padre firmou uma tese: os dragões
receberiam nomes na pia batismal e seriam alfabetizados.
Até aquele instante eu agira com habilidade, evitando
contribuir para exacerbar os ânimos. E se, nesse momento, faltou-me
a calma, o respeito devido ao bom pároco, devo culpar a
insensatez reinante. Irritadíssimo, expandi o meu desagrado:
– São dragões! Não precisam de nomes nem do batismo!
Perplexo com a minha atitude, nunca discrepante das
decisões aceitas pela coletividade, o reverendo deu largas à
humildade e abriu mão do batismo. Retribuí o gesto, resignando-me
à exigência de nomes.
Quando, subtraídos ao abandono em que se encontravam,
me foram entregues para serem educados, compreendi a extensão
da minha responsabilidade. Na maioria, tinham contraído
moléstias desconhecidas e, em consequência, diversos vieram
a falecer. Dois sobreviveram, infelizmente os mais corrompidos.
Mais bem-dotados em astúcia que os irmãos, fugiam, à noite,
do casarão e iam se embriagar no botequim. O dono do bar se
divertia vendo-os bêbados, nada cobrava pela bebida que lhes
oferecia. A cena, com o decorrer dos meses, perdeu a graça e o
botequineiro passou a negar-lhes o álcool. Para satisfazerem o
vício, viram-se forçados a recorrer a pequenos furtos.
No entanto eu acreditava na possibilidade de reeducá-los e
superar a descrença de todos quanto ao sucesso da minha missão.
Valia-me da amizade com o delegado para retirá-los da cadeia,
onde eram recolhidos por motivos sempre repetidos: roubo,
embriaguez, desordem.
Como jamais tivesse ensinado dragões, consumia a maior
parte do tempo indagando pelo passado deles, família e métodos
pedagógicos seguidos em sua terra natal. Reduzido material
colhi dos sucessivos interrogatórios a que os submetia. Por terem
vindo jovens para a nossa cidade, lembravam-se confusamente
de tudo, inclusive da morte da mãe, que caíra num precipício,
logo após a escalada da primeira montanha. Para dificultar a
minha tarefa, ajuntava-se à debilidade da memória dos meus
pupilos o seu constante mau humor, proveniente das noites
maldormidas e ressacas alcoólicas.
O exercício continuado do magistério e a ausência de filhos
contribuíram para que eu lhes dispensasse uma assistência paternal.
Do mesmo modo, certa candura que fluía dos seus olhos
obrigava-me a relevar faltas que não perdoaria a outros discípulos.
Odorico, o mais velho dos dragões, trouxe-me as maiores contrariedades. Desastradamente simpático e malicioso, alvoroçava-se
todo à presença de saias. Por causa delas, e principalmente
por uma vagabundagem inata, fugia às aulas. As mulheres
achavam-no engraçado e houve uma que, apaixonada, largou o
esposo para viver com ele.
Tudo fiz para destruir a ligação e não logrei separá-los. Enfrentavam-me
com uma resistência surda, impenetrável. As minhas
palavras perdiam o sentido no caminho: Odorico sorria para
Raquel e esta, tranquilizada, debruçava-se novamente sobre a
roupa que lavava.
Pouco tempo depois, ela foi encontrada chorando perto
do corpo do amante. Atribuíram sua morte a tiro fortuito,
provavelmente de um caçador de má pontaria. O olhar do
marido desmentia a versão.
Com o desaparecimento de Odorico, eu e minha mulher
transferimos o nosso carinho para o último dos dragões. Empenhamo-nos
na sua recuperação e conseguimos, com algum
esforço, afastá-lo da bebida. Nenhum filho talvez compensasse
tanto o que conseguimos com amorosa persistência. Ameno no
trato, João aplicava-se aos estudos, ajudava Joana nos arranjos
domésticos, transportava as compras feitas no mercado. Findo o
jantar, ficávamos no alpendre a observar sua alegria, brincando com
os meninos da vizinhança. Carregava-os nas costas, dava cambalhotas.
Regressando, uma noite, da reunião mensal com os pais
dos alunos, encontrei minha mulher preocupada: João acabara
de vomitar fogo. Também apreensivo, compreendi que ele
atingira a maioridade.
O fato, longe de torná-lo temido, fez crescer a simpatia que
gozava entre as moças e rapazes do lugar. Só que, agora,
demorava-se pouco em casa. Vivia rodeado por grupos alegres,
a reclamarem que lançasse fogo. A admiração de uns, os
presentes e convites de outros, acendiam-lhe a vaidade.
Nenhuma festa alcançava êxito sem a sua presença. Mesmo o
padre não dispensava o seu comparecimento às barraquinhas
do padroeiro da cidade.
Três meses antes das grandes enchentes que assolaram o
município, um circo de cavalinhos movimentou o povoado, nos
deslumbrou com audazes acrobatas, engraçadíssimos palhaços,
leões amestrados e um homem que engolia brasas. Numa das
derradeiras exibições do ilusionista, alguns jovens interromperam
o espetáculo aos gritos e palmas ritmadas:
– Temos coisa melhor! Temos coisa melhor!
Julgando ser brincadeira dos moços, o anunciador aceitou
o desafio:
– Que venha essa coisa melhor!
Sob o desapontamento do pessoal da companhia e os
aplausos dos espectadores, João desceu ao picadeiro e realizou
sua costumeira proeza de vomitar fogo.
Já no dia seguinte, recebia várias propostas para trabalhar
no circo. Recusou-as, pois dificilmente algo substituiria o
prestígio que desfrutava na localidade. Alimentava ainda a
pretensão de se eleger prefeito municipal.
Isso não se deu. Alguns dias após a partida dos saltimbancos,
verificou-se a fuga de João.
Várias e imaginosas versões deram ao seu desaparecimento.
Contavam que ele se tomara de amores por uma das trapezistas,
especialmente destacada para seduzi-lo; que se iniciara em
jogos de cartas e retomara o vício da bebida.
Seja qual for a razão, depois disso muitos dragões têm
passado pelas nossas estradas. E por mais que eu e meus alunos,
postados na entrada da cidade, insistamos que permaneçam
entre nós, nenhuma resposta recebemos. Formando longas filas,
encaminham-se para outros lugares, indiferentes aos nossos apelos.
[Conto publicado na revista Magis Cultura Mineira . N.º 7 . Abril de 2012.]