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domingo, 23 de dezembro de 2012

A história da homossexualidade e a luta pela dignidade


Durante décadas, com base em teorias científicas diversas, a homossexualidade foi considerada uma doença mental e os gays, submetidos aos mais absurdos tratamentos. Somente em 1990 a OMS a retirou da condição de patologia

Texto Cláudia de Castro Lima | Design Villas |
No outono de 1933, o campo de concentração nazista de Fuhlsbuttel, no norte de Hamburgo, na Alemanha, foi o primeiro a começar a receber uma nova categoria de presos. Mal desciam dos trens, eram marcados com a letra A, mais tarde substituída por um triângulo cor-de-rosa. Diferentemente de suas intenções em relação aos judeus e ciganos, os soldados nazistas não pretendiam exterminar os homossexuais. Queriam "curá-los". Para isso, os prisioneiros foram submetidos a alguns tratamentos bizarros e cruéis - de acordo com a teoria científica vigente à época, a homossexualidade era uma patologia mental.
Nos campos de concentração da Alemanha nazista, os homossexuais tinham os piores trabalhos e eram vistos como doentes e pervertidos até pelos demais confinados. No campo de Flossenbürg, os nazistas abriram uma casa de prostituição e forçavam os homossexuais a visitá-la. Os gays que se "curavam" eram enviados por "bom comportamento" para uma divisão militar para combater os russos. Outro tratamento oferecido aos homossexuais foi elaborado pelo endocrinologista nazista holandês Carl Vaernet. Ele castrou seus pacientes no campo de Buchenwald e depois injetou doses muito altas de hormônios masculinos, para observar sinais de "masculinização". Estima-se que 55% dos gays que entraram nos campos de concentração morreram - algo entre 5 mil e 15 mil pessoas. O fim da guerra, no entanto, não trouxe alento. Americanos e britânicos forçaram os homossexuais a cumprir o restante da pena que os nazistas tinham imposto a eles em prisões normais.
Em um campo de concentração, nazistas abriram um prostíbulo para auxiliar na "cura" dos gays. Um dos tratamentos "clínicos" era a lobotomia

As teorias científicas que classificaram a homossexualidade como doença começaram a despontar na Europa no fim do século 19. Somente um século depois, a Organização Mundial da Saúde retirou-a do Manual de Diagnóstico e Estatística dos Distúrbios Mentais, que a classificava como desvio ou perversão - assim, aboliu o termo "homossexualismo", já que "ismo", em saúde, é um sufixo que caracteriza condição patológica. A ação, tardia, foi resultado de uma dura e dolorosa briga pelos direitos dos homossexuais. De hábito cultural na Antiguidade, a condição homossexual virou pecado na Idade Média, crime na Moderna e patologia (com direito a tratamentos que incluíam choques elétricos e lobotomia) até pouco tempo atrás.

No começo do século 19, o homossexual era tratado ao mesmo tempo como um anormal e um pervertido. "A medicina, desde o fim do século 18, tomou emprestada a concepção clerical da homossexualidade e esta se tornou uma doença, ou melhor, uma enfermidade que um exame clínico podia diagnosticar", afirma o historiador medievalista Philippe Ariès.

"Em meados de 1850, médicos europeus começaram a pesquisar sobre a homossexualidade, o que aos poucos deu ensejo a uma nova percepção de que a condição era relativamente endêmica a certos indivíduos e (segundo o julgamento da maior parte dos especialistas) patológica", afirma Peter Stearns em seu livro História da Sexualidade. "Cada vez mais, cientistas argumentavam que a homossexualidade era um traço de caráter que se desenvolvia como resultado de alguma falha na educação infantil." Acompanhando o discurso da ciência, o médico austro-húngaro Karoly Maria Benkert criou o termo "homossexualidade" para designar todas as formas de relação carnal entre pessoas do mesmo sexo. No fim do século 19, médicos criaram a sexologia. Seus trabalhos foram influenciados pelas teorias de um psiquiatra austríaco, Richard Von Krafft-Ebing, que a considerava uma tara ou uma degeneração. Em seu livro Psychopathia Sexualis, publicado em 1886, listou todas as formas possíveis de perversão, numa espécie de catálogo - a homossexualidade, claro, constava dele.

Em 1969, a polícia de Nova York invadiu o bar Stonewall Inn, frequentado por homossexuais, e prendeu 200 pessoas. Foi recebida na rua com pedras e garrafas. Era o início do "Gay Power"
Foi no meio dessa turbulência que um caso tornou-se emblemático na história dos direitos dos homossexuais: o do escritor e dramaturgo irlandês Oscar Wilde. Casado e pai de dois filhos, Wilde teve várias relações com homens e apaixonou-se por Alfred Douglas, filho do marquês de Queensberry. Os dois conheceram o submundo homossexual de Londres, que frequentavam para satisfazer suas predileções por jovens da classe operária. O pai de Alfred Douglas acusou Wilde e o filho de manterem uma "relação repugnante e chocante". O dramaturgo processou o marquês por difamação, só que o processo virou-se contra ele. Citado por sodomia com pelo menos dez jovens, acabou declarado culpado por atentado ao pudor e condenado a dois anos de trabalhos forçados.

"Tratamentos" para o homossexualismo não tardaram a surgir. Hipnose, castração e terapias reparativas para alterar as preferências e desejos dos pacientes foram tentadas. Uma terapia usada era a lobotomia - cirurgia que retirava uma parte do cérebro. Na Alemanha Ocidental, elas só deixaram de ser aplicadas em 1979. Na Dinamarca, o número de pessoas submetidas à operação foi de 3,5 mil, sendo a última em 1981. Nos EUA, as vítimas chegam à casa das dezenas de milhares.

A situação começou a ser revertida só na última metade do século 20. Em 28 de junho de 1969, detetives à paisana entraram no bar Stonewall Inn, em Nova York, e expulsaram cerca de 200 clientes gays de lá. Ao saírem do bar com os presos, foram recebidos na rua por uma multidão revoltada com a frequência dos abusos, que atirou pedras e garrafas. Os distúrbios de Stonewall deram origem ao "Gay Power" e marcaram o início dos protestos públicos contra a discriminação de homossexuais.

"As manifestações sozinhas não seriam lembradas hoje por transformar políticas e vidas gays se não fossem seguidas por organizações que transformaram a afronta pura em força social contínua", afirma a jornalista Sherry Wolf em Sexuality and Socialism: History, Politics and Theory of LGBT Liberation (inédito em português). Os ativistas perceberam ser preciso organização para combater a homofobia - um dos pontos principais era fazer com que as pessoas não tivessem mais medo ou vergonha de sair do armário. Vários protestos foram marcados, criaram-se grupos ativistas e jornais com propostas gays, como Come Out! e Gay Power, para expressar o desejo de uma imprensa independente e militante. Em junho de 1970, as primeiras marchas do orgulho gay aconteceram em Los Angeles, São Francisco, Chicago e Nova York. Uma das principais vitórias aconteceu em 1970, quando o cofundador dos Panteras Negras, Huey Newton, expressou publicamente seu apoio ao movimento pró-gay - era a primeira vez que um movimento ativista majoritariamente heterossexual fazia isso. Os homossexuais comemoraram ainda mais quando, em 1973, a Associação de Psiquiatria Americana desclassificou a homossexualidade como patologia. Os danos que as chamadas "terapias de reversão" causavam aos pacientes foram trazidos à tona.

O professor do departamento de Psicologia Clínica da Unesp Fernando Silva Teixeira Filho aponta para pessoas como o político e ativista Harvey Milk como decisivas na luta contra o preconceito. "Milk estabeleceu princípios claros de luta: a busca por direitos iguais a todos os seres humanos, independentemente de orientação sexual ou credo", afirma.

Em 1981, o Conselho Europeu emitiu uma resolução exortando seus membros a descriminalizar a homossexualidade. Em 1990, a Organização Mundial de Saúde declarou que "a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão". Três anos depois, a nova classificação entrou em vigor nos países-membros nas Nações Unidas. No Brasil, deixou de ser tratada por psicólogos em 1999. Na contramão, os autointitulados "psicólogos de Cristo" se propõem a "curar" gays . E há projetos de lei como o do deputado João Campos (PSDB-GO), que pretende sustar dois artigos da lei cujo texto proíbe os psicólogos de emitir opiniões públicas ou tratar a homossexualidade como doença. A Câmara dos Deputados discutiu em junho pela primeira vez o projeto de "cura gay".

Harvey Milk e são francisco

Como um dono de loja ajudou a tornar a cidade porto seguro para homossexuais


São Francisco é conhecida por ser o "paraíso gay" mundial. A descoberta de ouro a partir de 1848 fez o vilarejo portuário transformar-se radicalmente. Mais de 300 mil homens chegaram de toda parte e 90% da população do local passou a ser masculina. "A preservação da virtude e dignidade era um esforço tão desanimador quanto uma colina de São Francisco", escreve William Lipsky, autor de Gay and Lesbian San Francisco (sem versão em português). "Com poucas mulheres na cidade e menos ainda nas minas, os homens olharam uns para os outros para buscar todo tipo de conforto." Os poucos saloons, pensões e clubes ficavam lotados de homens, que viviam muito próximos uns dos outros e ainda tinham de dividir todo tipo de intimidade, do banheiro aos cobertores. A população gay de São Francisco sofreu impacto semelhante mais tarde outra vez, com a Segunda Guerra. Na época, todo militar americano suspeito de ser homossexual era enviado para a cidade, para ser avaliado por uma junta que decidiria se ele continuaria ou não na carreira. Entre 1941 e 1945, quase 10 mil gays e lésbicas foram dispensados do serviço militar - e muitos ficaram por lá. Criaram assim, perto da baía, uma vizinhança gay friendly. Durante a década de 1970, muitos gays abriram negócios no bairro de Castro. Foi quando despontou a figura de Harvey Milk. O judeu nascido em Nova York, ex-oficial da Marinha e analista de seguros em Wall Street, mudou-se para São Francisco em 1972 decidido a não esconder mais sua homossexualidade. Abriu uma loja de fotografia no bairro, envolveu-se com questões sociais, descobriu a vocação política e conseguiu, em 1977, eleger-se para o Comitê de Supervisores de São Francisco - o primeiro político abertamente homossexual a ser eleito. Foi assassinado por um colega homofóbico junto com o prefeito da cidade, George Moscone.

Os gays no Brasil
No país, 10,4% dos homens são homo ou bissexuais e 6,3% das brasileiras são lésbicas ou bissexuais (fonte: Carmira Abdo/IUSP)
O crime por sodomia já era previsto em lei desde o Descobrimento, segundo as Ordenações Manuelinas, que vigoravam em Portugal: era comparado ao de lesa-majestade, segundo o jornalista, dramaturgo e cineasta João Silvério Trevisan em seu livro Devassos no Paraíso. O código seguinte, as Ordenações Filipinas, que durou até o Império, previa que os homossexuais fossem queimados e seus bens, confiscados. Como ocorreu no resto do mundo, as teorias higienistas atingiram o Brasil no século 19. Avaliações supostamente científicas começaram a ser produzidas por aqui. O jurista José Viveiros de Castro relacionou na época, por exemplo, as possíveis causas da "anomalia": "loucura erótica" resultante de psicopatias sexuais, falhas hereditárias no desenvolvimento glandular, vida insalubre, alcoolismo e excesso de masturbação eram algumas. O país reconhece a união civil homossexual desde 2004 e, há dois anos, permite a adoção de crianças por casais do mesmo sexo. Transgêneros podem mudar de sexo legalmente. Mas o casamento homossexual é proibido e os gays ainda são vítimas de agressão física no país por causa de sua opção sexual.
Fonte: Aventuras na História

terça-feira, 17 de abril de 2012

O direito da mulher de não ser um útero à disposição da sociedade


Na última quinta-feira (12/4), o Supremo Tribunal Federal fez mais do que permitir a interrupção de gravidez de fetos anencéfalos. A corte deu o primeiro passo no sentido de reconhecer que as mulheres são donas de seus direitos reprodutivos. Nas palavras do advogado Luís Roberto Barroso , que representou a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde, autora da ação, " o direito de não ser um útero à disposição da sociedade, mas de ser uma pessoa plena, com liberdade de ser, pensar e escolher".
A plenitude dos direitos reprodutivos da mulher perpassou os votos de diversos ministros, no mesmo sentido dos argumentos de Barroso. Em seus 15 minutos de sustentação oral na tribuna do Supremo, o advogado fundou seus argumentos em quatro pontos: 1 - Interrupção de gravidez de feto anencéfalo não é aborto; 2 - Se considerada aborto, a hipótese é colhida pelas exceções que permitem o aborto no Código Penal; 3 - O princípio da dignidade da pessoa humana impede a incidência do Código Penal no caso e; 4 - Viola os direitos fundamentais reprodutivos da mulher obrigá-la a manter a gestação de um feto que não é viável fora do útero.
Os fundamentos guiaram a decisão , tomada por oito votos a dois, de considerar que a interrupção da gestação em casos de anencefalia do feto não é crime. Da tribuna, Barroso tingiu de cores fortes, principalmente, o fundamento da dignidade da mulher.
"Viola a dignidade da pessoa humana o Estado obrigar uma mulher a passar por todas as transformações físicas e psicológicas pelas quais passa uma gestante, só que nesse caso ela estará se preparando para o filho que não vai chegar. O parto para ela não será uma celebração da vida, mas um ritual de morte. Essa mulher não sairá da maternidade com um berço, mas com um pequeno caixão. E terá de tomar remédios para secar o leite que produziu para ninguém", afirmou.
De acordo com o advogado, levar ou não a gestação adiante tem de ser uma escolha da mulher: "Esta é a sua tragédia pessoal, a sua dor. Cada pessoa, nessa vida, deve poder decidir como lidar com o próprio sofrimento. O Estado não tem o direito de querer tomar essa decisão pela mulher. Viola a dignidade da pessoa humana submetê-la a um sofrimento inútil e indesejado".
Confira a transcrição da sustentação oral de Barroso:
Excelentíssimo senhor presidente, senhoras ministras, senhores ministros, senhor procurador-geral da República:
Introdução 
Ao iniciar esta sustentação, meu primeiro pensamento vai para as mulheres, para a condição feminina, que atravessou muitas gerações em busca de igualdade e de proteção dos seus direitos fundamentais. O direito de não ser propriedade do marido, de educar-se, de votar e ser votada, de ingressar no mercado de trabalho. O direito à liberdade sexual, conquistada derrotando todos os preconceitos. E agora, perante esse tribunal, um capítulo decisivo dos seus direitos reprodutivos. O direito de não ser um útero à disposição da sociedade, mas de ser uma pessoa plena, com liberdade de ser, pensar e escolher. Senhores ministros: desde a noite dos tempos, muitos séculos de opressão feminina nos contemplam nessa manhã.

Meu segundo pensamento vai para as pessoas que por convicção religiosa ou filosófica não concordam com as ideias e teses que vou aqui defender. Toda crença sincera e não violenta merece respeito e consideração. Não passa pela minha cabeça mudar a convicção de ninguém. A verdade não tem dono. O pluralismo e a tolerância fazem parte da beleza da vida, da vida boa, da vida ética, da vida que inclui o outro. Aqui se trava um debate entre valores e ideias. Cada um em busca do argumento que possa conquistar maior adesão social. A única coisa ruim em um debate de valores e de ideias é um dos lados poder utilizar, em seu favor, o poder coercitivo do Estado. É um dos lados poder criminalizar o ponto de vista diferente. Essa seria uma visão autoritária e intolerante da vida.
O papel do Estado e do Poder Judiciário, nas questões que envolvem desacordos morais razoáveis, não é o de escolher um lado, mas o de permitir que cada um viva a sua crença, a sua autonomia, o seu ideal de vida boa.
Fundamentos da ação 
A anencefalia é uma má formação congênita que gera como consequência um feto sem cérebro. O diagnóstico dessa anomalia é feito a partir da décima semana de gestação. Como foi comprovado em audiência pública realizada aqui no Supremo Tribunal Federal, o diagnóstico de anencefalia é 100% seguro e ela é letal em 100% dos casos. Esse feto não terá vida extra-uterina.

O pedido nesta ação é que o STF reconheça o direito de a mulher interromper a gestação neste caso, se esta for a sua vontade, independentemente de autorização judicial. Pede-se a interpretação conforme a Constituição dos artigos do Código Penal que criminalizam o aborto para se declarar que eles não incidem nessa hipótese. Diversos fundamentos sustentam essa pretensão.
Primeiro fundamento: A hipótese não é de aborto e o fato é atípico 
A interrupção da gestação de um feto anencefálico não é aborto. É um fato atípico, que não recai na esfera de aplicação do Código Penal. Isso porque o aborto, tal como regido pelo Código, pressupõe a potencialidade de vida extra-uterina do feto. E o feto anencefálico não viverá fora do útero materno, ele não tem essa potencialidade de vida.

No Direito brasileiro não existe uma definição para o momento do início da vida. Mas existe uma definição para o momento em que ocorre a morte: é quando o cérebro para de funcionar. Está na Lei de Transplante de Órgãos. Morte é a morte encefálica, a morte cerebral.
Pois bem: o feto anencefálico não chega sequer a ter início de vida cerebral. Não há sensibilidade, dor ou qualquer rudimento de consciência. Mesmo quem tenha uma posição de absoluta inaceitação do aborto pode apoiar a interrupção da gestação nessa hipótese, porque ela não caracteriza aborto.
Segundo fundamento: Interpretação evolutiva do Código Penal 
Ainda que se admita que a hipótese seja de aborto, está-se aqui diante de uma exceção abrigada no sentido e alcance do Código Penal, de modo implícito, mas inequívoco.

O artigo 128 do Código Penal, como se sabe, prevê expressamente duas situações nas quais não se pune o aborto: a) quando necessário para salvar a vida da gestante; e b) se a gravidez resulta de estupro. Em ambas as hipóteses, o feto tem potencialidade de vida, mas admite-se o aborto. No primeiro caso, ponderando-se a vida do feto com a vida da mãe. No segundo, ponderando-se a vida do feto com a violência física e moral sofrida pela gestante.
No caso da anencefalia, não há vida potencial do feto fora do útero materno. Logo, a interrupção da gestação nessa hipótese é menos gravosa do que nas exceções previstas no Código Penal. Esta possibilidade só não constou expressamente do Código Penal porque ao tempo de sua elaboração, em 1940, não havia meios técnicos para o diagnóstico.
Terceiro fundamento: Dignidade da pessoa humana 
O princípio da dignidade humana paralisa o Código Penal. Ainda que se admita, mais uma vez, para fins de argumentação, que a interrupção da gestação neste cenário seja uma hipótese de aborto, a incidência das normas do Código Penal que criminalizam tal conduta fica paralisada nesse caso, por força da aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana.

Uma das expressões da dignidade humana é o direito à integridade física e psicológica.
Pois bem: viola a dignidade da pessoa humana o Estado obrigar uma mulher a passar por todas as transformações físicas e psicológicas pelas quais passa uma gestante, só que nesse caso ela estará se preparando para o filho que não vai chegar. O parto para ela não será uma celebração da vida, mas um ritual de morte. Essa mulher não sairá da maternidade com um berço, mas com um pequeno caixão. E terá de tomar remédios para secar o leite que produziu para ninguém.
Levar ou não esta gestação a termo tem de ser uma escolha da mulher! Esta é a sua tragédia pessoal, a sua dor. Cada pessoa, nessa vida, deve poder decidir como lidar com o próprio sofrimento. O Estado não tem o direito de querer tomar essa decisão pela mulher. Viola a dignidade da pessoa humana submetê-la a um sofrimento inútil e indesejado.
Quarto fundamento: Viola um conjunto de direitos fundamentais da mulher obrigá-la a manter uma gestação quando ou enquanto o feto não seja viável fora do útero 
A criminalização da interrupção da gestação quando o feto não é viável fora do útero viola um conjunto de direitos fundamentais da mulher, assegurados na Constituição, viola os seus direitos reprodutivos. Essa é a posição adotada por todos os países democráticos e desenvolvidos do mundo, que descriminalizaram não apenas a interrupção em caso de anencefalia, mas em qualquer caso, até a décima segunda semana de gestação. Entre eles: Canadá, Estados Unidos, França, Reino Unido, Alemanha, Itália, Holanda, Japão, Rússia, Espanha, Portugal, Dinamarca, Suécia. Praticamente todos os países da Europa. A criminalização antes do ponto da viabilidade fetal, hoje, é um fenômeno do mundo subdesenvolvido (África, países árabes, América Latina). Estamos atrasados. E com pressa.

Para deixar bem claro: ninguém é a favor do aborto! O aborto é sempre um momento traumático na vida de uma mulher. O papel do Estado é prevenir que ele ocorra. No caso da anencefalia, proporcionando uma dieta rica em ácido fólico. Nas situações gerais, pela educação sexual, pela colocação de meios contraceptivos à disposição das pessoas em idade fértil ou amparando as mulheres que desejam ter seus filhos e enfrentam condições adversas. O aborto não é uma coisa boa, embora possa ser necessária ou inevitável. A sua criminalização, em certos casos, viola direitos fundamentais das mulheres. E o caso posto perante este tribunal é um deles.
Obrigar a mulher a manter a gestação que ela não deseja, quando o feto não tem viabilidade fora do útero viola a sua autonomia da vontade, a sua liberdade existencial. Alguém poderia insistir no argumento da potencialidade de vida do feto, independentemente da sobrevida que ele venha a ter. Mas a verdade é que se o feto não tem viabilidade sem o corpo da mãe, e se a mãe não deseja tê-lo, obrigá-la a levar a gestação a termo significa funcionalizá-la, instrumentalizá-la a um projeto de vida que não é o seu. Ela estará sendo tratada como um meio e não como um fim em si, em violação à sua dignidade.
Em segundo lugar, há violação do direito à igualdade. Só as mulheres engravidam. Se os homens engravidassem, a interrupção da gestação — não apenas do feto anencefálico, mas qualquer gestação — já teria sido descriminalizada há muito tempo, como observou, com a sensibilidade costumeira, o ministro Carlos Ayres. Obrigar uma mulher a manter a gestação que não deseja, não sendo o feto viável fora do útero, é discriminá-la em relação aos homens, que não estão sujeitos a essa obrigação. Ou a escolha é da mulher ou não haverá igualdade.
Tudo sem mencionar o dramático problema de saúde pública e a imensa discriminação contra as mulheres pobres. A criminalização é seletiva e o corte é de classe. De acordo com o Ministério da Saúde, dia sim, dia não uma mulher morre de aborto clandestino no país. Todas pobres.
Quem é a favor da vida deve ser contra a criminalização. De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde, a criminalização não diminui o número de abortos. Apenas impede que ele seja feito de modo seguro e aumenta o número de mortes de gestantes. Em países como o Brasil, quem é a favor da vida tem que ser contra a criminalização.
Conclusão 
Aí estão, à disposição do Tribunal, quatro fundamentos para acolher o pedido. Do mais minimalista ao mais abrangente: não é aborto; a hipótese é colhida pelas exceções do Código Penal; o princípio da dignidade da pessoa humana impede a incidência do Código Penal; viola os direitos fundamentais reprodutivos da mulher obrigá-la a manter a gestação de um feto que não seja viável fora do útero.

Nessa matéria, o processo legislativo, o processo político majoritário, não consegue produzir uma solução. E quando a história emperra, é preciso uma vanguarda iluminista que a faça andar. É este o papel reservado ao Supremo no julgamento de hoje. Qualquer dos fundamentos conduz à procedência do pedido. Mas se este tribunal reconhecer a plenitude dos direitos reprodutivos da mulher, este será um dia para jamais esquecer. O marco zero de uma nova era para a condição feminina no Brasil.
Fonte: Notícias R7

sábado, 7 de abril de 2012

JURISPRUDÊNCIA DO STJ - MUDANÇA DE SEXO E RETIFICAÇÃO DO REGISTRO CIVIL



REGISTRO CIVIL. RETIFICAÇÃO. MUDANÇA. SEXO.

A questão posta no REsp cinge-se à discussão sobre a possibilidade de retificar registro civil no que concerne a prenome e a sexo, tendo em vista a realização de cirurgia de transgenitalização. A Turma entendeu que, no caso, o transexual operado, conforme laudo médico anexado aos autos, convicto de pertencer ao sexo feminino, portando-se e vestindo-se como tal, fica exposto a situações vexatórias ao ser chamado em público pelo nome masculino, visto que a intervenção cirúrgica, por si só, não é capaz de evitar constrangimentos. Assim, acentuou que a interpretação conjugada dos arts. 55 e 58 da Lei de Registros Públicos confere amparo legal para que o recorrente obtenha autorização judicial a fim de alterar seu prenome, substituindo-o pelo apelido público e notório pelo qual é conhecido no meio em que vive, ou seja, o pretendido nome feminino. Ressaltou-se que não entender juridicamente possível o pedido formulado na exordial, como fez o Tribunal a quo, significa postergar o exercício do direito à identidade pessoal e subtrair do indivíduo a prerrogativa de adequar o registro do sexo à sua nova condição física, impedindo, assim, a sua integração na sociedade. Afirmou-se que se deter o julgador a uma codificação generalista, padronizada, implica retirar-lhe a possibilidade de dirimir a controvérsia de forma satisfatória e justa, condicionando-a a uma atuação judicante que não se apresenta como correta para promover a solução do caso concreto, quando indubitável que, mesmo inexistente um expresso preceito legal sobre ele, há que suprir as lacunas por meio dos processos de integração normativa, pois, atuando o juiz supplendi causa, deve adotar a decisão que melhor se coadune com valores maiores do ordenamento jurídico, tais como a dignidade das pessoas. Nesse contexto, tendo em vista os direitos e garantias fundamentais expressos da Constituição de 1988, especialmente os princípios da personalidade e da dignidade da pessoa humana, e levando-se em consideração o disposto nos arts. 4º e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, decidiu-se autorizar a mudança de sexo de masculino para feminino, que consta do registro de nascimento, adequando-se documentos, logo facilitando a inserção social e profissional. Destacou-se que os documentos públicos devem ser fiéis aos fatos da vida, além do que deve haver segurança nos registros públicos. Dessa forma, no livro cartorário, à margem do registro das retificações de prenome e de sexo do requerente, deve ficar averbado que as modificações feitas decorreram de sentença judicial em ação de retificação de registro civil. Todavia, tal averbação deve constar apenas do livro de registros, não devendo constar, nas certidões do registro público competente, nenhuma referência de que a aludida alteração é oriunda de decisão judicial, tampouco de que ocorreu por motivo de cirurgia de mudança de sexo, evitando, assim, a exposição do recorrente a situações constrangedoras e discriminatórias. REsp 737.993-MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 10/11/2009 (ver Informativo n. 411).


Fonte: Informativo STJ 415

domingo, 25 de dezembro de 2011

O que um juiz faria com R$ 77,00 de aumento salarial?

Dilma Rousseff assinou, nesta sexta (23), o decreto que determina o valor de R$ 622,00 para o salário mínimo a partir de janeiro de 2012. São 77 mangos a mais do que os R$ 545,00 de hoje – ou 14,13%.
Enquanto isso, o salário mínimo mensal necessário para manter dois adultos e duas crianças deveria ser de R$ 2.349,26 – em valores de novembro de 2011. O cálculo é feito, mês a mês desde 1994, pelo Departamento Intesindical de Estatística e Estudos Econômicos (Dieese).
O Dieese considera o que prevê a Constituição, ou seja: “salário mínimo fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família, como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, reajustado periodicamente, de modo a preservar o poder aquisitivo, vedada sua vinculação para qualquer fim”.
Mas como todos sabemos, o artigo 7º, inciso IV, da Constituição Federativa do Brasil, que trata dessa questão, é uma das maiores anedotas que temos na República.
O governo federal atrelou o ritmo de crescimento do PIB ao do salário mínimo, na tentativa de resgatar seu poder de compra. O combinado prevê reajustes baseados na inflação e na variação do PIB. Como o crescimento foi bom em 2010, o aumento será mais significativo. Mas estamos longe de garantir dignidade com esse “mínimo de brinquedo”. Nas grandes cidades, são poucos os que recebem apenas esse piso. Contudo, segue referência para milhões de famílias que têm aposentados como arrimos.
Ninguém está pregando aqui a irresponsabilidade fiscal geral e irrestrita, mas o aumento do salário mínimo é uma das ações mais importantes para melhorar a qualidade de vida do andar de baixo. Afinal de contas, salário mínimo não é programa de distribuição de renda, é uma remuneração mínima – e insuficiente – por um trabalho. Não é caridade e sim uma garantia institucional de um mínimo de pudor por parte dos empregadores e do governo.
A evolução no seu valor de compra desde o Plano Real mostra que estamos melhorando. O problema é que saltos no gráfico não revelam que, na média, o salário mínimo continua uma desgraça sem vergonha.
Acordei pensando o que deve passar pela cabeça de uma pessoa que mora no interior do país, recebe pouco mais de um mínimo e tem que depender de programas de renda mínima para comprar o frango do Natal, quando vê na sua TV velha a notícia de juízes que receberam, de uma só vez, centenas de milhares de reais em pagamentos atrasados de auxílio-moradia, se defendendo de críticas usando o nome da Justiça. E, pouco depois, no mesmo telejornal, a notícia de que o Estado, em sua magnanimidade, lhe dará a garantia de mais R$ 77,00 ao final do mês.
Naquele momento, alguns desses engolem o choro da raiva ou da frustração e torcem para a novela começar rápido e poderem, enfim, esquecer o que acabaram de ver. Não porque precisam se mostrarem fortes – sabem que são. Mas porque também sabem de que não adianta se indignarem. Afinal de contas, o país não é deles mesmo.

Fonte: Blog do Sakamoto

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