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SÃO LUÍS, MARANHÃO, Brazil

quarta-feira, 18 de junho de 2025

A LIÇÃO DO MESTRE

Machado de Assis e Rogério Rocha [imagem gerada por IA]

  


Por Rogério Rocha

 

Não tenho certeza de que os fatos que vou narrar são produto da imaginação, de um surto, um sonho ou mesmo se aconteceram do modo aqui descrito. O fato é que uma febre chatinha me atacou recentemente, afetando-me a saúde. Com ela também vieram umas vertigens que, além do mal-estar repentino, costumavam turvar a minha visão durante alguns minutos. Mas juro pela alma de Allan Kardec que nada do que lerão vai passar, no máximo, de um breve delírio.

Era um fim de tarde calorento em São Luís. Eu vagava pelo centro histórico, nas férias, sem nada para fazer. Foi quando parei diante de uma portinha ladeada por colunas de madeira envelhecida. Na fachada pude ler: “Livraria O Alienista”. Morrendo de curiosidade, entrei.

Lá dentro havia um gato angorá preguiçoso, deitado sobre uma pilha de livros, coçando os bigodes e com os olhos semicerrados. As estantes abrigavam nomes imortais que moravam ali: Sousândrade, Cecília Meireles, Susan Sontag, Josué Montello, Ferreira Gullar, Goethe, Schiller e vários filósofos, daqueles que ninguém lê, mas que adoram repousar sobre as prateleiras empoeiradas.

Foi então que o vi.

Estava sentado lá ao fundo, no cantinho da sessão onde ficavam as últimas estantes. Ao me aproximar, percebi que tinha nas mãos uma edição rara de “O elogio da loucura”.

Em princípio, não acreditei! Repentinamente, veio-me outra vez a tal vertigem. Uma tontura enjoativa e os olhos turvos do qual falei. Após alguns segundos, com a visão recuperada, pude notar a figura do homem de pele escura, barba imponente, olhos expressivos e uma bengala escorada na cadeira ao lado, como se fosse o cetro de um monarca.

— Com licença, meu senhor. — murmurei timidamente.

Ele ergueu os olhos como se já aguardasse minha presença.

  Sente-se, meu amigo. Vamos conversar um pouco?

  Sim, senhor! Quem sabe possamos falar sobre os livros que temos aqui.

O velho sorriu, balançando a cabeça em sinal positivo.

— Percebo que você gosta de raridades. Que prefere os mapas aos GPS’s, estou certo?

— Como soube? Sim. Mas também gosto de descobrir novos caminhos!

O velho tamborilou os dedos sobre a capa do livro.

— Pois bem, esta livraria é um mundo para mim. Dentro dela há passagens secretas, janelas misteriosas, vozes guardadas pelo tempo. E o tempo, aqui, transcorre de um modo diferente. Olhe ao seu redor.

Voltei os olhos para os cantos da livraria. Ali estavam, em estantes próximas, Borges, Vinícius, Raquel de Queirós, Cervantes, Aluísio Azevedo; lá no fundo, enciclopédias, fileiras de coleções contendo obras clássicas, versões encadernadas, de capas duras, traduções em outros idiomas.

— Rogério, diga-me uma coisa, falou o mestre, cruzando as mãos sobre a mesa. Por que as pessoas perderam o interesse pela leitura? Por que ninguém tem paciência para entender a importância desse hábito?

— Talvez porque não tenham tempo. Ou porque não aprenderam a ler. E, no fundo, quem não tem tempo nem paciência não aprende a ler.

— É um bom argumento para tentar compreender uma arte quase esquecida.

— A da leitura, não é mesmo?

— A da paciência. A velha e boa arte da paciência. — disse, esboçando um leve sorriso.

— Gostei de conversar com você, mas já é hora de voltar para a minha prateleira.

— Prateleira! Como assim?

Ele apontou para o alto da estante. Lá havia um livro antigo com seu nome na lombada. Enquanto eu olhava para cima, a imagem daquele homem enigmático começou a se dissipar.

Num piscar de olhos, eu estava sozinho na livraria.

Sobre a mesa, pude notar a edição da obra que o velho folheava e um bilhete onde dizia: "Escreva como quem duvida. Publique como quem confessa. Leia como quem suspeita.” Assinado: Machado de Assis.

Levantei-me sem acreditar e, ainda um tanto confuso, dei uma última olhada ao redor. Por fim, saí da livraria como se houvesse acordado de um estado de coma.

Desde então, confesso: toda vez que escrevo um novo texto, escuto uma voz suave, como um sussurro que viesse da minha estante. É quando, por precaução, relembrando os conselhos do mestre, o reescrevo, pacientemente.

 

quinta-feira, 12 de junho de 2025

A LÂMINA, O COPO E A PALAVRA: UM PREFÁCIO À ESCRITURA RITUAL DE THEOTONIO FONSECA


                               

                                            Theotonio Fonseca - escritor 

Rogério Rocha

 

Entre tramas de linguagem barroca, incursões herméticas e visões místicas transfiguradas em verbo, “A Navalha do Ébrio na Carne do Copo” oferece uma experiência literária que escapa ao ordinário. Theotonio Fonseca costura, como quem invoca, uma tapeçaria de mitos, símbolos e paradoxos que fazem de seus contos muito mais que narrativas — são rituais literários.

 

Seus personagens, paisagens e objetos não estão presos às funções convencionais: uma boca de poço devora; um sapato é costurado com asas; um mioma sonha. As imagens ultrapassam o limiar do fantástico: mergulham na metafísica de um real encantado, de uma realidade que pulsa no invisível, onde o tempo é espiral e o verbo é cosmogênese.

 

A cabala, a gnose, a alquimia e os fundamentos da tradição africana dialogam em cada parágrafo. O alguidar primordial que engole a si mesmo é reflexo do Ouroboros. O menino-cobra, a santa de roca grávida, a abadessa menstruante, são arquétipos da transgressão que reinventa o sagrado a partir do profano. Aqui, o feminino e o marginal não pedem licença: fundam liturgias novas.

 

Fico feliz ao ler um autor que foge ao convencional. Um homem que apresenta sua alma, expõe sua face, acredita em sua verdade. Um escritor que assume, inclusive, o risco altíssimo de não ser compreendido pelo público. Não porque assim o queira, mas por estarmos diante de alguém que trabalha no limite da razão, resvalando nas bordas da loucura. De uma voz literária que se alimenta de fontes raríssimas de influência, simultaneamente múltiplas e incomuns. Elementos que valorizam ainda mais o modo pelo qual escolheu contar suas histórias. Na contramão dos modismos editoriais, voltados a uma visão meramente comercial e mercadológica da literatura.

 

Ao final dessa experiência de leitura, ninguém sai ileso. Há uma modificação interior. Há um encontro com o inominável dentro de tudo aquilo que julgamos conhecer. Somos levados a mergulhar em nossos estranhamentos. A viver num plano imaginário profundo, diverso e desconhecido para a maioria dos leitores.


 

A literatura de Fonseca funciona como espada e unguento. Em “Cozendo a Boca do Sapato Velho”, ele escreve: “a trama da costura foi urdindo espanto e estabilidade.” A narrativa refaz o caminho da redenção por meio do artesanato da linguagem ligada às ancestralidades.

 

“A Navalha do Ébrio na Carne do Copo” é obra de fôlego mítico, com imaginação teológica e execução estilística singular. É obra para ser lida com o corpo, para ser sonhada com os olhos, para ser orada em silêncio diante de um altar aceso com a chama das palavras.

 

Que o leitor se prepare, pois aqui a literatura volta a ser um ritual. E o copo — transbordante — ainda vibra.




sábado, 7 de junho de 2025

Café com Pessoa: os frágeis artefatos da linguagem

 


 

Por Rogério Rocha 

 

 Apesar dos meus 15 minutos de atraso, encontrei-o tranquilo. Estava sentado à mesa de sempre. Tinha a expressão facial leve, o olhar sereno. Parecia mirar fixamente um quadro na parede do outro lado do salão. 

Num cenário saído das páginas de um livro antigo, mais familiar a ele do que a mim, o tempo recebeu os dois viajantes do pensamento.

À mesa, as xícaras de café e meus dois livros, que ele acabara de ler, refletiam pedaços de nossos de mundos interiores: Frágeis Artefatos e A Linguagem da Ausência. 

Éramos parte da aventura da existência, frutos precocemente amadurecidos, atores do destino, passageiros do mundo, artesãos de nós mesmos. De certo modo, estávamos condenados ao pecado da liberdade. Não produzíamos literatura; na verdade, abríamos trilhas, veredas filosóficas.

Ao longo da noite, esquecemos do cansaço do dia para dar margem ao percurso das ideias no bojo das palavras, na vertigem da experiência que é viver a poesia como modo de reflexão.

“Escrever é construir abismos”, disse ao poeta lisboeta. Pessoa sorriu, como quem já houvesse lido isso antes.

Entre pausas marcantes e silêncios inesperados, em meio ao diálogo, ficou suspensa a questão que esquecemos de nos fazer: escrevemos por existir, existimos para escrever ou apenas para não sermos esquecidos?

sexta-feira, 14 de março de 2025

ENTREVISTA com o escritor JOSUÉ MONTELLO [1977]

Descubra um pouco da riqueza da literatura brasileira nesta rara entrevista de 1977 com o escritor maranhense Josué Montello.

Autor de obras marcantes como "Os Tambores de São Luís", Montello compartilha aqui suas reflexões sobre a escrita e a cultura nacional.

O vídeo que reproduzo no canal Hipertexto com Rogério Rocha é um mergulho na mente do grande escritor e faz parte dos registros do Arquivo Nacional e do site Memória Audiovisual Brasileira.
#JosuéMontello #arquivonacional #mestresdaliteratura

 

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

"MAS VIVEREMOS" (poema de Carlos Drummond de Andrade por Rogério Rocha)

O anel de Giges e o 'Um anel': a invisibilidade e a corrupção da alma

Fonte: Chat GPT



Por Rogério Rocha



Platão, em sua clássica obra "A República", nos apresenta ao mito do anel de Giges, uma joia capaz de dar ao seu portador a habilidade de se tornar invisível. Com essa passagem, o filósofo nos provoca a refletir o seguinte: será que, ao ocultar dos olhos alheios seus atos e comportamentos, uma pessoa conseguiria manter uma postura ética? 


Já em "O senhor dos anéis", do escritor J.R.R. Tolkien, encontramos o 'Um anel', objeto cobiçado e que oferece imenso poder a quem o detém, mas que, por outro lado, corrompe seus portadores, revelando neles os desejos mais abjetos.


Esses dois anéis, famosos pelas funções que desempenham nos livros citados, acabam por tratar do mesmo dilema: o poder absoluto sobre o outro — ou sobre si mesmo — pode nos mostrar quem realmente somos. De igual modo, ambos representam a força da tentação e a fragilidade humana diante da ausência de limites e controle.


O anel de Giges confronta a ética e a justiça como escolhas conscientes, enquanto o 'Um anel' de Sauron simboliza a destruição do caráter pelo desejo insaciável de poder. Portanto, a existência desses artefatos serve para levantar a mesma questão de fundo: quem seríamos se ninguém pudesse nos ver agir ou obstaculizar os desejos que impulsionam nossos comportamentos?


Tanto Platão quanto Tolkien parecem sugerir que o nosso maior desafio está em resistir à corrupção e fazer o que é certo, praticando o bem, mesmo quando ninguém está observando. Afinal, a maior prova de caráter de um indivíduo perante a sociedade talvez seja justamente a de resistir à tentação de usar um poder capaz de levá-lo à ruína.


E você, como reagiria se tivesse um desses anéis em suas mãos?

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