sábado, 8 de janeiro de 2022

O LIVRO DA LITERATURA - Introdução à Literatura Universal

O livro da literatura é uma viagem pelas grandes obras da humanidade, desde a Ilíada à Paixão Segundo G. H., e explora os romances, os contos e as poesias mais importantes de cada época.

Uma obra de divulgação literária que vale a pena ter em sua estante.

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terça-feira, 2 de novembro de 2021

PERDIDOS NA NOITE (um conto de Rogério Rocha)

Foto tirada no(a) Rua Grande por Ernanig em 10/11/2013  

 Foto: Internet - Foursquare

 

 

Zé Lipaté e Maninho voltavam do Reviver em altas horas. Madrugada de bêbados no Centro velho da cidade. Hippies, prostitutas, gays e turistas haviam ficado para trás. Passavam já do Largo do Carmo e iam a passos rápidos rumo a suas casas, quando resolveram atravessar a Rua Grande. Queriam chegar à Rua do Passeio. Depois desceriam para as bandas da Madre Deus, onde moravam.

No meio da maior rua do comércio popular de São Luís, deserta àquela altura, conversavam sobre os resquícios da noitada, o som na galeria em que estavam, umas garotas que encontraram por lá, quando viram sair do canto da rua Godofredo Viana um velho muito feio. Um traste fedorento que assustou os dois amigos ao pigarrear e cantar uma música das antigas, ao passo em que seguia, um tanto manco, o rumo da calçada da dupla, chegando perto e perguntando:

- Quê qui cêis fazem três horas da madrugada no meio da rua, ças crianças? Cês são muito pepêto pra dar banda em minha área mora dessas!

- Porréessa, rapá! Pra lá, mala velha! – disse Lipaté, espantado.

- Ignora, brodi! Ignora! – retocou Maninho.

- Mas gente, cês passaqui assim de boa, sem me prestá menage!?

- Ménage???Ménage é o carai! Tira logo pra fora fedô! – esbravejou Maninho.

Os dois seguiam seus rumos em passos ainda mais rápidos, no sentido da Rua do Passeio, que, infelizmente, parecia que nunca chegava.

Lá pelo meio da Rua Grande eram ainda seguidos pelo habitante da noite, que ora ia pra um lado, ora pra outro, chafurdando com os garotos, rindo e tombando sem perder o passo do acompanhamento.

Maninho então pensava de si para si enquanto olhava de esguelha o amigo de jornadas, tentando, também às pressas, encontrar um modo de se livrar daquele traste.

- Peste, capa o gato que é! Tá me enchendo já! Se tu não fô imbora logo eu juro que te jogo dentro da fogueira santa de Israel. Copiou? – falou sério Lipaté.

- Ouviu aí, né?! – reforçou Maninho.

- Vou secês dé um quarqué cois pra mim. Um mimo quarqué já vale. Senão vô continuá companha cês atééééé...

Os amigos bêbados entreolharam-se ao lembrarem da metade de um litro de catuaba que havia dentro da mochila de Maninho. Rápido a retiraram de dentro e a ofereceram para o enjoado.

- Toma, pô! Taí, ó! Taí! É da boa, viu! Pode bebê quinda tem metade da garrafa.

Recebendo a garrafa nas mãos e soltando um grito de contentamento, pulou de euforia, gargalhou e chamou umas perdidas que estavam ali por perto e, do nada, saíram, quase ao mesmo tempo, de ruas transversais por onde haviam acabado de passar. Naquela hora, surgiram duas desgrenhas da mesma qualidade do amargoso, juntando-se aos três, logo após.

Ao tempo em que aquelas criaturas começaram a disputar a pobre garrafa de catuaba, Maninho e Lipaté trataram de correr. Saíram a todo gás, com medo do que poderia vir depois. Deixaram para trás os funestos habitantes do nada no meio do silêncio da Rua Grande.

Depois de chegarem nas imediações do Hospital Socorrão I, cansados, mas sorridentes, os jovens trocavam gozações.

- Porra, Mano! Agora temo história pacontá, ó! Tá doido, doido!

- Rapá, ças coisas só acontece com a gente mesmo! Vou te dizê!

- Não é ??!!! Mas daqui pra ali agora é na fé, bicho. Depois dessa o caminho tá limpo e é todo nosso.

- Tá é certo, ó! Depois duma porra dessa, o quê de ruim pode acontecer, né!?

Instantes depois de virem ao mundo o som dessas palavras, viram surgir do rumo do Caminho da boiada um homem com um charuto na boca, barba branca e chapéu na cabeça, que resolveu ficar encostado no canto do edifício Malvina Aboud. Parou e permaneceu lá – justamente onde passariam – olhando em suas direções. Enquanto isso, as luzes dos postes das redondezas começaram a piscar. 

Pelo jeito, a noite ainda lhes traria algumas emoções.

domingo, 31 de outubro de 2021

O ENCONTRO DE OUTONO (um conto de Rogério Rocha)

vienna monovisions | David Weintraub
Foto: David Weintraub - Internet


O ano de 1919 trouxe a Viena um início de inverno moderado, com temperaturas que muito lembravam a do recém-findado outono.

Com os treze graus centígrados daquela manhã nublada, o consultório do respeitado doutor era um abrigo mais que bem-vindo.

Chegou na hora marcada. Na rua pouco movimentada, ficou a observar os relógios na vitrine de uma loja no prédio ao lado do seu destino. Por alguns poucos minutos titubeou, não sabendo se entrava ou não. Da calçada divisou, ao final da avenida, a catedral gótica da cidade. Com uma expressão congelada no rosto, ouviu o primeiro toque do sino, que badalava as três horas da tarde.

Respirou fundo, tirou o chapéu, encarou a porta diante de si, bateu levemente e, logo a seguir, pode entrar.

Sem perder tempo, mas com grande discrição, apresentou-se à secretária na antessala e, após a confirmação do seu nome, dirigiu-se ao consultório. O gabinete do médico neurologista, iniciador de pesquisas sobre novas técnicas para a compreensão da psique humana, era sóbrio e acolhedor, com uma decoração clássica, alguns pequenos quadros na parede, tapetes persas, mobília de madeira em tons amarronzados, com uma estante cheia de livros e prateleiras que continham pequenas peças de arte africana, asiática e outros minúsculos elementos cênicos.

O doutor cumprimentou seu novo paciente com um breve aceno de cabeça e logo estendeu o braço, apontando-lhe o divã.

Após tirar o casaco e acomodá-lo num local apropriado, o jovem escritor deitou-se no local indicado. Fora do seu campo de visão, o médico encontrava-se calmamente sentado em sua poltrona, com um caderno de anotações ao lado de uma pequena mesa. Na ocasião, orientou o paciente a falar com liberdade o que lhe viesse à mente, sem se importar com narrativas lineares.

Após acender um charuto, o analista perguntou-lhe:

- Sente-se confortável?

- Aqui, deitado? Sim, estou bem! – respondeu com um semblante tenso.

- E para falar? Está pronto?

- Depende! Sobre o que devo falar primeiro?

- O que quiser. Sinta-se livre para começar. Quero que caminhes até sua verdade.

- Minha verdade! Talvez ela esteja escondida dentro do meu medo. Do medo de mim, da vida que tenho levado, do meu futuro e... do meu pai.

Enquanto o jovem falava sobre suas angústias e desejos, o terapeuta via surgir, em meio às verbalizações carregadas de tensão, sinais de um conflito existente com a figura paterna.

Ouvia os relatos do paciente sem intervir. Vez por outra, contudo, pedia um breve esclarecimento sobre algum ponto ou fazia questionamentos bem sintéticos, a fim de ajudá-lo a lidar com os incômodos. Afinal, havia um peso na narrativa daquele homem. Era como um fardo gigante, um estado de permanente sofrimento que decorria de traços de sua história familiar e que seu analista buscava atentamente identificar em algum ato falho ou lapso da linguagem.

Mas, enfim, eis que a palavra pai se revelara, abraçada a um indisfarçável desconforto, captado ao ver-se o semblante e ouvir-se a voz do analisando.

- Acabei de escrever uma carta para ele. Sim! Uma longa carta. Mas, sinceramente, não sei se a lerá. Na verdade, não sei sequer se chegará às mãos dele. Aquelas mãos que, se pudessem, com certeza me despedaçariam. – disse, com a voz trêmula.

Com o charuto entre os dedos indicador e médio da mão esquerda, o condutor da sessão ouvia o que era dito, fazia anotações (a fim de ajudar no processo de memorização do caso) e breves comentários. Enquanto isso, o paciente começava, num crescendo do tom da voz, a externar fatos que o impediam de ser ele mesmo e que estavam ligados ao seu relacionamento com o velho genitor.

- Ele parece um Deus. Lá em casa é como o vejo. Uma espécie de carrasco que vive para me perseguir, para tentar me intimidar, para me pressionar, dia e noite. – ressaltou o paciente.

- Há muitos pormenores que não consigo contar... nesse medo que eu carrego do meu pai. Mas odeio quando ele me desqualifica e condena o meu futuro. E faz isso na frente de todos. Sim, eis o meu fabuloso pai!

- De tanto ouvir seus sermões públicos, acredito piamente em todos os argumentos que usa. Por causa dele, só tenho a verdadeira sensação de mim mesmo quando estou infeliz.

- Para piorar, agora quer me impedir de casar com a mulher que me ama de verdade. Quer estragar minha única fortaleza: o amor. – disse, com a voz levemente embargada.

- Somos de carne e osso, mas a vida nos trata, por vezes, como se fossemos de ferro. – comentou calmamente o analista.

Depois de um breve silêncio, o jovem retomou sua fala:

- O muro que meu pai ergueu entre mim e Julie é quase intransponível. Mesmo assim, tenho esperança. Sei que existe e é pequena, mas não posso abrir mão das possibilidades. Não tenho esse direito!

- Ainda assim, o que vejo hoje? O que tenho visto? Apenas a minha própria sombra e o medo que sinto, como se fosse a mão impiedosa do meu pai em minha garganta. – falou, arregalando os olhos que miravam o teto.

- O peso de ser filho é terrível, no meu caso. Meu pai é muito grande para mim. Sua presença é muito forte. Sinto que me esmaga com sua indestrutível superioridade. Com sua vontade de me ver um homem forte e corajoso. Coisas que não sou.

- Ele me cobra todos os dias. Todos os dias. Pergunta onde deixei minhas responsabilidades para com os negócios. Diz que sou um fracasso. Que não valorizo a liberdade que ele me proporcionou. Mas... liberdade? Que liberdade?

- A que teve ao me deixar fora do quarto, com frio e sede, quando eu era apenas um menino chato e chorão, gritando no meio de uma noite chuvosa? A que me ajudou a ser esse nada incontestável, que ressalva sempre que toca no assunto com os parentes à mesa do jantar nos domingos? – questionou o analisado, esbravejando no divã.

- Muitas vezes sonho com ele a me perseguir, doutor. Sonho que estou saindo de uma floresta muito densa, após correr por metros e metros. No final, respiro fundo ao ouvir o clique de um revólver. Depois fecho os olhos e acordo quase sem ar. – diz o jovem escritor, encenando o seu susto.

- Daí para a frente não há mais retorno, ponho na mesa a culpa por todos os meus erros. Estou imerso em silêncio. Até sinto o meu medo dissolver-se dentro dele. Ah, você não sabe a energia que reside no silêncio! – murmura, com um leve sorriso na face.

- Deves perceber que de erro em erro a verdade vai-se revelando. – comentou o médico, enquanto fazia anotações em seu caderno.

- A verdade para mim, doutor, é sempre um abismo. Se não me libertar, irá me destruir. Assim como meu pai tem tentado destruir a minha felicidade.

O analista enfim olhou para o relógio de bolso e informou ao novo paciente que a sessão estava encerrada. O jovem levantou-se um tanto lentamente, como se quisesse permanecer deitado mais um instante. Já de pé, o médico achegou-se frente a ele e, antes que se retirasse, lhe disse:

- A felicidade, caro Franz, é um problema individual. Nesse campo, nenhum conselho é lá muito válido. Afinal, cada um deve procurar, por seus próprios meios, tornar-se feliz. No mais, em última instância, precisamos amar. Amar para não adoecer.

O escritor, por alguns segundos e em silêncio, olhou fixamente no fundo dos olhos do médico. Depois estendeu-lhe a mão, apertou-a com firmeza, despediu-se, vestiu o casaco, pôs o chapéu na cabeça e deixou o consultório com a mesma discrição com que entrara. Logo após sua saída, aparece a secretária para avisar que aquele tinha sido o último atendimento do dia.

- Dr. Freud, o paciente Franz Kafka terá uma nova sessão na quinta-feira da próxima semana, nesse mesmo horário. Achei a expressão daquele jovem meio perdida, o semblante pesado. O senhor acha que ele vai retornar?

- Deixemos isso para uma outra hora, Anna! A resposta à sua pergunta é tão incerta quanto saber se amanhã um de nós dois irá acordar resfriado. A única certeza que tenho agora, e posso lhe garantir, é que estou me dirigindo ao café. Queres me acompanhar?

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