O Livro do Gênesis da Bíblia descreve como Deus enviou o dilúvio para 
punir os homens por seus pecados. Avisado com antecedência, Noé – o 
único homem justo do mundo, em sua geração – construiu uma arca gigante 
para sua família e para um casal de cada espécie animal da Terra. Depois
 de 40 dias e 40 noites de chuvas, todos se salvaram e o planeta foi 
repovoado. Alguns cientistas pensam que realmente houve uma grande 
inundação no Mar Negro há milhares de anos, que poderia ter arrastado a 
arca de Noé para o topo do Monte Ararat, o mais alto da Turquia, onde se
 encontrariam vestígios do barco. As evidências científicas mostram, no 
entanto, que as águas nunca estiveram mais do que 20 metros abaixo do 
nível atual do Mar Mediterrâneo e que a maior enchente ocorreu pouco 
após a Idade do Gelo, milhares de anos antes do surgimento dos primeiros
 povoados e fazendas na região.
 Duas hipóteses geológicas sugerem inundações na bacia do Mar Negro, 
ambas situando o evento numa época em que o mar era um lago sem 
comunicação com o Mediterrâneo. A primeira, elaborada pelo geógrafo 
russo Andrei L. Chepalyga, em 2007, localiza a enchente pouco depois da 
Idade do Gelo, entre 17 mil e 14 mil anos atrás, sem qualquer relação 
com a história bíblica. De acordo com Chepalyga, o salobro Mar Negro 
encheu-se rapidamente com o transbordamento do Mar Cáspio através do 
Vertedouro Manych – canal entre os dois corpos d’água –, logo depois do 
chamado Último Máximo Glacial (avanço das calotas polares), quando a 
cobertura de gelo estava derretendo rapidamente.
 A segunda hipótese, ou “Dilúvio de Noé”, foi proposta pelo geólogo 
americano William Ryan e outros pesquisadores, em 2003. Eles afirmam que
 o clima se tornou mais seco logo depois do período de clima frio entre 
12,7 mil e 11,5 mil anos atrás, conhecido como Dryas Recente. A 
evaporação resultante fez o Mar Negro baixar para 95 metros abaixo do 
nível atual. À medida que o clima aqueceu e a capa de gelo se derreteu 
na Europa, o nível do mar subiu no Mediterrâneo, causando um 
catastrófico fluxo de água salgada para o Mar Negro, 8,4 mil anos atrás.
Concepção do dilúvio por Gustave Doré 
 Uma inundação de gigantescas proporções, como o dilúvio, deveria deixar
 um registro disso no Mar Negro. Um projeto do Programa Internacional de
 Geociências (IGCP, na sigla em inglês), iniciativa da União 
Internacional das Ciências Geológicas e da Unesco, procurou vestígios da
 ocorrência em sedimentos do fundo do mar, em fósseis, no relevo e 
pistas arqueológicas. A pesquisa fez parte de um projeto conjunto 
envolvendo o IGCP e a União Internacional para Pesquisa do Quaternário, 
que abordou a mudança do nível do mar e as estratégias adaptativas 
humanas no Corredor Cáspio-Negro-Mediterrâneo. Eles obtiveram algumas 
respostas, mas levantaram outras perguntas.
 
Quanto o Mar Negro baixou?
 
 Ryan e sua equipe afirmam que as condições climáticas secas fizeram a 
água do Mar Negro evaporar e atingir 95 metros abaixo do nível atual. 
Mas sabemos, a partir de registros de pólen, que a plataforma exposta e 
as costas imediatamente adjacentes estavam cobertas por árvores de 
florestas que necessitam de umidade, tais como carvalho, tília, faia e 
olmo, juntamente com samambaias de sombra, plantas aquáticas e de 
pântano. Essas espécies vegetais indicam invernos cálidos e precipitação
 anual entre 600 mm e mil mm.
 A última vez que o nível da Bacia do Mar Negro caiu para 95 metros 
abaixo do atual foi durante o Último Máximo Glacial. No início do 
período Holoceno, há 10 mil anos, o Mar Negro, então um lago, 
gradualmente passou de 40 metros para 20 metros abaixo do nível atual, 
em virtude da entrada de água originária do Mediterrâneo. Esse aumento 
relativamente insignificante poderia causar enchentes catastróficas?
 O Mar Negro era um lago de água doce?
 
 Se o Mar Negro continha água doce imprópria para consumo, como Ryan e 
equipe propõem, por que todos os fósseis descobertos nos sedimentos do 
lago pertencem a organismos que prosperaram em água salobra? Se a água 
do lago era potável, por que as pessoas escolheram instalar-se nos vales
 de pequenos rios, como inúmeros sítios arqueológicos sugerem? Não faz 
sentido.
 Os assentamentos pré-históricos foram submersos pelo dilúvio?
 
 Ryan e equipe alegam que, antes do dilúvio, as pessoas não habitavam 
somente a costa do Mar Negro, mas também parte do seu fundo (denominada 
plataforma), que era terra seca na época. Apesar de décadas de busca por
 habitações pré-históricas submersas na plataforma anteriormente 
exposta, nada se achou abaixo de dez metros de profundidade.
 Havia agricultura na região do Mar Negro naquela época?
 
 Havia na vizinhança. Os registros de pólen não revelam evidências de 
produção de grãos no Mar Negro antes de 5.718 anos atrás. Os traços 
encontrados na plataforma de partículas de carvão originárias de 
pastagens queimadas, e de esporos de fungos crescidos em esterco animal 
em recintos lotados, desacreditam a ideia de que a pecuária era 
praticada em plataforma extensiva. A hipótese contrasta com as 
evidências arqueológicas da prática da pecuária há 8 mil anos 
encontradas em Ilipinar, ao sul do vizinho Mar de Mármara.
 As evidências apontam para o aumento gradual do nível do Mar Negro?
 
 A hipótese de uma grande inundação no Mar Negro 8,4 mil anos atrás 
capturou a imaginação do público. Mas a mídia não noticiou que geólogos e
 arqueólogos do Canadá, da Ucrânia, da Rússia e de outros países não 
encontraram evidências de inundações catastróficas na região. Em vez 
disso, as evidências apontam para uma gradual reconexão com o Mar 
Mediterrâneo entre 9.5 mil e 8 mil anos atrás.
 Na opinião de Andrei Chepalyga, a grande enchente ocorrida entre 17 mil
 e 14 mil anos atrás não é aquela descrita na Bíblia. Ele argumenta que 
inundações catastróficas teriam marcado a memória coletiva por milhares 
de anos, até serem registradas em antigas escrituras arianas, como o Rig
 Veda (hindu) e o Avesta (indo-iraniano). A história de um grande 
dilúvio também foi contada pelos antigos habitantes da Mesopotâmia.
Fonte: Revista Planeta - Edição 483  - DEZ12/JAN13