Por Rogério Henrique Castro Rocha
Vinculado
originalmente às ideias do jusfilósofo alemão Peter Häberle, o chamado “pensamento
jurídico do possível”, ou simplesmente “pensamento do possível” constitui-se
numa nova técnica de hermenêutica que se baseia num pensamento reflexivo que, por
meio de alternativas, objetiva preencher certas lacunas normativas.
Ultimamente,
tal técnica vem sendo incorporada às decisões do Supremo Tribunal Federal,
sobretudo nos julgamentos de casos complexos.
Também
denominado de “pensamento pluralista de alternativas”, esse instrumento
hermenêutico encontra parâmetros na noção de abertura procedimental, instituída no modelo teórico da sociedade aberta de intérpretes da
constituição, formulado por Häberle, e que no Brasil, ao que nos parece, tem
encontrado guarida em dispositivos existentes na lei 9.868/99.
Tendo
por pressuposto o entendimento de que nas democracias o processo de
interpretação constitucional deva ser empreendido com a participação ativa de
todos os concernidos no contexto normativo, ou seja, com os próprios destinatários
da norma, a teoria Häberliana começa a fazer-se refletir nas práticas
decisórias adotadas pelo STF, bem assim a ser instrumentalizada com a aplicação
da lei 9.868/99, sobretudo na medida em que prevê a realização das audiências públicas (agora bastante
concorridas e, felizmente, em franco processo de popularização) e a habilitação
de representantes de setores da sociedade (na figura do “amicus curiae”) para
se manifestarem sobre relevantes temas objeto de ações constitucionais.
Conforme
indica tal vertente, ao defrontar-se com lacunas legislativas, principalmente
lacunas na Constituição, seu(s) intérprete(s) deverão buscar soluções não só na
aplicação dos princípios e regras, mas também, sob uma perspectiva sistêmica,
na técnica do “pensamento do possível”.
Tal
técnica consistiria, resumidamente, em, partindo-se da realidade, ou seja, de
um caso concreto, buscar proceder de forma crítica, refletindo e indagando
sobre as possíveis alternativas existentes (reais, válidas e eficazes) para se
solucionar o problema da lacuna normativo-constitucional, mesmo que para isso
tenha-se que alargar, isto é, elastecer o texto legal.
Exemplo
paradigmático da aplicação do “pensamento jurídico do possível” em nosso
ordenamento foi a ADIN 1.289 – DF, quando, ainda na década de 90, a técnica foi
aplicada pela primeira vez por nossos tribunais.
Naquela
ocasião o STF declarou ser possível aos membros do Ministério Público
candidatarem-se às vagas do quinto constitucional sem preencher o requisito
mínimo de mais de 10 anos de carreira (conforme previsto no art. 94, CF/88).
Como
com a vigência da nova constituição só se iria observar tal preenchimento de requisito
uma década depois (ou seja, somente a partir do ano de 1998), quando então
seria possível a alguns membros do MP tornarem-se aptos a preencher a hipótese
dos mais de 10 anos de carreira, optou-se, sensatamente, ao nosso entender, em
permitir que membros com menos tempo de carreira fossem alçados ao quinto, até
que o próprio decurso temporal tornasse possível efetivar o comando normativo
em toda sua plenitude.
Outro
caso envolvendo a aplicação do “pensamento do possível” ocorreu no julgamento
do RE 147.776-8, que envolvia a questão da defesa e assistência jurídica dos
hipossuficientes pelas Defensorias Públicas Estaduais. À época, a maioria das unidades
da federação não contava com o órgão da Defensoria implantado e em
funcionamento, o que inviabilizava sobremaneira a efetivação do preceito
constitucional.
A
saída então encontrada para tal problema, à luz do citado instrumento
hermenêutico, foi se permitir que os Ministérios Públicos e as Procuradorias Estaduais
atuassem, temporariamente, na defesa dos necessitados, até que o processo de
implantação das Defensorias Públicas se consolidasse no país.
Mais
recentemente, provocado por uma consulta sobre a Resolução 21.920 do Tribunal
Superior Eleitoral, tornando facultativo o voto aos portadores de deficiência
grave, originou-se o Processo Administrativo n.º 18.843, onde o STF concluiu
pela constitucionalidade da aludida resolução.
Reconheceu-se
que o TSE havia na verdade estendido o direito previsto no art. 6º do Código Eleitoral
(que excetuava do alistamento e do voto obrigatório os inválidos e os enfermos)
aos portadores de deficiências ou necessidades especiais, sob o fundamento de
que, com isso, se estaria a preservá-los em suas dignidades, poupando-os de
serem expostos a situações constrangedoras e humilhantes decorrentes da
dificuldade de deslocamento até as seções eleitorais.
Eis,
portanto, mais um magnífico exemplo da aplicação da via do “pensamento do possível”.
Concluindo,
podemos afirmar que tais casos servem para demonstrar que este novo mecanismo
hermenêutico (ou essa nova técnica, como preferem dizer alguns) começa gradualmente
a se sedimentar no entendimento do STF e de outras cortes superiores, com excelentes
resultados, mostrando-se em sintonia com os ditames filosóficos do direito de
nosso tempo. De um novo direito, pautado numa visão mais humana da aplicação
das leis, conduzido por uma perspectiva pluralista, por uma postura
crítico-reflexiva de um neoconstitucionalismo essencialmente democrático,
procedimental e dialógico com que deverão se habituar nossas cortes superiores
(quiçá também os magistrados das demais instâncias) ao decidirem as grandes
questões de nossa sociedade.
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