No centenário do poeta Augusto dos Anjos, um convite aos versos que ecoam a tragicidade irônica da condição humana
Por Leda Cartum
Eu sou aquele que ficou sozinho/Cantando sobre os ossos do caminho/A
poesia de tudo quanto é morto!” Assim se define Augusto dos Anjos em O
Poeta do Hediondo. A palavra “hediondo”, que dá título ao soneto,
significa aquilo ou aquele que nos causa horror, espanto, indignação. E é
justamente dessa forma que o poeta Augusto dos Anjos (1884-1914), cujo
centenário de morte é comemorado neste ano, ficou conhecido na história
da poesia brasileira: aquele dos versos repletos de vermes, de morte e
de decomposição. Versos de um solitário autor de apenas um livro, Eu
(1912), que só pôde ser publicado porque contou com a ajuda financeira
do irmão e que mal foi notado pelos críticos da época, parado nas
livrarias e rapidamente esquecido por quase todos.
Somente dois anos depois da publicação desse primeiro e único livro, em
1914, o poeta morreu de pneumonia, muito precocemente, com não mais do
que 30 anos. Morreu antes de conhecer o sucesso que faria no futuro:
poucos o valorizavam e sua morte quase não teve repercussão na imprensa.
Francisco de Assis Barbosa conta que poucos dias depois do falecimento
de Augusto dos Anjos, na cidade de Leopoldina, em Minas Gerais, seus
grandes amigos Orris Soares e Heitor Lima andavam pelo Rio de Janeiro e
se detiveram na frente da Casa Lopes Fernandes, onde estava o grande
poeta parnasiano Olavo Bilac, conhecido já na época como o Príncipe dos
Poetas. Ao ser informado sobre a morte recente, ele perguntou: “E quem é
esse Augusto dos Anjos? Grande poeta? Não o conheço. Nunca ouvi falar
seu nome. Sabem alguma coisa dele?” Heitor Lima disse, de cor, o soneto
Versos a um Coveiro. Bilac, em silêncio, ouviu até o fim e, depois, deu
um sorriso de desprezo e disse: “Era esse o poeta? Ah, então fez bem em
morrer. Não se perdeu grande coisa”.
De fato, do ponto de vista dos eruditos da época, que tratavam a obra
de arte como “o sorriso da sociedade”, um objeto belo e simétrico, a
poesia de Augusto dos Anjos não era bem-vinda. Em contraste com o
otimismo dessa belle époque brasileira, seus versos eram cheios de
“esterco” e de “escarro” e o poeta não hesitava em dizer coisas como
“Mostro meu nojo à Natureza Humana/A podridão me serve de Evangelho…”
Até mesmo a concepção de arte de Augusto distanciava-se, em muito,
daquela dos parnasianos: se para esses a Arte era considerada,
sobretudo, como o elogio a um objeto imaculado e de formas perfeitas,
nos poemas de Augusto dos Anjos, ao contrário, o que é chamado de Arte é
“a mais alta expressão da dor estética” – e somente ela é capaz de
esculpir “a humana mágoa” (trechos de o Monólogo de Uma Sombra). É como
se Augusto tivesse, com sua linguagem e conteúdo tão fortes, descido do
Monte Parnaso dos artistas para ir de encontro às camadas inferiores da
humanidade, nas quais o que se vê não é tão limpo e brilhante como são
as estrelas evocadas por Olavo Bilac.
Uma linguagem baixa, com que a poesia não estava acostumada, começou a
se revelar em Augusto dos Anjos. Palavras sujas convivem com um
vocabulário científico, criando uma abordagem do mundo muito própria, em
que se misturam aspectos de um realismo cortante, de raízes de um
simbolismo e, até, de certa modernidade que só se manifestaria com força
alguns anos depois na história da poesia brasileira. Foi ao aproximar a
linguagem poética da realidade cotidiana, das experiências vividas, que
Augusto trouxe uma renovação para a lírica e se tornou, mais tarde, uma
das principais influências do Modernismo brasileiro – que valoriza,
justamente, esses aspectos do dia a dia, da fala comum, para construir a
partir deles um universo poético. É por isso que Ferreira Gullar, por
exemplo, considera Augusto dos Anjos “um dos nossos primeiros poetas
modernos”: uma série de elementos que serão recuperados e intensificados
a partir dos anos 1920 e 1930 já estão nos poemas de Augusto, que só
foi reconhecido vários anos depois de sua morte.
Se, em 1912, a primeira edição do seu livro, de apenas mil exemplares,
quase não surtiu efeito no público e permaneceu encalhada, a passagem
dos anos ajudou a fazer com que o livro e seu autor crescessem e
ganhassem espaço. A obra foi relançada em 1920 sob o título de Eu e
Outras Poesias, acrescida postumamente por outros poemas reunidos, e
organizada pelo amigo Orris Soares, que também escreveu o prefácio do
volume. Ainda assim, a maior parte da crítica não considerou o livro, e
poucas vozes o reconheceram como grande poeta. José Oiticica, filólogo e
poeta, foi um dos únicos dessa época a voltar os olhos para Augusto dos
Anjos, afirmando que, no futuro, ele seria, sem dúvida, “o mais
assinalado poeta brasileiro de seu tempo”. Mas foi somente em 1928,
quando a Livraria Castilho publicou a terceira edição do livro, que a
recepção do poeta deu a virada decisiva: 3 mil exemplares esgotaram-se
em 15 dias, e duas reedições foram feitas ainda em 1928-1929. A partir
daí, não parou mais: contam-se pelo menos 50 edições diferentes do livro
até hoje e, cem anos depois de sua morte, ele continua a ser lido e
estudado pelos mais diversos públicos.
Voz política
“São versos que ficaram nos ouvidos de gerações de adolescentes, pois
de adolescentes conservam um quê de pedantismo dos autodidatas verdes,
em geral acerbos e solitários”, diz, a respeito do poeta, Alfredo Bosi,
em História Concisa da Literatura Brasileira. Realmente, a tragicidade
irônica que atravessa os temas de Augusto dos Anjos marca essa fase da
vida em que tudo carrega mais gravidade e, por isso, não é raro que seus
poemas sejam muito lidos por adolescentes, que fazem destes versos uma
espécie de manifesto: Apedreja essa mão vil que te afaga,/Escarra nessa
boca que te beija! Ou, então: Escarrar de um abismo noutro abismo,/
Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,/Há mais filosofia neste escarro/Do
que em toda a moral do cristianismo!
Mas basta mergulhar um pouco mais a fundo no universo de Augusto dos
Anjos para compreender que essas palavras muito ultrapassam o
estereótipo no qual poderiam ser enquadradas em um primeiro momento. Não
é ódio gratuito ou ironia vazia que fundamentam esses versos: pelo
contrário, cada poema é profundamente político, e muitos deles fazem
críticas severas ao País e à exploração dos homens pelos homens.
Enquanto a maioria dos artistas se contentava em elogiar e exaltar a
fauna e a flora brasileiras, Augusto afastava-se das imagens da natureza
tropical, inspirado antes pelas cinzas e pelos abutres que também
participam do cenário do Brasil: uma das únicas ocorrências do vocábulo
“pátria” em seus versos é no título do poema O Lázaro da Pátria, que
trabalha justamente com a vitimização e o sofrimento de um índio. Também
no longo poema Os Doentes, o que se lê em certa passagem é a terrível
imagem de um índio morto em meio à floresta, cujo ruído é a vibração
“mais recôndita da alma brasileira”: Aturdia-me a tétrica miragem/De
que, naquele instante, no Amazonas,/Fedia, entregue a vísceras
glutonas,/A carcaça esquecida de um selvagem.
O quadro político da época era bastante complicado: entre uma burguesia
ascendente, a imigração decorrente do desenvolvimento industrial,
grandes revoltas e greves de operários, era como se o País estivesse em
confronto consigo mesmo. As forças agrárias e tradicionais, maiores
detentoras do poder, entravam em conflito com a industrialização e a
urbanização que pediam por mudanças e pela modernização do Brasil.
Também o cenário internacional mostrava-se cada vez mais preocupante,
com as batalhas que preparavam aquilo que viria a ser Primeira Guerra
Mundial – que teve início três meses antes da morte de Augusto dos
Anjos.
Assim, é compreensível que o poeta abra espaço para a expressão de seu
estranhamento e indignação, fazendo deles matéria-prima para os versos: A
passagem dos séculos me assombra./Para onde irá correndo minha
sombra/Nesse cavalo de eletricidade?! Foi a partir dessas incertezas que
nasciam com o novo século que Augusto compôs seus poemas, repletos de
cores escuras, da morte iminente e de desintegração.
Singularíssima pessoa
Conta-se que Augusto dos Anjos era franzino e recurvo, tinha um bigode
mínimo e um andar inseguro, como se estivesse sempre na ponta dos pés.
Passava tardes andando pela sala e falando sozinho, gesticulando –
comportamento que, para quem visse de fora, poderia ser considerado o de
um louco. Na verdade, como conta Orris Soares, era esse o seu processo
de criação: “Toda arquitetura e pintura dos versos, ele as fazia
mentalmente, só as transferindo ao papel quando estavam integrais”.
Nascido em Engenho de Pau d’Arco, na Paraíba, em 1884, dentro de uma
família de proprietários de engenho, Augusto dos Anjos era descendente
de senhores rurais e latifundiários. Foi seu pai, homem de ideais
abolicionistas, que educou o poeta na primeira infância – e dizem que
ele começou a escrever versos já com 7 anos de idade.
Depois de se formar advogado na Faculdade de Direito do Recife, Augusto
casou e tornou-se professor de escola: deu aulas no Liceu Paraibano,
onde havia estudado, e depois no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Foi
uma vida simples, sem grandes reviravoltas, e com poucos fatos a serem
contados.
Algumas imagens de sua infância e da terra onde cresceu, no entanto,
são retomadas nos poemas, com certa reminiscência, como se
caracterizassem uma inocência perdida com a vida adulta.
O pé de tamarindo, árvore que ainda hoje continua a existir no Memorial
Augusto dos Anjos, é personagem recorrente – tanto que é à sombra dele
que Augusto deseja ficar depois de sua morte, como anuncia no soneto
Debaixo do Tamarindo. Chamada de “Tamarindo de minha desventura”, a
árvore parece representar uma natureza diferente daquela exaltada pelos
parnasianos: mais íntima e melancólica, ela permanece como imagem
visceral de uma realidade que não foi afetada pela crueldade humana e
que pode ser a alternativa para uma harmonia que não existe entre os
homens.
De onde ela vem?! De que matéria bruta/Vem essa luz que sobre as
nebulosas/Cai de incógnitas criptas misteriosas/Como as estalactites
duma gruta?!, pergunta-se Augusto dos Anjos no poema O Deus-Verme. Essa
luz evocada, desconhecida e sombria, que vem de algum lugar não
revelado, das “desintegrações maravilhosas”, é aquela que mostra, de
viés, as diferentes faces de um poeta complexo que foge aos
enquadramentos e às classificações.
Também nós nos perguntamos de onde surgiu essa singularíssima pessoa
que estava à frente de seu tempo, e já antecipava os temas e imagens que
viriam mais tarde. Quando Carlos Drummond de Andrade, em 1930, compôs
os versos que viriam a se tornar o refrão da poesia brasileira: “Quando
nasci, um anjo torto/Desses que vivem na sombra/Disse: Vai, Carlos! Ser
gauche na vida”, talvez houvesse ali algo da voz de um poeta também
solitário e angustiado que, 17 anos antes, havia escrito Ah! Um urubu
pousou na minha sorte!
Publicado na edição 88, de julho de 2014 - Carta na Escola