Regras e práticas internas podem prejudicar qualidade e quantidade de debates dos ministros do STF
Pleno do STF reunido em sessão |
Em uma democracia representativa, a legitimidade dos cargos eletivos estaria assegurada constitucionalmente pela confiança que a população deposita, por meio do voto, em seus representantes. No Poder Judiciário os integrantes de sua cúpula nunca são eleitos, embora, no caso do Supremo Tribunal Federal (STF), sejam nomeados pelo presidente da República e a indicação passe por aprovação do Senado. Da corte da qual saem as decisões mais importantes do sistema judicial espera-se que a legitimidade emane do saber de seus 11 ministros. “Uma das fontes de legitimidade é a qualidade das deliberações do tribunal”, diz Virgílio Afonso da Silva, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Com decisões bem fundamentadas e centralizadas em poucas mãos, o STF, em seu papel principal de guardião da Constituição, faria o escrutínio necessário das leis votadas no Congresso, numerosas e muitas vezes confusas ou contraditórias entre si.
O problema reside em saber se as deliberações do Supremo são, de fato, as melhores possíveis. Essa foi a motivação do estudo “A prática deliberativa do STF”, que Silva iniciou em 2011 e está em fase de finalização. As entrevistas da pesquisa tinham por objetivo compreender como os próprios ministros do STF encaram o processo deliberativo do qual participam, uma vez que, segundo o pesquisador, “cada ministro novo se vê compelido a seguir o rito ditado pela tradição e pelo regimento interno”. Silva entrevistou 17 integrantes e ex-integrantes do STF, assegurando que as informações seriam usadas de forma anônima, a fim de deixar “os ministros à vontade para expor suas opiniões” e, com isso, retratar o processo decisório do tribunal. O estudo conclui que regras e práticas internas do STF prejudicam a qualidade das deliberações.
Não se trata de defender um modelo único de processo decisório. “As sessões podem ser públicas ou reservadas, o tribunal pode permitir ou proibir votos divergentes, produzir decisões únicas ou que apresentem os votos de todos os integrantes, ter liberdade nas escolhas de casos ou não”, diz Silva. O professor Diego Werneck Arguelhes, da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RJ), lembra que as deliberações da suprema corte alemã, por exemplo, são sempre secretas, regra que talvez sofresse rejeição se fosse adotada no Brasil. “No entanto, a opinião pública confia naquelas pessoas por defenderem ideias sedimentadas em décadas de atuação”, afirma. No tribunal constitucional alemão as decisões são pronunciadas apenas pelo presidente da corte e de modo quase sempre consensual. “O consenso é visto como sinal de que a decisão é a melhor tentativa de abordar a questão, feita por especialistas bem-intencionados.”
É nesse ponto que a diferença entre os processos decisórios no Legislativo e no Judiciário fica mais clara. Enquanto os parlamentares foram escolhidos para expressar interesses parciais, por terem sido eleitos para representar segmentos da população, os ministros do STF têm, segundo Silva, a obrigação de interpretar e aplicar a Constituição de acordo com a convicção de que a Carta deve ser a expressão da razão pública, conceito do filósofo do direito norte-americano John Rawls (1921-2002) que se refere ao consenso em torno de uma concepção de justiça compartilhada pelo conjunto da sociedade.
Uma deliberação de boa qualidade tomada em conjunto pressupõe enunciar e ouvir argumentos para que o grupo chegue a uma decisão comum, e não apenas à da maioria de seus integrantes. No caso do STF, vários fatores têm prejudicado a qualidade das deliberações. Os problemas começam no relator, tema analisado por Silva em artigo publicado no ano passado na Revista Estudos Institucionais, periódico vinculado à Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na opinião da maioria dos ministros entrevistados pelo autor, o relator tem um papel decisivo no processo no STF, pois ele “baliza todo o debate”.
Alguns ministros distinguem o papel do relator “nos casos corriqueiros” e naqueles “que atraem a opinião pública”. Um deles esclareceu que, quando a matéria não chama a atenção, o relator tem um papel decisivo, pois os demais tendem a acompanhar seu voto; contudo, quando o tema é polêmico, o voto do relator é apenas “um voto qualquer”, pois cada um dos demais ministros leva o seu já escrito. Esse é, como ressaltou Silva em outro artigo, publicado no International Journal of Constitutional Law, um fator que prejudica muito o processo de deliberação. O debate tende a ter um papel irrelevante, “na medida em que cada membro componente do tribunal se prepara para votar como se relator fosse”, nas palavras de um dos ministros.
Segundo Silva, isso ocorre devido a uma prática peculiar do STF: o relator mantém sigilo sobre seu voto até o momento da sessão. Ele divulga apenas o relatório com os dados sobre o processo, mas não os seus argumentos. Como os demais ministros ignoram a posição do relator, precisam elaborar “do zero” os próprios votos nos casos polêmicos. Um dos ministros entrevistados declarou que, “se o relator enviasse seu voto com antecedência, haveria uma clara economia de tempo”. Se alguém estivesse de acordo com o relator, bastaria seguir seu voto, o que liberaria tempo para tratar dos demais processos. Ao mesmo tempo, isso propiciaria um diálogo com os ministros que divergissem de sua posição, pois os argumentos contrários partiriam de um solo comum. “Hoje o que temos é a somatória de 11 votos, e não decisões decorrentes de discussões aprofundadas entre os ministros”, conclui Oscar Vilhena Vieira, diretor da Escola de Direito da FGV de São Paulo.
“A divulgação do voto do relator, mesmo que desejada por boa parte dos ministros, ainda suscita alguns receios”, afirma Silva. “Há ministros que não querem correr o risco de divulgar seus argumentos com antecedência para que outros ministros não possam elaborar contra-argumentos mais robustos.” Mas o voto levado pronto também conta com defensores que vão além da praticidade. “O ministro relator levar o seu voto escrito me parece boa medida, revela que o magistrado estudou bem as teses jurídicas postas no recurso”, declarou à Pesquisa FAPESP o ex-ministro Carlos Velloso, membro do STF entre 1990 e 2006. “O ideal seria que, nos casos mais complexos, houvesse sessão reservada, a fim de debater a matéria, como ocorre na Suprema Corte norte-americana.”
Outros ministros do STF reconhecem que a ausência de um debate prévio é uma das causas do número elevado de votos discordantes. Alguns observaram que nem sempre foi assim. Antigamente, as sessões de votação eram precedidas pelas chamadas sessões de conselho, nas quais os casos eram apresentados previamente, o que permitia que os ministros conhecessem a posição uns dos outros. Isso ajudava a diminuir as divergências. Mas tais sessões caíram em desuso após a presidência (2001-2003) de Marco Aurélio Mello – nomeado em junho de 1990 para o tribunal –, que não as apreciava.
Alta exposição
Outro fator que aparentemente pesa nos julgamentos é o elevado grau de exposição a que os ministros estão submetidos. Desde 2002, as sessões do STF são transmitidas ao vivo pela TV Justiça, o que deixa os magistrados expostos diretamente ao grande público. Por essa razão, de acordo com Silva, hoje os integrantes do Supremo parecem estar mais preocupados com as opiniões vigentes fora do tribunal do que com os argumentos de seus colegas, por estarem preocupados com a reputação pública, que se baseia em grande parte no desempenho dos membros do tribunal como oradores.
“Os magistrados são homens, não são anjos, e a vaidade é própria do ser humano”, diz Velloso. “A transmissão pela televisão tem banalizado os julgamentos e o próprio tribunal.” Conrado Hübner Mendes, professor da Faculdade de Direito da USP, considera grave o grande aumento de exposição pública. “A qualidade das deliberações piorou muito e expôs o tribunal à cacofonia das opiniões individuais dos ministros a respeito de qualquer assunto público sobre o qual são perguntados pela imprensa.”
Virgílio Afonso da Silva considera que esse grau de exposição acentuou o individualismo dos ministros e tem prejudicado o funcionamento do colegiado. Sem tanta publicidade, seria razoável supor que os ministros se sentissem mais à vontade para discutir os argumentos e eventualmente mudar de opinião. Mas, diante das câmeras de TV, a disposição para acolher argumentos contrários diminui consideravelmente – especialmente nos casos mais polêmicos.
Seria possível aprimorar o processo decisório no STF? “Algumas pequenas alterações já fariam uma enorme diferença”, diz Silva. “O debate antes da tomada de votos é uma possibilidade prevista no regimento, mas é pouco aplicada. Os ministros dizem que o problema é a carga de trabalho, que realmente é grande, mas penso que o STF poderia escolher os casos mais importantes e promover debate prévio.”
Por várias razões, entre elas o aumento de atribuições do STF pela Constituição de 1988, a quantidade de casos que chega ao tribunal é enorme. Em 2014, o número de processos novos foi de 78.110. “O Supremo ainda não compreendeu que só deve julgar o que interessa a milhões de pessoas; é isso que a Constituição quer”, avalia Velloso. O ex-ministro acrescenta que uma das atribuições do tribunal, julgar os membros do Poder Executivo, do Congresso e o procurador-geral da República, “transformou o Supremo em corte criminal”.
Para Oscar Vilhena Vieira, o aperfeiçoamento do processo decisório exigiria uma redução do número de competências do STF (ver quadro). “O acúmulo de tarefas vem sendo enfrentado com a crescente ampliação das decisões monocráticas”, analisa Vilhena, referindo-se àquelas em que a decisão fica a cargo de apenas um magistrado. “Pelo fato de se tratar de um tribunal irrecorrível e, portanto, aquele que corre o risco de errar em último lugar, seria importante que as decisões fossem majoritariamente de natureza coletiva.”
O excesso de trabalho teria origem, pelo menos em parte, nos procedimentos habituais do STF, argumenta Diego Werneck Arguelhes. “O Supremo sempre se recusou a perder competências”, diz. “Hoje alguns ministros começam a aceitar que será necessário fechar algumas portas. O que um tribunal constitucional deve fazer é discutir teses, não ser o corretor geral de injustiças da República.” O grande problema do STF, em sua opinião, é a inconstância nos próprios procedimentos, por “falta de iniciativa para sistematizar regras e colocá-las em prática”, ficando a cargo do relator decidir caso a caso. Para o pesquisador, falta transparência, por exemplo, no modo como a pauta é escolhida. “Qualquer proposta de mudança esbarra em dois problemas básicos: poderes individuais exacerbados e inexistência de instrumentos claros para controlar a conduta de seus integrantes”, afirma.
Fonte: Revista Pesquisa FAPESP, Ed. 243, Mai 2016