domingo, 2 de agosto de 2020

CELEBRANDO O POETA (À MEMÓRIA DE NAURO MACHADO)

Dois poemas de Nauro Machado (1935-2015)

NAURO MACHADO (02/08/1935 – 28/11/2015)

 

Nascido em 02 de agosto de 1935, em São Luís/MA, Nauro Diniz Machado, casado com a escritora Arlete Nogueira da Cruz, foi filho de Torquato Rodrigues Machado e Maria de Lourdes Diniz Machado.

Sua poesia questiona a essência e destinação do humano, e é atravessada por intensa reflexão existencial, um demarcado tom de angústia, pelas dores do viver e pelo sentimento de finitude. Seus versos trazem peso e densidade viscerais.

Em Nauro Machado nada é leve, despretensioso ou primaveril. Tudo é urdido com meticulosa ordem, num alinhavado de ideias-força que ambientam o amálgama de sua obra poética.

Sua linguagem é pautada pela técnica de versos exemplares, sobretudo a que é utilizada na construção dos sonetos, forma que dominou de modo notável.

Um escritor que a vida fez poeta e a poesia, com seu verbo, fez habitar a existência. Existência pintada com as tintas do trágico e do drama, presa à condição fatídica do mover-se, qual pêndulo, entre a dádiva e a maldição.

Em outubro de 2015 recebeu o título de "Doutor Honoris Causa", concedido pelo Reitor da Universidade Federal do Maranhão, em decorrência de propositura apresentada pelo professor e filósofo Ivan Pessoa. Nesse mesmo ano, lançou seu último livro: O baldio som de Deus. Na ocasião, revelou ter mais cinco livros prontos, ainda inéditos.

Morreu aos 80 anos, em 28 de novembro de 2015, na cidade de São Luís, em decorrência de uma isquemia no trato digestivo.

Acerca da sua figura e sua produção, vejamos o que dizem alguns críticos:

“Tenho para mim que, de seu ponto de observação no litoral maranhense, Nauro Machado apascentou milhares de versos que nos explicam e dão força ao estar-aí brasileiro. O livro de agora consta de um poema só. Em 61 sextetos, rijos como chumbo e mansos como canto gregoriano, ergue o poeta um arcabouço de epopeia, com imprecações e vocativos que exigem respostas do outro lado, esse misterioso lado que está perto de todos nós e a que temos de dar satisfações a cada instante do avanço. (...) O poeta sente que é preciso soletrar o pó, perceber que o tempo não passa, nós passamos por ele, cuidando meticulosamente de cada verso, enxugando-o, polindo-o e evitando que ele ultrapasse o seu limite exato de significação.” (Antônio Olinto, ensaísta, romancista, poeta e membro da Academia Brasileira de Letras, escreveu e publicou estes artigos na Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, sobre dois livros de Nauro Machado)

“... em Nauro Machado, sua constante perquirição com os versos representa sua dicotomia, inerente à castração do viver humano. Utiliza-se de versos carregados de metalinguagens que evidenciam a carga semântica de seus poemas na sua "profissão de fé na poesia": um marco de autenticidade da proposta apresentada no longo percurso de sua produção literária que é a permanente reflexão com os temas universais da constante indagação do ser.” (Valderi Ximenes de Menezes, professor de Teoria Literária da Universidade Estadual do Maranhão, em ensaio de 2011, intitulado Nauro Machado: a introspecção poética e o fluxo da memória)

“Nota-se na poesia de Nauro Machado uma idéia quase obsessiva de um começo que não existe mais porque já é um fim. Tudo isso ocorre de tal maneira que lhe parece estar a deslizar com o tempo, o tempo que já morre.” (Magaly Trindade Gonçalves, em artigo do ano de 2010 da revista Linguagem Viva, n.º 256, ano XXI)

“Tal como Heidegger, Nauro Machado também expõe a diferença radical entre o ser o e o ente. O “ser-aí” é aquilo que é característico do homem, mas apenas o homem existe como um “ser-aí” capaz de revelar-se, em uma tomada de consciência como a oferecida por meio da linguagem. O homem tem, portanto, a possibilidade de vir à tona de si mesmo e apresentar-se enquanto tal, ou seja, como um ser que se manifesta no tempo, dotado de temporalidade e existência.” (Ricardo André Ferreira Martins, no artigo intitulado Ser, angústia e poesia: uma leitura heideggeriana de Nauro Machado, publicado na revista Signótica, v. 24, n. 1, jan./jun. 2012)


No meu livro “Pedra dos Olhos” (São Luís: Hamsa, 2019) há um poema intitulado “Nauro” (poema extra), feito em homenagem ao grande poeta ludovicense, que reproduzo aqui, e sobre o qual a poetisa Laura Amélia Damous Duailibe, autora de Brevíssima canção do amor constante (1987) e membro da Academia Maranhense de Letras, me confidenciou ser o poema que gostaria de ter escrito para ele.

 

Nauro (poema extra)

 

Eu o vejo descendo a pé

A sempre velha Rua de Nazaré...

Os velhos prédios, as velhas pedras

Acenam pra ele no passar infindo.

Leva à mão direita

Um guarda-chuva negro, grande

E pontudo...

Na mão esquerda uma pasta

(que ao poeta nada basta).

Na mão direita seu guarda-chuva

(guarda-preces, guarda-dores, guarda-escárnios),

tal qual bengala, margeia a beira,

feia, fria e dura beira de calçada,

como se escrevesse, como se traçasse,

nela e com ela, uma outra linha,

paralela, imaginária...

ponteando o seu passar.

Nauro desce a Praia Grande.

Seu corpo é um grande copo,

Corpo translúcido, brilhante,

Cabendo no fluxo de um líquido

Profuso que cai no vazio vazante

Do continente, conteúdo que espuma

Da cabeça aos pés e se banha no rio

Do temporário, que o espera sobre

As mesmas mesas dos mesmos bares,

Refúgio presente, pleno sacrário

De tudo que sorve a dor e proclama

Suas relíquias no objeto incendiário.

 

Vejo daqui, desta sacada,

Bem de cima, bem do alto,

Tua cabeça descampada.

Vejo da sacada deste velho casarão.

Tua cabeça é como um vão.

A tua sombra perene,

teus versos enchendo a rua,

subindo aos ares, lambendo o chão,

onde correm passos que varrem

a paisagem, paisagem solene

das pedras que dormem nuas.

Silêncio, silêncio meu poeta!

Estou afeito a curtir pensamentos

Que escrevem mãos caladas.

Vago também pelos vales e valas,

Pelas vagas onde ecoam os berros

De tua voz grave e trágica.

Ecoa no espaço azul do sereno,

Vige ainda no tempo o teu dito.

Oh! poeta, que me ofusca!

 

Oh! tu, poeta, és quase adivinho,

És quase profeta na encruzilhada.

 

Tua fala, teu andar desconcertante,

Teu acuro com a essência da palavra,

Prisão ferrenha, destino amargo

e porto incandescente.

Em teu ombro carregas, cansado,

o altar de Apolo.

Mesmo assim, celebras Dionísio.

 

Oh! tu, amena criatura! Solitário ser

Que transita nossas ruas escuras,

Confiscando as posses desse sítio falido,

Confundindo-se à fauna efêmera

Das desvanecidas multidões,

Que, pouco a pouco, sucumbem

à dilaceração furiosa do teu logos,

semente negra que se espalha

sob os restos de tudo que jaz,

perfumando com ácido aroma

nossa triste e perpétua mortalha.

 

Dentro de ti, de tua pasta,

Não sei o que carregas.

(Talvez carregue mágoas!)

Talvez nela guardes poemas novos,

poemas velhos, poesias enjauladas...

Na tua pasta (ó, meu poeta!) só cabe a tua alma.

Há pouco espaço para o ser que não és.

 

Assim vai, descendo o poeta, sempre a pé,

A mais que velha Rua de Nazaré.

 

Poeta nefasto, poeta nefando...

Música trágica tocando ao fundo,

Qual trilha sonora do meu desencanto.

Uma criatura qualquer, filha das ruas,

Passante sem rumo, o saúda com palavras

Que, à distância, não as ouço dizer,

 

Vai, rua abaixo, o poeta... sismo ambulante.

 

Dele saem gotas frias de suor,

Banhando sua carne inquieta,

Sua magnitude metafísica.

Poeta malvisto, mas poeta que se guarda.

Poeta sem lugar, posto que abarca

O tudo e o nada.

 

São Luís é pequena... São Luís é parca...

A ilha é pequena, é pouca, esquálida...

Não preenche o vazio de sua estrada,

Pois fenece antes, apodrece em suas mãos,

Sem chegar ao profundo, sem abrir as portas

E adentrar as salas desertas que afloram

no além-palavra.

 

Por fim, para quem quiser conhecer um pouco da sua vasta produção, trago aqui

5 Poemas de Nauro Machado:

 

CHEGADA A HORA O SONHO SERÁ TERRA

 

Chegada a hora o sonho será terra,
o medo dará seu último vintém,
e o passado e o futuro serão guerra
do não-ser sobre terras de ninguém
Árvore gémea à que em dor se enterra,
o céu descerá em busca de outro além,
e unidos ambos, corpo e céu, a alma er-
rará distante, mas morta, também.
Será possível mesmo o fim de tudo,
tudo tão rápido? Ó pássaro ao vento,
ó ave sombria: cantai num templo mudo,
a atroz saudade da alma nunca vista,
passo perdido em negro firmamento,
paisagem morta — que a terra conquista!

 

PEQUENA ODE A TRÓIA


Como te massacraram, ó cidade minha!
Antes, mil vezes antes fosses arrasada
por legiões de abutres do infinito vindos
sobre coisas preditas ao fim do infortúnio
(ânsias, labéus, lábios, mortalhas, augúrios),
a seres, ó cidade minha, pária da alma,
esse corredor de ecos de buzinas pútridas,
esse vai-e-vem de carros sem orfeus por dentro,
que sem destino certo, exceto o do destino
cumprido por estômagos de usuras cheios,
por bailarinos bascos sem balé nenhum,
por procissões sem deuses de alfarrábios velhos,
por úteros no prego dos cachos sem flores,
por proxenetas próstatas de outras vizinhas,
ou por desesperanças dos desenganados,
conduzem promissórias, anticonceptivos,
calvos livros de cheques e de agiotagem,
esses lunfas políticos que em manhãs — outras
que aquelas já havidas, as manhãs do Sol —
saem, quais ratazanas pelo ouro nutridas,
apodrecendo o podre, nutrindo o cadáver.
Se Caim matou Abel e em renovado crime
Abel espera o dia de novamente ser
assassinado em cunha de rota bandeira,
que inveja paira em Tróia ou em outro nome qualquer
da terra podre e azul de água e cotonifícios?
Mutiladas manhãs expõem-se nas vitrinas
de sapatos humanos mendigando pés,
de vestidos humanos mendigando peitos,
de saias humanas mendigando sexos.
Esta é Tróia!, o vigésimo século em Tróia,
blasfemam as fanfarras de súbito mudas
nos ouvidos mareando a pancada da Terra.

A SENTENÇA



Ó solidão, minha mãe
em toda parte do corpo,
meu escaler sem esperança
no oceano dos naufrágios.

Só as árvores estão vivas
no meu espírito que é morto.
Ó sinos, pombas errantes
no bronze da eternidade!

Remai, tempo de amargura,
às praias sem amanhã.
Ó solidão, minha mãe,
medusa erguida sem pai.

 

PRECE À BOCA DA MINHA ALMA



Não te transformes em bicho,
ó forma incorpórea minha,
só porque animal capricho
perdeu o humano que eu tinha.

Guarda, do animal, o alheio
esquecimento. E somente.
Mas lembra aquele outro seio
que te nutriu a boca e a mente.

E recorda, sobretudo,
que não babas ou engatinhas,
a não ser quando te escuto
pelos becos, dentre as vinhas.

Vive como um homem morre:
em solidão e na esperança.
guardando a fé que socorre
em mim, semivelho, a criança.

Mas não te tornes em bicho,
nem percas o ser humano,
só porque a tara (ou o capricho)
deu-me este existir insano.

 

SONETO 2

 

Que me não mate o tempo ainda agora

na minha vida feita de um futuro

para negar-me ao vivo desta aurora

a amanhecer após num sol escuro.

 

Que enquanto não me cegue a última hora

a nos fazer reféns do eterno muro,

me a vida seja como um beijo fora

dado a um cadáver ainda não frio e duro.

 

E a ser da vida um fruto já tão tardo,

no dissabor vencido da revolta,

esfriando o fogo que no meu peito ardo

 

em chama estéril a que a cinza escolta,

que enfim me faça o tempo o findo tardo

de quem à terra para sempre volta.

quinta-feira, 30 de julho de 2020

QUE OS MORTOS NÃO ME OUÇAM


ROGÉRIO ROCHA - Filósofo e poeta
 

O filme Sociedade dos Poetas Mortos (Dead Poets Society), do diretor Peter Weir, lançado no ano de 1989, transformou-se rapidamente num clássico do cinema. Há várias razões para isso, dentre elas o excelente roteiro, uma leva de jovens atores, a direção certeira de Weir e a presença do ator Robin Williams no papel do professor John Keating, em uma de suas melhores atuações na tela grande.

Ambientado em 1959, na Welton Academy, o drama é inspirado na história do professor Samuel Pickering e nas bases de sua prática pedagógica inovadora.

Contratado para lecionar a disciplina de Literatura, Mr. Keating mostra ao que veio logo em seu primeiro contato com a turma. Nele apresenta sua figura emblemática e um método de ensino incomum. E, pasmem, faz isso dentro da estrutura de uma escola tradicional, em que estudam filhos de famílias abastadas e cujo corpo docente é formado, em sua quase totalidade, por educadores à moda antiga, habituados aos esquemas didáticos rígidos e repetitivos.

Assim que encontra sua classe, Keating adentra a sala sorridente para, em seguida, dirigir-se até a porta, convidando os alunos a seguirem-no até um outro ambiente. Rompendo com as estruturas do ensino verticalizado (aquele no qual o mestre fala e os alunos só ouvem), o novo professor apresenta aos jovens o poema metafórico de Walt Whitman “O Captain! My Captain”, feito em homenagem a Abraham Lincoln e aqui reproduzido na força de sua primeira estrofe.

O Captain! my Captain! Our fearful trip is done;
The ship has weathered every rack, the prize we sought is won;
The port is near, the bells I hear, the people all exulting,
While follow eyes the steady keel, the vessel grim and daring:
But O heart! heart! heart! O the bleeding drops of red, Where on the deck my Captain lies, Fallen cold and dead.

Ex-aluno da mesma instituição, o instigante Keating apresenta-lhes também a noção do Carpe Diem (extraído às Odes de Horácio), um verdadeiro leitmotiv de sua pedagogia, exultando a necessidade de se viver o instante e aproveitar o momento fugaz.

Num processo de sedução construído com a alegria do viver, o educador-poeta liberta seus alunos das amarras do conformismo, abrindo-lhes as portas da percepção do belo e da busca apaixonada pelo saber.

Ensina-lhes o que não é perguntado nos testes, o que não vale nota e não reprova. Leva-lhes a refletir sobre o mundo, a vida, seus aprendizados, sobre a literatura e seu fazer real, forjado na marcha dos dias, dos prazeres e das dores. Estimula-os a descobrir novos olhares, a trilhar outros caminhos, a romper com a doutrina dos livros seguidos por seus velhos professores.

Demonstrando ousadia, pede aos alunos que arranquem páginas de um livro obsoleto enquanto sobe na mesa para mostrar-lhes como podemos olhar as coisas por um novo ângulo.

O espanto causado pela forma nada ortodoxa de ensino e as novas rotinas pautadas pelo educador terminam por envolver toda a turma. Ademais, a figura empática do professor Keating toca o coração daqueles jovens ao devotar a eles uma atenção genuína, preocupando-se em extrair de cada um o seu melhor.

Revendo a película, e revivendo as emoções que ela me causa, questiono-me, ainda hoje, sobre o real sentido da educação, sobre as motivações que levam os verdadeiros professores a conduzir mentes e destinos ao aprendizado significativo. Evidentemente, apoio-me na realidade nada cinematográfica para perceber que atores sociais como o representado por Robin Willians, no papel de professor, sempre foram (e continuam a ser) a exceção.

Mestres fora do comum são geralmente rechaçados, vistos como excêntricos, estranhos, esquisitos. A escola não está preparada para eles. Razão pela qual suscitam, ainda, muito mais desconfiança do que aceitação, chegando, por vezes, ao cúmulo de os alunos preferirem professores medianos àqueles capazes de fazê-los despertar de seus estados de apatia.

Enquanto isso, nas universidades e no ensino médio, há professores e professoras que lecionam ‘literatura’ do mesmo jeito que ensinavam quando ingressaram no magistério. Com aulas engessadas, conseguem o supremo feito de tornarem pouco interessante uma das matérias mais imaginativas da grade curricular.

Mestres e mestras que preferem optar pelo cientificismo planificado das ementas a terem de buscar conhecer quem são os alunos de carne e osso que sentarão para vê-los e ouvi-los ministrarem sua disciplina.

É verdade, entretanto, que há também alunos pálidos, sem lugar no mundo. Que habitam as aulas com seus corpos pasmados e olhares perdidos. Sem compromisso com nada, sequer com eles mesmos. O que nos leva a indagar: como chegaram a esse ponto? Já eram assim ou tornaram-se isso ao longo de suas vidas? São frutos de professores ruins e escolas piores? Ou crias de um universo familiar pobre de espírito? Deixo no vácuo as respostas.

Voltando, entretanto, ao filme, marco da cinematografia acerca da figura dos grandes professores, vemos, em seu desfecho, que tudo valeu a pena. Apesar das perdas, das tragédias, do sofrimento libertador, pessoas e vidas foram transformadas. E a semente da inquietação, de quem busca com amor o seu verdadeiro destino, enfim foi plantada.

Mesmo na despedida, com a demissão do mestre, percebe-se que seus alunos já não eram os mesmos. Eram outros, mais ávidos, sagazes, melhorados. O professor, aliás, mostrou-se também um capitão. Um capitão da sensibilidade: “Oh Capitão, meu Capitão”

Quanto a vocês, não sei, mas para mim ficaram evidenciadas pelo menos duas lições: a primeira, de que não há maior recompensa do que a que brota da riqueza das almas agraciadas com a descoberta autônoma de suas próprias verdades; a segunda, de que nenhum método avaliativo supera as reflexões vivenciadas na dinâmica das vidas reais, que se entrelaçam na sede do saber. E que os mortos não me ouçam, mas parece haver mais graça em aprender com os arroubos criativos de Mr. Keating e a força poética de Walt Whitman do que com as pregações cansativas de alguns mestres da repetição. 


domingo, 12 de julho de 2020

A ALEGRIA DO SILÊNCIO (ROGÉRIO ROCHA)

Rogério Rocha (filósofo e poeta)


Num mundo povoado de estímulos audiovisuais, distrações e barulhos, é cada vez mais raro encontrar quem se volte a uma prática de imensa simplicidade, quase esquecida pelas pessoas de nosso tempo: a experiência do silêncio.
Se nos perguntássemos agora o quanto do tempo de nossas vidas dedicamos à nossa interioridade, às reflexões mais íntimas, à meditação feita na paz de um cuidado, a maioria certamente responderia que muito pouco ou quase nada. Mas, afinal, o que há de tão importante na cultura do silêncio? Que benefícios pode nos trazer o mergulho nas profundezas dessa disposição vivencial?
Em tempos de furiosa confusão de imagens, sons e ideias desconexas, numa civilização pautada no que é “novo”, efêmero e fugidio, o ritmo acelerado de nossas existências é preenchido com toda espécie de coisas (menos as fundamentais). Algumas necessárias e quase obrigatórias, outras totalmente dispensáveis e até mesmo sem sentido.
Na sociedade da informação massificada, polarizada em discussões odiosas em torno da política e suas ideologias, fundada na objetividade hipermoderna, na velocidade e no cansaço, no pragmatismo e no padrão universal de comportamentos guiados por necessidades artificiais, forjadas na base de um mundo de fazeres e afazeres, distrações e construtos direcionados ao consumo rápido e rasteiro, a vida silenciosa da interioridade é um tema excluído do rol de interesses de nossa mais exacerbada mundanidade.
Pelo contrário, é o destaque frenético do(s) barulho(s) que verdadeiramente impera. Do som dos artefatos externos aos nossos corpos e do pensamento (acelerado) que transborda no verborrágico.
Os muitos sons que nos cercam dão prova disso. As vociferações radiofônico-televisivas, o palavrório sem fim das futilidades midiáticas, das redes (anti)sociais, de quem só fala e não ouve, dos que só escrevem e não leem, a massiva urgência de novos e mais estrondosos meios de chamar atenção (e para isso os megafones, as poderosas estruturas sonoras, etc.), os paredões das radiolas, das pick-ups dos playboys sertanejos e a música feita e consumida por gente com déficit de sensibilidade estética povoam nossos ouvidos fragilizados.
Decibéis de ruídos citadinos são produzidos no desassossego dos ambientes privados ou públicos, nas ruas, praças e centros de circulação de pessoas. Com isso, paulatinamente, vamos sendo dragados para dentro de um caos de sonidos no envoltório do cotidiano. Pouco a pouco, somos vencidos, entregamos nossas almas. Pouco a pouco, também, nos esquecemos de cultivar os instantes de solidão positiva, de paz amena. Instantes nos quais deveríamos nos devotar ao exercício pleno de um silêncio necessário.
Pois é na serenidade do silêncio que buscamos o reencontro com nossa essência, nossa verdade última. É no íntimo de uma prece sem palavras, de um canto sem frases, de uma música sem melodia, de uma reflexão sem arroubos de tagarelices, que podemos fazer brotar os segredos perdidos, blindar a mente da loucura e da angústia das relações extenuantes.
As culturas ancestrais, as escolas de mistérios, as seitas iniciáticas, as grandes filosofias do Oriente, as religiões primitivas e os mestres sapienciais, há muito nos ensinam a importância do saber calar-se, do não dizer, do mover-se para dentro, com ouvidos plenos ao que está para além do plano dos meros fenômenos.
Os monastérios, como lugares de profundo burilar da interioridade, calcados sobretudo no silêncio dos que oram e laboram. A calma imensa dos claustros, a paz intensa dos vastos campos, dos desertos, dos cemitérios, dos templos vazios, a nos conduzir a uma viagem interior, reflexiva, de um intenso desvendar de saberes, de um descortinar de véus, ideias, visões.
Só a prática silenciosa de uma escuta atenta pode nos conectar com o universo que existe dentro e fora de nós.
A meditação silente nos treina para a profundidade dos sentidos não lidos e não expressos na linguagem ensurdecedora dos ruídos do dia a dia, que destroem os raros momentos de contemplação. A distração contemporânea de uma vida voltada aos barulhos nos tolhe de experimentar o gosto de uma paz constantemente negligenciada.
Até mesmo os que oram, nestes tempos de estridência, preferem os brados ecoantes das igrejas abarrotadas ao sossego de uma prece muda, porém sincera, intensa, introspectiva, feita no recesso de um quarto, em consonância com as mais puras vibrações divinas.
Enfim, o ato do silêncio (sua procura, seu existir) está na gênese de toda questão, no âmago de todo espanto, no brotar de cada acontecimento.
Grandes ideias surgiram do pensamento que escutava apenas seus próprios sussurros. Os iluminados atingiram a perfeição que buscavam justo nas longas jornadas ao centro de seus íntimos temores, de suas dúvidas, seus anseios e aspirações.
O silêncio tem sempre algo a nos dizer. Traz em si muitos ensinamentos. Equilibra, harmoniza e potencializa nossas capacidades. Energiza nosso ser. Vincula-nos a algo maior e sagrado.
Não custa nada experimentar alguns momentos dessa paz. Reservar instantes para calar as palavras em nossos pensamentos. Desfrutar, sem pressa, da viagem que nenhuma agência pode ofertar.
Por isso, faço um apelo aos que ainda podem ouvir. Em meio ao triste caos contemporâneo, mergulhemos na alegria do silêncio.

Rogério Rocha escreve às sextas-feiras para o Textual, coluna do blog de literatura Os Integrantes da Noite.

domingo, 19 de abril de 2020

Vida de cão (As crônicas de Maurício)




Rogério Rocha (poeta, escritor, filósofo)
No condomínio mora muita gente. São quatro etapas com sete blocos cada. Cada bloco com doze apartamentos, divididos em três andares. Neles, muitas famílias: adultos, crianças, jovens, idosos e conflitos, como é inevitável em lugares em que muitos residem.

Como não poderia deixar de ser, tem quem goste e odeie animais. 

É um lugar onde há muitos felinos, é bom dizer. Gatos, gatas e seus filhotes criaram verdadeiras comunidades dentro da comunidade. Desse modo, cada bloco tem lá seus dez a quinze gatos, quase plenamente integrados ao cenário interior do conjunto. 

Digo quase porque, afora os que tem donos e vivem suas vidas mansas dentro dos apartamentos, os que transitam no mundo exterior são alvos constantes de moradores que os odeiam e aspiram um dia vê-los todos empalhados em estantes, atropelados pelo carro da coleta de lixo, quem sabe até fritos em espetinhos servidos em botecos ou simplesmente fora deste ambiente social ocupado por humanos. 

Existem, de outra parte, aqueles que os defendem e lhes dão bom trato, cuidando de alimentá-los e municiá-los com água potável e ração, com regularidade e em horários britanicamente observados. 

Há uns quatro anos, contudo, surgiu por aqui um cachorro. Abandonado, adentrou a área dos blocos e passou a dormir nos tapetes da porta de entrada de alguns prédios. A princípio rechaçado, foi ficando, ficando... Hoje já faz parte da ambiência e responde pelo nome de Maurício. 

Foi adotado pela comunidade intramuros e alçou-se ao patamar de cão coletivo. 

Não me perguntem quem deu a ele este nome. Nome bonito, por sinal, e nome de gente (a primeira vez que ouvi alguém chamá-lo energicamente, pensei que fosse algum novo morador que chegara).

Sei que Maurício, hoje alegre e faceiro, é um misto de cão sem raça definida e Labrador Retriever; ícone das manhãs iluminadas, das tardes chuvosas e das noitadas sonolentas. Ora a perseguir outros dogs, ora a implicar com os gatos, correndo feito louco pelo jardim, ou a encarar os transeuntes com seus mimos e assédios. 

O cão muitas vezes age como um ator. Em sua performance mais costumeira apresenta aquilo que poderíamos chamar de falso ataque. Vai ao encontro de alguns moradores menos conhecidos (sim, aqueles que a gente não vê quase nunca), rosnando e encarando-os para, logo depois, passado o susto tremendo de quem foi alvo de seus latidos abafados, tornar à posição inicial de cão de guarda. Sem morder ou arranhar ninguém, senta-se ou deita-se no mesmo posto em que estava, como se nada tivesse acontecido (para a irritação de suas espantadas quase-vítimas). 

Amado por muitos e odiado por outros, é filho, amigo, problema, solução, companheiro, morador, barulhento, moleque, serelepe, bagunceiro, intruso e guarda-noturno. Um cão de todos e de ninguém. Aliás, foi assim que chegou: como se fosse ninguém, como se um nada houvesse chegado. Como se fora uma coisa, um ente estranho, de origem ignorada. Chegou como se uma espaçonave vinda de Vênus o tivesse deitado ao solo durante o silêncio puro da madrugada. 

Ilustre e famoso morador do condomínio (hoje com endereço, dono e moradia) nosso Maurício apareceu aqui com o abandono estampado na pele, a dor na carcaça e o fel da amargura habitando em seus olhos. 

Era arredio, desconfiado, carente. Aparentava ter sofrido muito lá por onde andou. Parecia congregar em si, a um só tempo, angústia e necessidade. A angústia solitária de ver-se qual ser-aí-no-mundo, em meio a hominídeos desconfiados, insanos e atrozes. E a necessidade de tudo: afeto, acolhimento, de uma geografia, um entorno, um fora e um dentro onde estar. 

Hoje, ajudante da segurança, monta guarda todas as noites ao lado dos vigias dos blocos. Não recebe por isso nada mais do que sua paga habitual: o carinho daqueles que o amam e o desprezo dos que o detestam. Vida de cão é assim! 

No mundo, eu sei, há muita gente que se sente como Maurício: triste às vezes, feliz em outras tantas, a correr atrás de gatos imaginários, lambendo o pelo depois de ser molhado pela lama da poça d’água que um automóvel lhe espirrou; sem pai nem mãe; despejado de um lar que nunca habitou, que nunca lhe pertenceu. Essa mesma gente, penso, tem muito a aprender com a humanidade presente na alma do nosso sofrido cão.

domingo, 12 de abril de 2020

Angra - Rebirth (acústico)



Rebirth (Angra)

Cooling breeze from the summer day
Hearing echoes from your heart
Learning how to recompose the words
Let time just fly

Joyful sea-gulls roaming on the shore
Not a single note will sound
Raise my head after I dry my face
Let time just fly

Recalling, retreating
Returning, retrieving
A small talk you're missing
More clever, but older now

A leader, a learner
A lawful beginner
A lodger of lunacy
So lucid in a jungle
A helper, a sinner
A scarecrow's agonizing smile

Oh Oh! Minutes go round and round
Inside my head
Oh Oh! My chest will now explode
Falling into pieces
Rain breaks on the ground! -blood

One minute forever
A sinner regreting
My vulgar misery ends

(And I) ride the winds of a brand new day
High where mountains stand
Found my hope and pride again
Rebirth of a man

Time to fly...
 

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