domingo, 19 de abril de 2020

Vida de cão (As crônicas de Maurício)




Rogério Rocha (poeta, escritor, filósofo)
No condomínio mora muita gente. São quatro etapas com sete blocos cada. Cada bloco com doze apartamentos, divididos em três andares. Neles, muitas famílias: adultos, crianças, jovens, idosos e conflitos, como é inevitável em lugares em que muitos residem.

Como não poderia deixar de ser, tem quem goste e odeie animais. 

É um lugar onde há muitos felinos, é bom dizer. Gatos, gatas e seus filhotes criaram verdadeiras comunidades dentro da comunidade. Desse modo, cada bloco tem lá seus dez a quinze gatos, quase plenamente integrados ao cenário interior do conjunto. 

Digo quase porque, afora os que tem donos e vivem suas vidas mansas dentro dos apartamentos, os que transitam no mundo exterior são alvos constantes de moradores que os odeiam e aspiram um dia vê-los todos empalhados em estantes, atropelados pelo carro da coleta de lixo, quem sabe até fritos em espetinhos servidos em botecos ou simplesmente fora deste ambiente social ocupado por humanos. 

Existem, de outra parte, aqueles que os defendem e lhes dão bom trato, cuidando de alimentá-los e municiá-los com água potável e ração, com regularidade e em horários britanicamente observados. 

Há uns quatro anos, contudo, surgiu por aqui um cachorro. Abandonado, adentrou a área dos blocos e passou a dormir nos tapetes da porta de entrada de alguns prédios. A princípio rechaçado, foi ficando, ficando... Hoje já faz parte da ambiência e responde pelo nome de Maurício. 

Foi adotado pela comunidade intramuros e alçou-se ao patamar de cão coletivo. 

Não me perguntem quem deu a ele este nome. Nome bonito, por sinal, e nome de gente (a primeira vez que ouvi alguém chamá-lo energicamente, pensei que fosse algum novo morador que chegara).

Sei que Maurício, hoje alegre e faceiro, é um misto de cão sem raça definida e Labrador Retriever; ícone das manhãs iluminadas, das tardes chuvosas e das noitadas sonolentas. Ora a perseguir outros dogs, ora a implicar com os gatos, correndo feito louco pelo jardim, ou a encarar os transeuntes com seus mimos e assédios. 

O cão muitas vezes age como um ator. Em sua performance mais costumeira apresenta aquilo que poderíamos chamar de falso ataque. Vai ao encontro de alguns moradores menos conhecidos (sim, aqueles que a gente não vê quase nunca), rosnando e encarando-os para, logo depois, passado o susto tremendo de quem foi alvo de seus latidos abafados, tornar à posição inicial de cão de guarda. Sem morder ou arranhar ninguém, senta-se ou deita-se no mesmo posto em que estava, como se nada tivesse acontecido (para a irritação de suas espantadas quase-vítimas). 

Amado por muitos e odiado por outros, é filho, amigo, problema, solução, companheiro, morador, barulhento, moleque, serelepe, bagunceiro, intruso e guarda-noturno. Um cão de todos e de ninguém. Aliás, foi assim que chegou: como se fosse ninguém, como se um nada houvesse chegado. Como se fora uma coisa, um ente estranho, de origem ignorada. Chegou como se uma espaçonave vinda de Vênus o tivesse deitado ao solo durante o silêncio puro da madrugada. 

Ilustre e famoso morador do condomínio (hoje com endereço, dono e moradia) nosso Maurício apareceu aqui com o abandono estampado na pele, a dor na carcaça e o fel da amargura habitando em seus olhos. 

Era arredio, desconfiado, carente. Aparentava ter sofrido muito lá por onde andou. Parecia congregar em si, a um só tempo, angústia e necessidade. A angústia solitária de ver-se qual ser-aí-no-mundo, em meio a hominídeos desconfiados, insanos e atrozes. E a necessidade de tudo: afeto, acolhimento, de uma geografia, um entorno, um fora e um dentro onde estar. 

Hoje, ajudante da segurança, monta guarda todas as noites ao lado dos vigias dos blocos. Não recebe por isso nada mais do que sua paga habitual: o carinho daqueles que o amam e o desprezo dos que o detestam. Vida de cão é assim! 

No mundo, eu sei, há muita gente que se sente como Maurício: triste às vezes, feliz em outras tantas, a correr atrás de gatos imaginários, lambendo o pelo depois de ser molhado pela lama da poça d’água que um automóvel lhe espirrou; sem pai nem mãe; despejado de um lar que nunca habitou, que nunca lhe pertenceu. Essa mesma gente, penso, tem muito a aprender com a humanidade presente na alma do nosso sofrido cão.

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