Rogério Rocha (poeta, escritor, filósofo) |
No
condomínio mora muita gente. São quatro etapas com sete blocos cada.
Cada bloco com doze apartamentos, divididos em três andares. Neles,
muitas famílias: adultos, crianças, jovens, idosos e conflitos, como é
inevitável em lugares em que muitos residem.
Como não poderia deixar de ser, tem quem goste e odeie animais.
É
um lugar onde há muitos felinos, é bom dizer. Gatos, gatas e seus
filhotes criaram verdadeiras comunidades dentro da comunidade. Desse
modo, cada bloco tem lá seus dez a quinze gatos, quase plenamente
integrados ao cenário interior do conjunto.
Digo quase porque,
afora os que tem donos e vivem suas vidas mansas dentro dos
apartamentos, os que transitam no mundo exterior são alvos constantes de
moradores que os odeiam e aspiram um dia vê-los todos empalhados em
estantes, atropelados pelo carro da coleta de lixo, quem sabe até fritos
em espetinhos servidos em botecos ou simplesmente fora deste ambiente
social ocupado por humanos.
Existem, de outra parte, aqueles que
os defendem e lhes dão bom trato, cuidando de alimentá-los e
municiá-los com água potável e ração, com regularidade e em horários
britanicamente observados.
Há uns quatro anos, contudo, surgiu
por aqui um cachorro. Abandonado, adentrou a área dos blocos e passou a
dormir nos tapetes da porta de entrada de alguns prédios. A princípio
rechaçado, foi ficando, ficando... Hoje já faz parte da ambiência e
responde pelo nome de Maurício.
Foi adotado pela comunidade intramuros e alçou-se ao patamar de cão coletivo.
Não
me perguntem quem deu a ele este nome. Nome bonito, por sinal, e nome
de gente (a primeira vez que ouvi alguém chamá-lo energicamente, pensei
que fosse algum novo morador que chegara).
Sei que Maurício,
hoje alegre e faceiro, é um misto de cão sem raça definida e Labrador
Retriever; ícone das manhãs iluminadas, das tardes chuvosas e das
noitadas sonolentas. Ora a perseguir outros dogs, ora a implicar com os
gatos, correndo feito louco pelo jardim, ou a encarar os transeuntes com
seus mimos e assédios.
O cão muitas vezes age como um ator.
Em sua performance mais costumeira apresenta aquilo que poderíamos
chamar de falso ataque. Vai ao encontro de alguns moradores menos
conhecidos (sim, aqueles que a gente não vê quase nunca), rosnando e
encarando-os para, logo depois, passado o susto tremendo de quem foi
alvo de seus latidos abafados, tornar à posição inicial de cão de
guarda. Sem morder ou arranhar ninguém, senta-se ou deita-se no mesmo
posto em que estava, como se nada tivesse acontecido (para a irritação
de suas espantadas quase-vítimas).
Amado por muitos e
odiado por outros, é filho, amigo, problema, solução, companheiro,
morador, barulhento, moleque, serelepe, bagunceiro, intruso e
guarda-noturno. Um cão de todos e de ninguém. Aliás, foi assim que
chegou: como se fosse ninguém, como se um nada houvesse chegado. Como se
fora uma coisa, um ente estranho, de origem ignorada. Chegou como se
uma espaçonave vinda de Vênus o tivesse deitado ao solo durante o
silêncio puro da madrugada.
Ilustre e famoso morador do
condomínio (hoje com endereço, dono e moradia) nosso Maurício apareceu
aqui com o abandono estampado na pele, a dor na carcaça e o fel da
amargura habitando em seus olhos.
Era arredio, desconfiado,
carente. Aparentava ter sofrido muito lá por onde andou. Parecia
congregar em si, a um só tempo, angústia e necessidade. A angústia
solitária de ver-se qual ser-aí-no-mundo, em meio a hominídeos
desconfiados, insanos e atrozes. E a necessidade de tudo: afeto,
acolhimento, de uma geografia, um entorno, um fora e um dentro onde
estar.
Hoje, ajudante da segurança, monta guarda todas as noites
ao lado dos vigias dos blocos. Não recebe por isso nada mais do que sua
paga habitual: o carinho daqueles que o amam e o desprezo dos que o
detestam. Vida de cão é assim!
No mundo, eu sei, há muita gente
que se sente como Maurício: triste às vezes, feliz em outras tantas, a
correr atrás de gatos imaginários, lambendo o pelo depois de ser molhado
pela lama da poça d’água que um automóvel lhe espirrou; sem pai nem
mãe; despejado de um lar que nunca habitou, que nunca lhe pertenceu.
Essa mesma gente, penso, tem muito a aprender com a humanidade presente
na alma do nosso sofrido cão.