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domingo, 12 de julho de 2020

A ALEGRIA DO SILÊNCIO (ROGÉRIO ROCHA)

Rogério Rocha (filósofo e poeta)


Num mundo povoado de estímulos audiovisuais, distrações e barulhos, é cada vez mais raro encontrar quem se volte a uma prática de imensa simplicidade, quase esquecida pelas pessoas de nosso tempo: a experiência do silêncio.
Se nos perguntássemos agora o quanto do tempo de nossas vidas dedicamos à nossa interioridade, às reflexões mais íntimas, à meditação feita na paz de um cuidado, a maioria certamente responderia que muito pouco ou quase nada. Mas, afinal, o que há de tão importante na cultura do silêncio? Que benefícios pode nos trazer o mergulho nas profundezas dessa disposição vivencial?
Em tempos de furiosa confusão de imagens, sons e ideias desconexas, numa civilização pautada no que é “novo”, efêmero e fugidio, o ritmo acelerado de nossas existências é preenchido com toda espécie de coisas (menos as fundamentais). Algumas necessárias e quase obrigatórias, outras totalmente dispensáveis e até mesmo sem sentido.
Na sociedade da informação massificada, polarizada em discussões odiosas em torno da política e suas ideologias, fundada na objetividade hipermoderna, na velocidade e no cansaço, no pragmatismo e no padrão universal de comportamentos guiados por necessidades artificiais, forjadas na base de um mundo de fazeres e afazeres, distrações e construtos direcionados ao consumo rápido e rasteiro, a vida silenciosa da interioridade é um tema excluído do rol de interesses de nossa mais exacerbada mundanidade.
Pelo contrário, é o destaque frenético do(s) barulho(s) que verdadeiramente impera. Do som dos artefatos externos aos nossos corpos e do pensamento (acelerado) que transborda no verborrágico.
Os muitos sons que nos cercam dão prova disso. As vociferações radiofônico-televisivas, o palavrório sem fim das futilidades midiáticas, das redes (anti)sociais, de quem só fala e não ouve, dos que só escrevem e não leem, a massiva urgência de novos e mais estrondosos meios de chamar atenção (e para isso os megafones, as poderosas estruturas sonoras, etc.), os paredões das radiolas, das pick-ups dos playboys sertanejos e a música feita e consumida por gente com déficit de sensibilidade estética povoam nossos ouvidos fragilizados.
Decibéis de ruídos citadinos são produzidos no desassossego dos ambientes privados ou públicos, nas ruas, praças e centros de circulação de pessoas. Com isso, paulatinamente, vamos sendo dragados para dentro de um caos de sonidos no envoltório do cotidiano. Pouco a pouco, somos vencidos, entregamos nossas almas. Pouco a pouco, também, nos esquecemos de cultivar os instantes de solidão positiva, de paz amena. Instantes nos quais deveríamos nos devotar ao exercício pleno de um silêncio necessário.
Pois é na serenidade do silêncio que buscamos o reencontro com nossa essência, nossa verdade última. É no íntimo de uma prece sem palavras, de um canto sem frases, de uma música sem melodia, de uma reflexão sem arroubos de tagarelices, que podemos fazer brotar os segredos perdidos, blindar a mente da loucura e da angústia das relações extenuantes.
As culturas ancestrais, as escolas de mistérios, as seitas iniciáticas, as grandes filosofias do Oriente, as religiões primitivas e os mestres sapienciais, há muito nos ensinam a importância do saber calar-se, do não dizer, do mover-se para dentro, com ouvidos plenos ao que está para além do plano dos meros fenômenos.
Os monastérios, como lugares de profundo burilar da interioridade, calcados sobretudo no silêncio dos que oram e laboram. A calma imensa dos claustros, a paz intensa dos vastos campos, dos desertos, dos cemitérios, dos templos vazios, a nos conduzir a uma viagem interior, reflexiva, de um intenso desvendar de saberes, de um descortinar de véus, ideias, visões.
Só a prática silenciosa de uma escuta atenta pode nos conectar com o universo que existe dentro e fora de nós.
A meditação silente nos treina para a profundidade dos sentidos não lidos e não expressos na linguagem ensurdecedora dos ruídos do dia a dia, que destroem os raros momentos de contemplação. A distração contemporânea de uma vida voltada aos barulhos nos tolhe de experimentar o gosto de uma paz constantemente negligenciada.
Até mesmo os que oram, nestes tempos de estridência, preferem os brados ecoantes das igrejas abarrotadas ao sossego de uma prece muda, porém sincera, intensa, introspectiva, feita no recesso de um quarto, em consonância com as mais puras vibrações divinas.
Enfim, o ato do silêncio (sua procura, seu existir) está na gênese de toda questão, no âmago de todo espanto, no brotar de cada acontecimento.
Grandes ideias surgiram do pensamento que escutava apenas seus próprios sussurros. Os iluminados atingiram a perfeição que buscavam justo nas longas jornadas ao centro de seus íntimos temores, de suas dúvidas, seus anseios e aspirações.
O silêncio tem sempre algo a nos dizer. Traz em si muitos ensinamentos. Equilibra, harmoniza e potencializa nossas capacidades. Energiza nosso ser. Vincula-nos a algo maior e sagrado.
Não custa nada experimentar alguns momentos dessa paz. Reservar instantes para calar as palavras em nossos pensamentos. Desfrutar, sem pressa, da viagem que nenhuma agência pode ofertar.
Por isso, faço um apelo aos que ainda podem ouvir. Em meio ao triste caos contemporâneo, mergulhemos na alegria do silêncio.

Rogério Rocha escreve às sextas-feiras para o Textual, coluna do blog de literatura Os Integrantes da Noite.

quinta-feira, 15 de março de 2012

O CAÇADOR PERFEITO




Uma antiga estória chinesa nos conta:

Na dinastia Chou grassava uma epidemia de ratos. Estavam por toda parte, aos bandos. Até nos palácios dos senhores nada escapava. Um príncipe de Sung resolveu acabar com a praga. Se tivesse sucesso, obteria poder suficiente para desafiar o Imperador Amarelo e ocupar o trono da China.

Saiu para comprar um gato, mas não havia gato para vender. Libertados da dominação doméstica, os gatos se tinham aburguesado. Já não caçavam ratos. Apenas um ancião ainda se lembrava de um velho criador de gatos que vivia nas montanhas. Ele é que ainda poderia gatos antigos. Mas já devia ter morrido há bastante tempo.

O príncipe subiu as montanhas. Depois de muita busca, encontrou o velho criador de gatos. Comprou um gato muito bem treinado e voltou para a cidade. Chegando ao palácio pela noitinha, soltou o gato na despensa. A noite toda o gato caçou rato. Pela manhã, o príncipe estava satisfeito. Tinha resolvido o problema. Não se via um rato pelas redondezas. Correu ao Imperador a fim de levar a chave para a praga e suas pretensões. Por seu lado, os ratos se tinham recolhido aos buracos e o gato, que trabalhara a noite inteira, enrolou-se num canto e adormeceu. Os ratos, então, aproveitaram o descanso do caçador para reaparecer e limpar a despensa. Ao chegar ao palácio imperial, o príncipe soube da nova.

Revoltado, foi procurar o criador de gatos com uma queixa. O gato só caçava de noite. Passava o dia todo dormindo. E os ratos logo descobriram o método do caçador e agora dormiam de noite e roubavam de dia.

Ele precisava de um gato caçador inveterado, que caçasse dia e noite. O criador lhe disse que um gato assim era muito raro. Ele mesmo só tinha alguns exemplares. Resultava de um treinamento todo especial. Por isso era muito caro. Custava a metade de toda a riqueza do império. O príncipe achou o preço razoável para resolver um problema que lhe valeria o trono da China.

Trouxe um dos gatos especiais e soltou na despensa. O gato não parava mesmo de caçar. Caçava dia e noite, semanas a fio. O príncipe tinha resolvido o problema em definitivo. Mas os ratos esperavam nos esconderijos. Viria ainda um dia em que aquele caçador inveterado haveria de parar. Não era possível. Tinha de refazer as forças. E neste dia reapareceram com mais fome ainda e devoraram tudo que encontraram. O príncipe desesperou de vez. Já tinha comunicado ao imperador a solução definitiva. Era o fim de suas pretensões.

Voltou às montanhas e perguntou ao criador de gatos se não tinha por acaso um caçador perfeito. De nada adiantava caçar dia e noite por semanas a fio, se depois o gato especial ia dormir para refazer as forças. Queria um caçador que caçasse sempre e para sempre. Um gato assim, respondeu o criador, não apenas não tem preço, como só pode existir um. É o segredo de todos os criadores. Mesmo para o Imperador Amarelo não posse vender, só posso, no máximo, emprestar e por alguns dias apenas. – Mas de que vale um empréstimo de uns dias? – perguntou o príncipe. – A perfeição sempre tem valia, respondeu o velho criador de gatos.

O príncipe olhou para o gato caçador perfeito. Estava deitado em cima do forno e dormia. O criador o levantou e o pôs nos braços do príncipe. O gato não acordou. O príncipe o sacudiu, puxou-lhe os bigodes, apertou-lhe a cauda e o caçador perfeito continuava dormindo, sem nem se mexer. Embora descrente, o príncipe decidiu fazer ainda uma última tentativa e levar o gato por alguns dias. Durante os solavancos da volta, o gato continuava impassível dormindo o sono profundo dos perfeitos. Tão logo chegou, o príncipe deixou o gato num canto da despensa e foi cuidar de fazer as malas.

 Os ratos se recolheram para observar qual seria a técnica e o método do novo caçador. Passou o dia e o gato dormia. Passou a noite e o gato dormia. Veio a manhã e o gato dormia. Os ratos começaram a tremer! Não tem método, não tem técnica, não tem ferramenta, não tem meio: o caçador perfeito! Nele tudo é o silêncio de uma realização perfeita. E contra o silêncio da fala não há o que fazer. Junto com o príncipe, os ratos abandonaram a região de Shung e deixaram o império da dinastia Chou.

(Fonte: CARNEIRO LEÃO, Emanuel. Aprendendo a pensar. vol. II, 2.ed. Vozes: Petrópolis, Rio de Janeiro, 2000. pp.30-32.)

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