A
mentalidade dos promotores americanos está mudando, progressivamente. O
esforço sistemático para condenar a qualquer custo todos os réus que
caiam na malha da Promotoria e obter a pena mais alta possível para eles
vem sendo substituído, aos poucos, por um esforço coordenado para
buscar a verdade e promover a justiça, apenas. A coordenação desse
esforço é feita por um órgão de controle interno e externo, criado em
diversas unidades do Ministério Público do país. Em algumas jurisdições
são chamados de Programa de Integridade da Condenação. Em outras, de
Unidade de Integridade da Condenação.
Há
razões nobres e, de certa forma, vergonhosas, para isso. As vergonhosas
dispararam o alarme. Por exemplo, um estudo recente do Centro para
Integridade Pública, chamado “Erro Nocivo: Investigando Promotores
Locais nos EUA”, examinou processos criminais em 2.341 jurisdições e
encontrou inúmeros casos de má conduta de promotores, que quebraram ou
manipularam as regras para obter condenações.
O
estudo relatou mais de 2 mil casos em que juízes de 1º Grau ou de
tribunais de recursos extinguiram a ação, anularam condenações ou
reduziram sentenças, citando como causa a má conduta de promotores.
A
Promotoria do Distrito de Manhattan, em Nova York, que lidera o
movimento pelo porte de seu Programa de Integridade da Condenação,
declara em seu website que o objetivo é “buscar justiça em todos os
casos que chegam à Promotoria e rever erros passados”. E explica a
razão: “Através dos anos e em todo o país, homens e mulheres inocentes
têm sido condenados por crimes que não cometeram. Isso não apenas rouba a
liberdade da pessoa inocente, como deixa nas ruas um criminoso, livre
para cometer mais crimes”.
O
website da Unidade de Integridade da Condenação do Condado de Cuyahoga,
em Ohio, declara na abertura do texto: “Todos os promotores querem
condenar os culpados, não os inocentes. Porém, embora os processos de
julgamento e de recursos contenham salvaguardas para todos os acusados
de crime, reconhecemos que o sistema de Justiça criminal é uma
instituição humana e, como tal, não pode ser perfeito”. Por isso, a
Promotoria local criou seu próprio sistema de controle interno e
externo.
O
programa de Manhattan é liderado pelo promotor Cyrus Vance, um
ex-advogado criminalista — um caso raro de advogado criminalista que se
converte para a Promotoria, porque o inverso é bastante comum. Alguns
promotores que não gostam do programa, dizem que Vince é um advogado
criminalista que se travestiu de promotor para criar despesas
desnecessárias para o Ministério Público.
Porém,
a ex-promotora, ex-juíza e professora da Escola de Direito da
Universidade de Washington, em Seattle, Maureen Howard, saiu em sua
defesa. Ela declarou ao Huffington Post que “se foi necessário um
advogado criminalista se tornar promotor para resgatar os ideais do
Ministério Público, ele é muito bem-vindo — e já chegou tarde”.
Para
a ex-promotora, Vince e a Promotoria de Manhattan entendem que a função
dos membros do Ministério Público é a de promotor de Justiça, não
promotor de condenações. Em outras palavras, ela disse, eles estão
recuperando o que as diretrizes éticas da classe professam: um membro do
Ministério Público é um “ministro da Justiça” — uma espécie de
sacerdócio.
Segundo
Maureen Howard, os papéis do promotor e do advogado de defesa não são
simétricos. A obrigação do advogado de defesa é o de defender seu
cliente contra possíveis abusos do Estado, durante o curso do processo. A
do promotor é bem diferente.
As
proteções constitucionais garantidas aos réus, tais como privilégio
contra a autoincriminação, a presunção de inocência, o rigoroso padrão
da culpabilidade além da dúvida razoável, a exigência de veredicto
unânime do júri (no sistema dos EUA, obviamente), existem para
contrabalançar o poder muito maior do Estado sobre o indivíduo, ela diz.
O
promotor também tem o dever de buscar provas que podem, potencialmente,
prejudicar o seu caso, bem como o de exibir provas exculpatórias para a
defesa, voluntariamente e sem pedido, enquanto isso não é um dever da
defesa, diz a ex-promotora.
A
revelação de prova exculpatória pela acusação à defesa é uma
decorrência do sistema americano de “discovery”, um processo em que as
duas partes “trocam figurinhas” — isto é, revelam os fatos, as provas,
os testemunhos e qualquer outro elemento que possa esclarecer o caso,
antes do julgamento. O resultado, muitas vezes, é que não há julgamento,
porque a acusação e a defesa fazem um acordo.
A
descoberta, a qualquer momento, de que a Promotoria escondeu provas
exculpatórias que mudariam o rumo do julgamento enfurece os juízes,
muitas vezes, que reprimem duramente o promotor e o fazem cair em desgraça
até entre os colegas.
Condenações indevidas
Criminal District Court Judge, Lynda Van Davis |
Na
última semana, a juíza Lynda Van Davis, de Nova Orleans, anulou a
condenação à pena de morte de Michael Anderson, de 23 anos, pelo
assassinato de cinco pessoas, depois da descoberta de que o promotor
escondeu duas peças essenciais de prova.
Essa
anulação de julgamento eleva as preocupações da comunidade jurídica do
país com o sistema judicial de Nova Orleans, diz Maureen Howard. Ela
conta que um estudo recente do advogado Bidish Sarma, da Universidade
Southern de Louisiana, revelou que mais condenados à morte na cidade
foram libertados do que de executados, devido a comprovações posteriores
de condenações erradas.
Mas
os promotores não são os únicos responsáveis por “condenações erradas”. O
Projeto Inocência, que libertou recentemente 317 presos inocentes,
alguns deles no corredor da morte, atribui as condenações erradas a,
principalmente, seis causas: identificação errada do réu por
testemunhas, provas forenses ruins ou mal elaboradas, confissões falsas
conseguidas pela Polícia, má conduta de promotores, má-fé de informantes
ou denunciantes e serviços ineptos de alguns advogados.
Estudos
realizados indicam que as formas mais comuns de má conduta de policiais
são os seguintes: sugerir os fatos do crime a um inocente durante
longos interrogatórios para que façam uma confissão coerente, coagir
confissões falsas, mentir ou iludir os jurados sobre suas observações,
deixar de apresentar aos promotores provas exculpatórias, oferecer
incentivos para garantir provas não confiáveis de informantes.
As
formas mais comuns de má conduta de promotores, segundo esses estudos,
são: esconder provas exculpatórias da defesa, manipular, manejar ou
destruir provas deliberadamente, permitir a participação de testemunhas
sabidamente não confiáveis no julgamento, pressionar testemunhas da
defesa a não testemunhar, usar provas forenses fraudulentas, apresentar
argumentos enganosos que elevam o valor probatório de testemunhas.
Isso
tudo é uma coisa que deve ficar no passado, como declaram as
jurisdições da Promotoria americana que criaram as unidades em defesa da
integridade da condenação, que estão surgindo uma após a outra em todo o
país. Essas unidades têm duas frentes de trabalho principais: uma,
impedir que esses problemas voltem a ocorrer daqui para a frente,
criando mecanismos de controle para assegurar a correção; outra, aceitar
requerimentos de inocentes presos, de seus familiares e advogados, para
que voltem a investigar o caso e possam corrigir erros em condenações
passadas.
Se
a unidade comprovar uma condenação errada, a própria Promotoria tomará a
iniciativa de pedir ao juiz a anulação da sentença condenatória.
Após reexame de caso, a Corte de Dallas oficialmente declarou Cornelius Dupree Jr. inocente, depois de 30 anos na prisão |
Os
prerrequisitos para uma unidade reexaminar o caso variam um pouco de
uma jurisdição para outra, mas incluem, em geral: 1) a condenação deve
ter ocorrido dentro da jurisdição; 2) o condenado deve estar vivo; 3) o
pedido deve se referir a um caso verdadeiro de inocência – pedidos
frívolos e casos de erro processual apenas são descartados; 4) devem
existir provas novas e verossímeis da inocência e a promotoria deve ser
informada sobre como pode acessar essas provas; 5) o condenado deve
renunciar a suas salvaguardas e privilégios processuais, concordar em
cooperar com a unidade e em fornecer informações completas à unidade em
todas as inquirições – essa última leva alguns advogados a torcer o
nariz.
O
modelo criado pela Promotoria de Manhattan, seguido pela maioria dos
demais programas de outras jurisdições, tem um Comitê da Integridade da
Condenação, o chefe do Comitê e um Painel Consultor de Política de
Integridade da Condenação.
O
comitê é um órgão interno, formado por dez membros graduados da
Promotoria, com a atribuição de rever as práticas e políticas relativas
ao treinamento dos promotores (novos e veteranos), avaliação de casos,
investigação e obrigações de divulgação [de provas e fatos], com foco em
possíveis erros, tais como identificações falsas por testemunhas e
confissões falsas. O chefe coordena o trabalho do comitê e lidera todas
as investigações de casos que apresentam uma reclamação significativa de
condenação errada.
O
painel consultor é um órgão externo, formado por especialistas
respeitados em justiça criminal, incluindo juristas e ex-promotores, com
a atribuição de assessorar o comitê e orientá-lo sobre melhores
práticas e questões em desenvolvimento na área de condenações erradas.
Para
encontrar sites desses programas na Internet, basta pesquisar nos
mecanismos de busca as palavras “Conviction Integrity Program” ou
“Conviction Integrity Unit”.