Graciliano Ramos (1892-1953) era um homem de poucas intimidades. Fechado, sisudo e desconfiado, o autor de
Vidas Secas concedeu poucas, raras entrevistas sobre sua
vida
e sua obra. Dizia não ter nada de interessante a dizer. E reservava
suas impressões quase sempre amargas sobre o mundo em artigos e livros
como
Infância e
Memórias do Cárcere, obras de referência na prosa brasileira.
Graciliano e o filho Ricardo Ramos. Foto:Acervo Graciliano Ramos/ Reprodução do livro “O velho Graça”
“Homem de poucas palavras, Graciliano é um problema para o repórter
que se propõe a biografá-lo. O autor de São Bernardo nada tem de
expansivo. Ainda que amabilíssimo, escolhe-se todo diante do jornalista.
Tem medo, penso eu, de parecer herói a fornecer dados para a
posteridade”, escreveu o jornalista Francisco de Assis Barbosa em seu
livro Achados ao Vento. Barbosa foi um dos poucos repórteres a
quebrar a resistência de Graciliano, numa entrevista arrancada em 1942
em que o autor, então com 50 anos, aceitou falar sobre o processo de
criação literária.
Essa resistência seria quebrada outras (raras) vezes graças na base
da teimosia e da insistência por nomes como Joel Silveira, Newton
Rodrigues e Homero Senna. Analisadas hoje, as reportagens se
transformaram em documentos históricos que jogam luz sobre a
personalidade de uma das mais refratárias figuras da literatura
nacional. A importância desses
encontros levou o jornalista e escritor Dênis de Moraes a introduzir essas raras entrevistas na nova edição de
O Velho Graça (Boitempo
Editorial), a principal biografia sobre o autor que é relançada na
esteira das comemorações pelos 120 anos do nascimento
de Graciliano Ramos.
Nessas entrevistas Graciliano analisa os chamados romances sociais, o
papel do escritor na sociedade, a relação entre arte e ideologia, fala
sobre sua vida no Nordeste e sobre a sua vida política. E se queixava da
repercussão de seus livros, como fez a Newton Rodrigues em 1944: “Acho
que as massas, as camadas populares, não foram atingidas e que nossos
escritores só alcançaram o pequeno-burguês. Por quê? Porque a
massa
é muito nebulosa, é difícil interpretá-la, saber do que ela gosta. Os
escritores, se não são classe, estão em uma classe que não é,
evidentemente, a operária”.
Mal sabia o autor que, 120 anos após seu nascimento, se tornaria
leitura obrigatória em qualquer escola de qualquer cidade do País.
Para o biógrafo, a introdução dessas entrevistas no texto original,
publicado pela primeira vez em 1992, ajudou a clarear ainda um lado
pouco conhecido do escritor, menos sisudo e mais amigável, como é
descrito por familiares e amigos que conviveram com ele até o fim da
vida, quando trabalhava em três turnos para sobreviver: de manhã,
escrevendo livros e artigos, à tarde, como inspetor federal de ensino no
Rio de Janeiro, e, à noite, como redator do jornal Correio da Manhã.
“No fim da vida, Graciliano havia se tornado uma referência
importante para os jovens jornalistas. Ele conversava muito com os
jovens, deixava suas impressões sobre os textos, e isso produzia um
encantamento naquela geração. Esse lado do Graciliano aparecia ainda de
forma tímida na descrição de um homem quase sempre avesso e
desconfiado”.
Quebrar esta imagem de sertanejo retraído e avançar nas memórias
legadas pelo autor, afirma Dênis de Moraes, foi um duplo desafio. Parte
desse resgate aconteceu graças às entrevistas feita à época com amigos,
filhos e a viúva, dona Heloísa, a quem a quarta edição é dedicada. Hoje a
maioria das
fontes
está morta. E o relançamento da obra, diz o autor, ajuda a tirar o
livro do confinamento, já que estava esgotado havia anos (a última
edição é de 2003) e era encontrado praticamente apenas em bibliotecas.
O escitor e jornalista Dênis de Moraes, autor de “O Velho Graça”, a biografia de Graciliano Ramos. Foto: Divulgação
É a chance de os novos e futuros leitores conhecerem mais de perto
uma história tão grandiosa quanto a própria obra. Graciliano, hoje tema
de celebrações pelo País – inclusive da próxima Flip, a Feira Literária
de Paraty, quando são lembrados os 60 anos de sua morte – deixou não
apenas livros de referência, mas um histórico de conduta e coerência
admirável para os padrões atuais. No livro, por exemplo, sabe-se que,
enquanto os escritores da primeira geração modernista colhiam os louros
da Semana de 1922, Graciliano ajudava os moradores de sua cidade,
Palmeira dos Índios, a combater o temido bando de Lampião. Como figura
pública, Graciliano legaria também lições que não cabiam nos livros,
como quando foi eleito prefeito (após o assassinato do antecessor),
enquadrou os coronéis locais, deu fim a regalias e promoveu um mutirão
para limpar as ruas das cidades, tomadas por animais criados ao ar
livre. As medidas atingiram até mesmo seu pai, Sebastião, o temido
negociante descrito em Infância que o açoitara num dia em que
não encontrara um cinturão – e que, ao pedir clemência, ouviu: “O senhor
me desculpe, mas prefeito não tem pai”.
Os relatórios sobre sua gestão na prefeitura, sempre escritos em
linguagem coloquial e tomados por ironias, eram objeto de admiração por
Alagoas, ressoaram no Rio de Janeiro e chegaram às mãos de um certo
Augusto Frederico Schmidt, famoso poeta e editor, que se apresentara em
carta ao então prefeito perguntando se o autor daqueles relatórios não
teria na gaveta algum romance que valesse ser publicado. Graciliano
tinha: Caetés, livro que seria renegado pelo autor até o fim de
sua vida. “Esta desgraça das Alagoas”, era como se referia, nas
dedicatórias, ao romance de estreia.
Para Dênis de Moraes, este lado do escritor, que gostava de causar
choque no interlocutor, era apenas “tipo”. Um tipo capaz de dizer que
Machado de Assis era apenas um autor menor “metido a inglês” e, na frase
seguinte, se render ao autor de Dom Casmurro. Ou de dizer em
carta a um amigo, sem meias palavras, que os filhos andavam bem, o mais
velho até já lia manchetes de jornais, mas que o mais novo era de uma
“ignorância assustadora”. Ou quando, já consagrado, repreendia o filho
Ricardo simplesmente por pinçar num texto a palavra “algo”, “um crime
confesso de imprecisão”, nos termos do autor.
Este humor amargo acompanharia Graciliano até o fim da vida,
inclusive nas passagens mais dolorosas, quando nos anos 1930 é vítima de
uma verdadeira caça aos comunistas promovida por Getúlio Vergas – isso
antes mesmo do Estado Novo e muito antes de o autor entrar,
oficialmente, para o Partido Comunista Brasileiro. Os motivos da
traumática prisão, com passagem pela desumana Ilha Grande, no Rio de
Janeiro, são até hoje um dos mistérios a envolver a biografia do autor.
Na nova edição, Dênis de Moraes introduziu duas referências a Getúlio
Vargas que ajudam a entender o período histórico ainda mal digerido. Uma
delas é uma carta ao ditador escrita em 1938 por Graciliano e jamais
entregue ao seu algoz. Nela, ele faz uma espécie de acerto de contas:
“Ignoro as razões por que me tornei indesejável na minha terra. Acho,
porém, que lá cometi um erro: encontrei 20 mil crianças nas escolas e em
três anos coloquei nelas 50 mil, o que produziu celeuma. Os professores
ficaram descontentes, creio eu. E o pior é que se matricularam nos
grupos da capital muitos negrinhos. Não sei bem se pratiquei outras
iniquidades. É possível.”
Era uma referência ao curto período em que atuou como Diretor de
Instrução Pública em Alagoas, espécie de Secretaria da Educação na
época. O Graciliano homem público descrito por Moraes é um sujeito
combativo, inconformado com a situação encontrada em seu estado, como
quando visita uma escola em Maceió e descobre que lá não havia alunos.
Os motivos: não era possível frequentar as aulas com fome, sem uniforme
nem sapatos. “Ele manda comprar a merenda, vai na loja de tecido, sem
dinheiro e sem orçamento, compra os metros do tecido, corta (porque ele
trabalhava com comércio e sabia como cortar), e manda as costureiras
fazer o uniforme para os alunos. E depois vai para a sapataria e
encomenda os pares de sapato, manda entregar ao colégio e o colégio
reabre”, relembra Moraes.
O outro acerto de contas é o encontro entre Graciliano e Getúlio
Vargas descrito ao biógrafo pelo jornalista e escritor Antonio Carlos
Vilaça, introduzido agora na nova edição. Segundo o relato, Graciliano
se encontrou com o ditador durante um passeio noturno pela praia do
Flamengo. Diferentemente de Fabiano, o sertanejo de Vidas Secas
que reencontra o Soldado Amarelo e perde a chance de se vingar por ter
sido, pouco antes, trapaceado no jogo, o escritor é cumprimentado pelo
presidente e dá, ao seu jeito, a sua resposta. Graciliano se nega a
devolver o cumprimento. Para Dênis de Moraes, a passagem ajuda a quebra
uma certa animosidade sobre o autor que, ao fim da vida, era criticado
por ter trabalhado como inspetor federal do governo Vargas – cargo para o
qual foi indicado pelo amigo Carlos Drummond de Andrade e que exerceu
com dignidade até o fim da vida, segundo o autor – e por ter colaborado
com a revista Cultura Política, produzida pelo Estado Novo, mesmo após a
sua prisão. “Se ele fosse um homem de certezas fúteis, ele teria se
aproveitado do encontro pra se aproximar de Getúlio. Mas passa
direto. Esse episódio, como atesta Villaça, é prova da dignidade e
coerência dele”, diz Moraes.
Coerência que seria observada também em outra faceta de Graciliano,
quando ele passa a militar no Partido Comunista. O livro descreve
Graciliano como um admirador contido, obediente mas crítico da
experiência soviética (ele morreria antes de conhecer o relatório
Kruschev, quando são descritos os crimes da ditadura Stálin). No
partido, Graciliano sofreria pressões para fazer da literatura um
panfleto, algo que sempre recusou. E causou constrangimento durante uma
viagem com correligionários à União Soviética, quando não mediu palavras
para contestar a ausência de Tolstói na galeria dos grandes escritores
russos.
Observada hoje, essa coerência, somada à postura combativa, serve
como guia a quem quiser atravessar um período histórico sem abrir mão
das convicções, seja como homem público, como militante, como
intelectual engajado ou pretenso literato. Nada disso seria necessário
para que o Graciliano autor fosse alçado à prateleira dos grandes nomes
nacionais. Sua obra bastaria. Mas não para ele. Porque, para escrever
era preciso fazer como as lavadeiras de Alagoas, “que começam com uma
primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho,
torcer o pano, molham-no novamente, voltam a torcer, colocam o anil,
ensaboam e torcem uma, duas vezes”. “Depois enxáguam, dão mais uma
molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na
pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até pingar não
pingar do pano uma só gota. (…) Pois quem se mete a escrever devia fazer
a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar. A palavra foi
feita para dizer”. Para Graciliano, “dizer” ou viver não eram escolhas,
mas partes de uma mesma ação: a ação transformadora de seu tempo. Num
país em que pensar é quase uma provocação, nada poderia ser mais
subversivo.
Serviço:
O velho Graça - uma biografia de Graciliano Ramos
Autor: Dênis de Moraes
Orelha: Alfredo Bosi
Quarta capa: Wander Melo Miranda
Páginas: 360
ISBN: 978-85-7559-292-2
Preço: R$ 52,00
Fonte: Carta Capital