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sexta-feira, 27 de junho de 2014

Zumbi em três versões

Historiadores questionam a biografia do líder negro e mostram como o seu perfil mudou em quatro séculos

Ivan Claudio
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Zumbi, o líder negro que no século XVII liderou a maior resistência ao regime escravocrata à frente do Quilombo dos Palmares, em Alagoas, é um dos mitos mais controversos da história brasileira. Da política às artes, sua atuação guerreira inspirou de grupos militantes como o VAR-Palmares a músicos jovens a exemplo de Chico Science, que batizou sua banda de Nação Zumbi. Como herói da cultura afro-brasileira cuja data de morte foi coroada como Dia da Consciência Negra, ele é saudado em músicas, sambas-enredo, peças e filmes. Objeto de uma caudalosa bibliografia iniciada ainda em vida com os relatos oficiais dos governos de Portugal e Holanda, o perfil dessa figura emblemática é agora esquadrinhado pelos historiadores Jean Marcel Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira no livro “Três Vezes Zumbi” (Três Estrelas), para quem o “Spartacus negro” não tem uma face, mas várias.

Segundo os autores, podem ser identificados três perfis diferentes para o líder quilombola: o Zumbi dos Colonos (séculos XVII e XVIII), que colocava em xeque o projeto colonizador; o Zumbi do Brasil Independente (século XIX), pintado como grande guerreiro para enaltecer o agente civilizador que o combatia; e o Zumbi dos Oprimidos (século XX em diante), sobre o qual seriam associadas aspirações emancipadoras que desaguariam no movimento das minorias. “O livro é uma espécie de atlas, uma história da história de Zumbi, dos discursos que se fizeram em torno dele ao longo dos séculos”, afirma França. No desenvolvimento da ideia de Zumbi como uma construção ideológica, os autores se defrontaram com dados conflitantes. A multiplicidade de peças que não se encaixam no quebra-cabeça começa com o seu próprio nome. Existem registros de que ele teria também a alcunha de Zambi, Zombi, Zombé e Zumbé – a grafia Zumbi teria sido estabelecida em meados do século XIX. Mais: Zumbi, cujo significado é diabo e Deus das guerras, seria um título na hierarquia do quilombo, e não um nome, hipótese confir­mada nos documentos da época.

Outra controvérsia diz respeito à sua morte. Até o século XVIII, a versão mais conhecida era a de que ele teria se matado, pulando de um penhasco. A partir daí, ficou aceito que Zumbi teria sido morto por um ajudante. “Cartas falam da traição de um mulato, mas é sabido que na época esse termo era malvisto, se preferia a palavra pardo”, diz França, sugerindo que o assassino talvez não pertencesse a Palmares. Os maiores absurdos começaram a pipocar no século passado, quando o chefe dos escravos foi apropriado pelos marxistas, que o tornaram um revolucionário e associaram a sua atuação à luta de classes. O relato mais fantasioso vem do historiador gaúcho Décio de Freitas, que praticamente inventou uma infância romantizada para Zumbi: ele teria sido adotado por um padre, vivido como coroinha e retornado 15 anos mais tarde a Palmares movido por ideais libertários. Freitas teria sacado essas informações de correspondências do missio­nário. “São cartas que nunca foram vistas e, certamente não existem”, afirma França.
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Leia um trecho do livro:

Padre Antônio Vieira, ao contrário, não via com bons olhos qualquer medida que, como a proposta por Brito Freire – que certamente não foi o único –, visasse reintegrar os pretos amotinados de Palmares. Numa carta escrita em 1691 ao desembargador do Paço, Roque Monteiro Paim, o jesuíta explica que os habitantes do quilombo, além de não confiarem nos padres, eram rebelados e cativos, perseverando “em pecado contínuo e atual”, o que os impossibilitava de “ser absoltos, de receber a graça de Deus e de se restituírem ao serviço e obediência de seus senhores”. A única maneira de trazê-los de volta à sociedade, prossegue Vieira, seria restaurar-lhes a liberdade, medida totalmente inviável, já que traria “a total destruição do Brasil”, pois, quando os demais pretos soubessem que os palmarinos tinham, por meios não legais, se livrado do cativeiro, “cada cidade, cada vila, cada lugar, cada engenho, seriam logo outros tantos Palmares”.
 
Malgrado, no entanto, essas e outras tantas menções de holandeses e portugueses ao quilombo e aos problemas por ele suscitados, não há registros escritos descrevendo sua suposta destruição definitiva, no início do século XVIII, pelo bandeirante Domingos Jorge Velho. Todavia, cedo, muito cedo, após a sua derrocada final, o quilombo voltou a figurar nos escritos da época, evidenciando que a insubordinação, evasão e reunião de escravos eram preocupações permanentes da sociedade colonial brasileira – como haviam sido para os invasores holandeses de outrora –, sobretudo de seus poucos homens de letras, homens em geral livres, culturalmente brancos, ricos e preocupados com a insubordinação da escravaria.

Fonte: IstoÉ Independente - Cultura

domingo, 2 de junho de 2013

O mano Malcolm

Ladrão, traficante, jogador e presidiário. Biografia de Malcolm X revela que ele foi um marginal antes de se tornar símbolo da luta pela igualdade racial nos EUA

Michel Alecrim
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CAPA DO LIVRO 
Recém- lançado: um rebelde sem consciência política que se tornou ídolo dos rappers atuais
Ao nascer nos EUA, em 1925, deram-lhe o nome de Malcolm Little. Na escola, ainda quando criança, veio o apelido de Harpia. Adolescente, virou delinquente, garoto de programa homossexual e ganhou aí o codinome de Detroit Red – o que lustrou sua vaidade, já que possuía mesmo os cabelos naturalmente avermelhados. Sim, ele era um moço bonito, e meio que galã da marginalidade. Transformou-se em dançarino de boate e passou a ser chamado de Jack Carlton. A cadeia era o caminho previsível nessa jornada, e atrás das grades ele se fez fera em seu temperamento agressivo. Conquistou o respeito da malandragem como o incendiário Satã – o mínimo que fazia era blasfemar noite e dia. De volta à liberdade, dando-se conta de que a discriminação racial e social que sofria por ser negro não era uma questão pessoal “do mundo inteiro” contra ele, e sim uma política do Estado americano, o nosso personagem foi se tornando o famoso Malcolm X, um dos principais líderes na luta pelos direitos civis nos EUA, embora nunca o seu ideário viesse a ganhar a dimensão da consciência política. Foi assassinado em 1965, aos 40 anos, e chamava-se então Malik El-Shabazz em decorrência de sua conversão ao islamismo. Todas essas fases são retratadas pelo historiador americano Manning Marable no livro “Malcolm X – Uma Vida de Reinvenções” (Companhia das Letras), obra que lhe valeu o prêmio Pulitzer de 2012.
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Faces diversas 
Fotos de Malcolm X feitas pela polícia em sua 
juventude, quando ele desafiava as leis como marginal
Malcolm cresceu numa América do Norte incendiada pelos conflitos raciais, contava quatro anos quando a sua casa foi explodida pela organização de ultradireita Ku Klux Klan e, dois anos depois, seu pai morreu num misterioso acidente de bonde. Passou fome, a sua mãe foi internada num manicômio e “não demorou muito para que Malcolm começasse a roubar alimento”. Conseguiu emprego na companhia ferroviária da linha Boston – Nova York e cedo lhe mostraram que ganharia mais se traficasse maconha. Nenhum pobre enjeitado nasce líder de seus iguais, e por isso é comum espelhar-se em quem manda. Também Malcolm nessa época negou a raça: ele alisou o cabelo. Completara 15 anos quando se bandeou para a região barra-pesada do Harlem, em Nova York, já então uma referência na luta dos negros. “Na condição de Detroit Red, tomava parte em prostituição, venda de maconha, roubos ocasionais”, escreve Marable. Acabou preso em 1944 por porte ilegal de arma e cumpriu pena de oito anos na penitenciária de Charlestown.
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O rebelde Malcolm jamais foi um “rebelde primitivo” na acepção do historiador Eric Hobsbawm, para quem o gene da consciência política pode estar no comportamento marginal. É certo, porém, que foi na prisão que ele leu biografias de inúmeros líderes, entre elas a de Mahatma Gandhi, e sua compreensão das questões sociais se ampliou. Ao sair do cárcere converteu-se ao islamismo, e o sobrenome herdado dos ex-proprietários brancos escravocratas não mais lhe cabia – virou X, identidade que muitos adotavam enquanto não descobriam suas origens. Malcolm se mostrou nada radical no campo religioso, já não era o mano a resolver à bala as discordâncias. Propunha-se a ouvir e a falar. Aos seus comícios compareciam milhares de pessoas, inclusive de outras religiões, e o líder conclamava os negros à revolução sem sangue. Mais como Malcolm X, muito menos como marginal, ele segue no mundo de hoje sendo um líder, por exemplo, para os jovens rappers – segundo Marable, “um representante da esperança e da dignidade humanas”.
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 Fotos: Time Life Pictures/Getty Images
Fonte: Revista Istoé 5 Jun/2013 - Ano 37 - N.º 2272

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Viver para contar. E combater.

Graciliano Ramos (1892-1953) era um homem de poucas intimidades. Fechado, sisudo e desconfiado, o autor de Vidas Secas concedeu poucas, raras entrevistas sobre sua vida e sua obra. Dizia não ter nada de interessante a dizer. E reservava suas impressões quase sempre amargas sobre o mundo em artigos e livros como Infância e Memórias do Cárcere, obras de referência na prosa brasileira.
Graciliano e o filho Ricardo Ramos. Foto:Acervo Graciliano Ramos/ Reprodução do livro “O velho Graça”

“Homem de poucas palavras, Graciliano é um problema para o repórter que se propõe a biografá-lo. O autor de São Bernardo nada tem de expansivo. Ainda que amabilíssimo, escolhe-se todo diante do jornalista. Tem medo, penso eu, de parecer herói a fornecer dados para a posteridade”, escreveu o jornalista Francisco de Assis Barbosa em seu livro Achados ao Vento. Barbosa foi um dos poucos repórteres a quebrar a resistência de Graciliano, numa entrevista arrancada em 1942 em que o autor, então com 50 anos, aceitou falar sobre o processo de criação literária.
Essa resistência seria quebrada outras (raras) vezes graças na base da teimosia e da insistência por nomes como Joel Silveira, Newton Rodrigues e Homero Senna. Analisadas hoje, as reportagens se transformaram em documentos históricos que jogam luz sobre a personalidade de uma das mais refratárias figuras da literatura nacional. A importância desses encontros levou o jornalista e escritor Dênis de Moraes a introduzir essas raras entrevistas na nova edição de O Velho Graça (Boitempo Editorial), a principal biografia sobre o autor que é relançada na esteira das comemorações pelos 120 anos do nascimento de Graciliano Ramos.


Nessas entrevistas Graciliano analisa os chamados romances sociais, o papel do escritor na sociedade, a relação entre arte e ideologia, fala sobre sua vida no Nordeste e sobre a sua vida política. E se queixava da repercussão de seus livros, como fez a Newton Rodrigues em 1944: “Acho que as massas, as camadas populares, não foram atingidas e que nossos escritores só alcançaram o pequeno-burguês. Por quê? Porque a massa é muito nebulosa, é difícil interpretá-la, saber do que ela gosta. Os escritores, se não são classe, estão em uma classe que não é, evidentemente, a operária”.
Mal sabia o autor que, 120 anos após seu nascimento, se tornaria leitura obrigatória em qualquer escola de qualquer cidade do País.

Para o biógrafo, a introdução dessas entrevistas no texto original, publicado pela primeira vez em 1992, ajudou a clarear ainda um lado pouco conhecido do escritor, menos sisudo e mais amigável, como é descrito por familiares e amigos que conviveram com ele até o fim da vida, quando trabalhava em três turnos para sobreviver: de manhã, escrevendo livros e artigos, à tarde, como inspetor federal de ensino no Rio de Janeiro, e, à noite, como redator do jornal Correio da Manhã.
“No fim da vida, Graciliano havia se tornado uma referência importante para os jovens jornalistas. Ele conversava muito com os jovens, deixava suas impressões sobre os textos, e isso produzia um encantamento naquela geração. Esse lado do Graciliano aparecia ainda de forma tímida na descrição de um homem quase sempre avesso e desconfiado”.
Quebrar esta imagem de sertanejo retraído e avançar nas memórias legadas pelo autor, afirma Dênis de Moraes, foi um duplo desafio. Parte desse resgate aconteceu graças às entrevistas feita à época com amigos, filhos e a viúva, dona Heloísa, a quem a quarta edição é dedicada. Hoje a maioria das fontes está morta. E o relançamento da obra, diz o autor, ajuda a tirar o livro do confinamento, já que estava esgotado havia anos (a última edição é de 2003) e era encontrado praticamente apenas em bibliotecas.
O escitor e jornalista Dênis de Moraes, autor de “O Velho Graça”, a biografia de Graciliano Ramos. Foto: Divulgação

É a chance de os novos e futuros leitores conhecerem mais de perto uma história tão grandiosa quanto a própria obra. Graciliano, hoje tema de celebrações pelo País – inclusive da próxima Flip, a Feira Literária de Paraty, quando são lembrados os 60 anos de sua morte – deixou não apenas livros de referência, mas um histórico de conduta e coerência admirável para os padrões atuais. No livro, por exemplo, sabe-se que, enquanto os escritores da primeira geração modernista colhiam os louros da Semana de 1922, Graciliano ajudava os moradores de sua cidade, Palmeira dos Índios, a combater o temido bando de Lampião. Como figura pública, Graciliano legaria também lições que não cabiam nos livros, como quando foi eleito prefeito (após o assassinato do antecessor), enquadrou os coronéis locais, deu fim a regalias e promoveu um mutirão para limpar as ruas das cidades, tomadas por animais criados ao ar livre. As medidas atingiram até mesmo seu pai, Sebastião, o temido negociante descrito em Infância que o açoitara num dia em que não encontrara um cinturão – e que, ao pedir clemência, ouviu: “O senhor me desculpe, mas prefeito não tem pai”.
Os relatórios sobre sua gestão na prefeitura, sempre escritos em linguagem coloquial e tomados por ironias, eram objeto de admiração por Alagoas, ressoaram no Rio de Janeiro e chegaram às mãos de um certo Augusto Frederico Schmidt, famoso poeta e editor, que se apresentara em carta ao então prefeito perguntando se o autor daqueles relatórios não teria na gaveta algum romance que valesse ser publicado. Graciliano tinha: Caetés, livro que seria renegado pelo autor até o fim de sua vida. “Esta desgraça das Alagoas”, era como se referia, nas dedicatórias, ao romance de estreia.
Para Dênis de Moraes, este lado do escritor, que gostava de causar choque no interlocutor, era apenas “tipo”. Um tipo capaz de dizer que Machado de Assis era apenas um autor menor “metido a inglês” e, na frase seguinte, se render ao autor de Dom Casmurro. Ou de dizer em carta a um amigo, sem meias palavras, que os filhos andavam bem, o mais velho até já lia manchetes de jornais, mas que o mais novo era de uma “ignorância assustadora”. Ou quando, já consagrado, repreendia o filho Ricardo simplesmente por pinçar num texto a palavra “algo”, “um crime confesso de imprecisão”, nos termos do autor.
Este humor amargo acompanharia Graciliano até o fim da vida, inclusive nas passagens mais dolorosas, quando nos anos 1930 é vítima de uma verdadeira caça aos comunistas promovida por Getúlio Vergas – isso antes mesmo do Estado Novo e muito antes de o autor entrar, oficialmente, para o Partido Comunista Brasileiro. Os motivos da traumática prisão, com passagem pela desumana Ilha Grande, no Rio de Janeiro, são até hoje um dos mistérios a envolver a biografia do autor. Na nova edição, Dênis de Moraes introduziu duas referências a Getúlio Vargas que ajudam a entender o período histórico ainda mal digerido. Uma delas é uma carta ao ditador escrita em 1938 por Graciliano e jamais entregue ao seu algoz. Nela, ele faz uma espécie de acerto de contas: “Ignoro as razões por que me tornei indesejável na minha terra. Acho, porém, que lá cometi um erro: encontrei 20 mil crianças nas escolas e em três anos coloquei nelas 50 mil, o que produziu celeuma. Os professores ficaram descontentes, creio eu. E o pior é que se matricularam nos grupos da capital muitos negrinhos. Não sei bem se pratiquei outras iniquidades. É possível.”
Era uma referência ao curto período em que atuou como Diretor de Instrução Pública em Alagoas, espécie de Secretaria da Educação na época. O Graciliano homem público descrito por Moraes é um sujeito combativo, inconformado com a situação encontrada em seu estado, como quando visita uma escola em Maceió e descobre que lá não havia alunos. Os motivos: não era possível frequentar as aulas com fome, sem uniforme nem sapatos. “Ele manda comprar a merenda, vai na loja de tecido, sem dinheiro e sem orçamento, compra os metros do tecido, corta (porque ele trabalhava com comércio e sabia como cortar), e manda as costureiras fazer o uniforme para os alunos. E depois vai para a sapataria e encomenda os pares de sapato, manda entregar ao colégio e o colégio reabre”, relembra Moraes.
O outro acerto de contas é o encontro entre Graciliano e Getúlio Vargas descrito ao biógrafo pelo jornalista e escritor Antonio Carlos Vilaça, introduzido agora na nova edição. Segundo o relato, Graciliano se encontrou com o ditador durante um passeio noturno pela praia do Flamengo. Diferentemente de Fabiano, o sertanejo de Vidas Secas que reencontra o Soldado Amarelo e perde a chance de se vingar por ter sido, pouco antes, trapaceado no jogo, o escritor é cumprimentado pelo presidente e dá, ao seu jeito, a sua resposta. Graciliano se nega a devolver o cumprimento. Para Dênis de Moraes, a passagem ajuda a quebra uma certa animosidade sobre o autor que, ao fim da vida, era criticado por ter trabalhado como inspetor federal do governo Vargas – cargo para o qual foi indicado pelo amigo Carlos Drummond de Andrade e que exerceu com dignidade até o fim da vida, segundo o autor – e por ter colaborado com a revista Cultura Política, produzida pelo Estado Novo, mesmo após a sua prisão. “Se ele fosse um homem de certezas fúteis, ele teria se aproveitado do encontro pra se aproximar de Getúlio. Mas passa direto.  Esse episódio, como atesta Villaça, é prova da dignidade e coerência dele”, diz Moraes.
Coerência que seria observada também em outra faceta de Graciliano, quando ele passa a militar no Partido Comunista. O livro descreve Graciliano como um admirador contido, obediente mas crítico da experiência soviética (ele morreria antes de conhecer o relatório Kruschev, quando são descritos os crimes da ditadura Stálin). No partido, Graciliano sofreria pressões para fazer da literatura um panfleto, algo que sempre recusou. E causou constrangimento durante uma viagem com correligionários à União Soviética, quando não mediu palavras para contestar a ausência de Tolstói na galeria dos grandes escritores russos.
Observada hoje, essa coerência, somada à postura combativa, serve como guia a quem quiser atravessar um período histórico sem abrir mão das convicções, seja como homem público, como militante, como intelectual engajado ou pretenso literato. Nada disso seria necessário para que o Graciliano autor fosse alçado à prateleira dos grandes nomes nacionais. Sua obra bastaria. Mas não para ele. Porque, para escrever era preciso fazer como as lavadeiras de Alagoas, “que começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcer o pano, molham-no novamente, voltam a torcer, colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes”. “Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até pingar não pingar do pano uma só gota. (…) Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar. A palavra foi feita para dizer”. Para Graciliano, “dizer” ou viver não eram escolhas, mas partes de uma mesma ação: a ação transformadora de seu tempo. Num país em que pensar é quase uma provocação, nada poderia ser mais subversivo.

Serviço:
O velho Graça - uma biografia de Graciliano Ramos
Autor: Dênis de Moraes
Orelha: Alfredo Bosi
Quarta capa: Wander Melo Miranda
Páginas: 360
ISBN: 978-85-7559-292-2
Preço: R$ 52,00

Fonte: Carta Capital

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