Historiadores questionam a biografia do líder negro e mostram como o seu perfil mudou em quatro séculos
Ivan ClaudioSegundo os autores, podem ser identificados três perfis diferentes para o líder quilombola: o Zumbi dos Colonos (séculos XVII e XVIII), que colocava em xeque o projeto colonizador; o Zumbi do Brasil Independente (século XIX), pintado como grande guerreiro para enaltecer o agente civilizador que o combatia; e o Zumbi dos Oprimidos (século XX em diante), sobre o qual seriam associadas aspirações emancipadoras que desaguariam no movimento das minorias. “O livro é uma espécie de atlas, uma história da história de Zumbi, dos discursos que se fizeram em torno dele ao longo dos séculos”, afirma França. No desenvolvimento da ideia de Zumbi como uma construção ideológica, os autores se defrontaram com dados conflitantes. A multiplicidade de peças que não se encaixam no quebra-cabeça começa com o seu próprio nome. Existem registros de que ele teria também a alcunha de Zambi, Zombi, Zombé e Zumbé – a grafia Zumbi teria sido estabelecida em meados do século XIX. Mais: Zumbi, cujo significado é diabo e Deus das guerras, seria um título na hierarquia do quilombo, e não um nome, hipótese confirmada nos documentos da época.
Outra controvérsia diz respeito à sua morte. Até o século XVIII, a versão mais conhecida era a de que ele teria se matado, pulando de um penhasco. A partir daí, ficou aceito que Zumbi teria sido morto por um ajudante. “Cartas falam da traição de um mulato, mas é sabido que na época esse termo era malvisto, se preferia a palavra pardo”, diz França, sugerindo que o assassino talvez não pertencesse a Palmares. Os maiores absurdos começaram a pipocar no século passado, quando o chefe dos escravos foi apropriado pelos marxistas, que o tornaram um revolucionário e associaram a sua atuação à luta de classes. O relato mais fantasioso vem do historiador gaúcho Décio de Freitas, que praticamente inventou uma infância romantizada para Zumbi: ele teria sido adotado por um padre, vivido como coroinha e retornado 15 anos mais tarde a Palmares movido por ideais libertários. Freitas teria sacado essas informações de correspondências do missionário. “São cartas que nunca foram vistas e, certamente não existem”, afirma França.
Leia um trecho do livro:
Padre
Antônio Vieira, ao contrário, não via com bons olhos qualquer medida
que, como a proposta por Brito Freire – que certamente não foi o único
–, visasse reintegrar os pretos amotinados de Palmares. Numa carta
escrita em 1691 ao desembargador do Paço, Roque Monteiro Paim, o jesuíta
explica que os habitantes do quilombo, além de não confiarem nos
padres, eram rebelados e cativos, perseverando “em pecado contínuo e
atual”, o que os impossibilitava de “ser absoltos, de receber a graça de
Deus e de se restituírem ao serviço e obediência de seus senhores”. A
única maneira de trazê-los de volta à sociedade, prossegue Vieira, seria
restaurar-lhes a liberdade, medida totalmente inviável, já que traria
“a total destruição do Brasil”, pois, quando os demais pretos soubessem
que os palmarinos tinham, por meios não legais, se livrado do cativeiro,
“cada cidade, cada vila, cada lugar, cada engenho, seriam logo outros
tantos Palmares”.
Malgrado,
no entanto, essas e outras tantas menções de holandeses e portugueses
ao quilombo e aos problemas por ele suscitados, não há registros
escritos descrevendo sua suposta destruição definitiva, no início do
século XVIII, pelo bandeirante Domingos Jorge Velho. Todavia, cedo,
muito cedo, após a sua derrocada final, o quilombo voltou a figurar nos
escritos da época, evidenciando que a insubordinação, evasão e reunião
de escravos eram preocupações permanentes da sociedade colonial
brasileira – como haviam sido para os invasores holandeses de outrora –,
sobretudo de seus poucos homens de letras, homens em geral livres,
culturalmente brancos, ricos e preocupados com a insubordinação da
escravaria.
Fonte: IstoÉ Independente - Cultura