A onda dos "rolezinhos" invade shoppings brasileiros |
Por Rogério Rocha
O recente fenômeno dos “rolezinhos”,
nome dado ao encontro de grupos de jovens das periferias de São
Paulo no ambiente de shopping centers daquela capital, que começou
no final de 2013, tem chamado atenção das autoridades e despertado
o interesse da mídia e da opinião pública para o tema da ausência de
espaços e equipamentos de lazer nas periferias brasileiras. A
reboque traz ainda a debate a problemática da pobreza, da
desigualdade social e do direito ao consumo, bem como a questão do
preconceito e discriminação contra parcelas desfavorecidas da
sociedade, sobretudo as chamadas minorias.
Desde o início, a invasão maciça
desses jovens aos shoppings paulistanos (e posteriormente a
estabelecimentos congêneres em outras capitais do país) tem
ocasionado nas pessoas, de um modo geral, uma série de reações, a
maioria delas confusas, havendo quem veja nessa atitude mera
contestação, revolta e protesto por direitos ligados ao lazer e ao
consumo, enquanto para outros tal comportamento não passa de
explícita manifestação de jovens baderneiros.
Os órgãos de segurança pública, via
de regra, tem adotado o discurso de que os "rolezinhos" não configuram
crime, portanto não podem (nem devem) ser coibidos pelos policiais
militares, só devendo agir a polícia em último caso, desde que
algo de anormal ocorra nas reuniões dos grupos de jovens
(entenda-se: saques, furtos, roubos, vandalismo, etc.). A OAB,
basicamente na mesma linha, e também na esteira de um discurso
demasiadamente cuidadoso, sustenta que o fenômeno não afronta a
lei, que há por parte dos envolvidos apenas a intenção de
protestar por direitos que lhes tem sido historicamente negados, e
que qualquer proibição da entrada e permanência desses
adolescentes e jovens dentro dos shoppings seria um ato preconceituoso e de caráter discriminatório.
Entre os intelectuais, sobretudo
juristas, sociólogos e antropólogos, ainda não há consenso acerca
da natureza dos “rolezinhos”, suas causas e prováveis
consequências. Alguns juristas afirmam que os "rolezinhos" caracterizam um abuso de
direito de ir e vir, visto
que um grupo grande de pessoas se vale dessa liberdade para pôr em
risco, ou simplesmente afrontar, a liberdade de ir e vir de outras,
bem assim o direito à propriedade, também virtualmente ameaçado
quando do agendamento dessas reuniões para o espaço dos shopping
centers.
Outros especialistas, sobretudo
sociólogos, entendem que o fenômeno "rolezinho" está associado à
cultura de jovens de periferia, sendo sua proibição uma manifestação
de preconceito para com um grupamento social marcadamente negro e
pobre. Destacam ainda que o “rolezinho” evidencia os muitos
contrastes existentes na sociedade brasileira e que nele estão
presentes questões de classe, bem como questões raciais.
Questão posta e polêmica instaurada,
o certo é que a limitação de direitos fundamentais é tema de
destaque dentro do direito constitucional. Assim como devem ser garantidos
todos os direitos individuais, sabe-se também que seus exercícios
muitas vezes podem resultar em conflitos, sobretudo quando há a
colisão de alguns desses direitos.
Desse modo, assim como se costuma
estabelecer um núcleo protegido de direitos, garantindo-se, por
consequência, seu exercício, é normal que sejam fixados limites ou
restrições a esses mesmos direitos. Até aí não há nada de
incomum, afinal sempre haverá um espaço restritivo delimitado pelas
próprias normas.
A Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão, de 1789, em seu artigo 4º, traz um caso clássico de
restrição legal expressa, ao fixar que “A liberdade consiste em
poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem”. Uma lição
simples e precisa, a qual deveríamos trazer sempre em nossas consciências.
Assim é que, geralmente, quando um
texto normativo estabelece uma garantia, autoriza, de outro lado, uma
certa restrição. O que não se pode aceitar, por razões óbvias é
a supressão de garantias, principalmente as que tem origem no corpo
da própria Constituição.
'Rolezinho' em shopping de Paulínia, SP. |
Faço tais apontamentos somente para
alertar aqueles que já se apressam em afirmar que a proibição dos
“rolezinhos” no interior dos estabelecimentos comerciais é
absurda e discriminatória.
É importante lembrar que é
necessário aos regimes democráticos equilibrar
(ou compatibilizar),
na medida do possível, os direitos individuais, a fim de se evitar
abusos do exercício desses próprios direitos. Busca-se com isso,
ademais, resolver possíveis conflitos
de direitos, inclusive os individuais, que inevitavelmente acontecem.
Parte da esquerda oportunista começa a se apropriar do 'movimento', levantando bandeiras inexistentes |
O texto constitucional consagra o
direito de reunião,
dispondo o art. 5º, XVI, que “todos
podem reunir-se pacificamente,
sem
armas,
em locais
abertos ao público,
independentemente de autorização, desde que não frustrem outra
reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas
exigido prévio
aviso
à autoridade competente”. (grifo nosso)
Na
lição de Paulo e Alexandrino (2009), o direito de reunião é “meio
de manifestação coletiva da liberdade de expressão, em que pessoas
se associam temporariamente
tendo por objeto um interesse comum” (grifo do autor), dentre eles
inclusive podendo constar a reivindicação de um problema social ou
da comunidade, por exemplo. Portanto, desde que lícitas e pacíficas,
não havendo lesão a interesse jurídico ou perturbação à ordem
pública, podem as pessoas se reunir.
Outra
condição claramente observável no comando da norma constitucional
é que, para se realizar, a reunião deverá ocorrer em locais
abertos ao público.
Nesse
ponto, cabe frisar que o elemento espacial 'local aberto ao público',
ao qual faz menção nossa Constituição Federal, é, de modo
genérico, um logradouro público (todo e qualquer). Anote-se também
que, a princípio, a primeira ideia que vem às nossas cabeças é a
de uma praça, um largo, um parque, uma avenida, uma rua, enfim,
vários espaços públicos ao ar livre (verdadeiramente abertos).
Polícia militar é chamada a intervir no interior dos shoppings |
Agora
abro espaço para duas importantes considerações acerca do tema até
aqui comentado.
Primeira
consideração:
o shopping
center,
em que pese ser aberto ao público, é um empreendimento
de caráter privado.
Tanto é verdade, que é regido por leis do direito civil (Código
Civil e Lei n.º 8.245/91, p. ex.), ramo do direito
privado
(e não público), com suas características peculiares e princípios
próprios.
Logo, admite-se e franqueia-se a entrada, circulação e permanência
de pessoas (de todas as classes sociais), consumidoras ou não, nas
dependências desses empreendimentos
particulares.
Afinal, é o público a principal razão de ser dos centros de
comércio e compras. Contudo, cabe aos proprietários das lojas, aos
gerentes dos shoppings (ou a quem exerça atividade de gestão sobre
tais empreendimentos) disciplinar seus usos, responsabilizando-se
inclusive pela segurança pessoal dos frequentadores, colaboradores e
lojistas, bem como pelo seu patrimônio como um todo.
A
segunda
consideração
que faço é a seguinte: ainda que pacífica e sem armas, o
exercício do direito de reunião dos “rolezinhos” dentro do
espaço dos shopping centers,
ainda que para fins de protesto ou expressão da manifestação de
algum justo descontentamento social ou político, põe
em risco a proteção ideal dos direitos de terceiros e a própria
ordem pública.
Portanto, o simples fato de se eleger o ambiente fechado de um centro
comercial para uma reunião de “protesto”, ainda que pacífica, é
motivo suficiente para que os particulares que ali exercem suas
atividades e negócios adotem medidas assecuratórias de suas
integridades.
A
ciência que estuda o comportamento humano de há muito nos tem
demonstrado que nós, indivíduos, vivendo em sociedade, somos
capazes de exteriorizar diferentes reações quando estamos sós ou
em grupo. Ou seja, um indivíduo (um jovem, por exemplo) passeando
sozinho no shopping se comporta de um jeito. Andando em companhia de
dezenas ou mesmo uma centena de pessoas comporta-se de modo outro.
No
segundo caso, qualquer estímulo para a violência ou a prática de
atos intimidatórios contra os indivíduos que não integram o
referido grupo pode detonar uma reação em cadeia. Logo, se uma
parte do grupo corre, a tendência é que outros elementos desse
mesmo grupo também comecem a correr. Se alguns gritam, logo outros,
movidos por aquele estímulo inicial, começam a gritar.
E
ainda que a princípio os grupos de jovens não entrem nos
estabelecimentos com o intuito de praticar ilícitos, nada exclui a
possibilidade da infiltração de adolescentes que acabem por dar
início à prática de atos infracionais, acobertados pelo anonimato
que as multidões propiciam.
Nos
casos já vistos na TV, em alguns dos eventos noticiados, jovens e
adolescentes que participavam dos “rolés” causaram tumulto ao
adentrar os shoppings de forma ruidosa, correndo pelos corredores,
trombando em pessoas e subindo escadas rolantes no sentido contrário
ao seus movimentos.
Além
do mais, todos hão de convir, o interior de um shopping center não
é local adequado a nenhum tipo de manifestação pública de massa.
Seja de jovens, seja de adultos.
Distúrbios em flash mobs nos EUA |
O
fenômeno ora reproduzido em terras brasileiras é oriundo dos EUA,
onde existe desde 1992, quando na Califórnia surgiram as denominadas
critical
mass*,
que eram, em sua essência, encontros de jovens das classes baixas,
sobretudo negros, buscando visibilidade perante o capitalismo da
sociedade branca e rica. Mais recentemente, na última década, o
movimento passou a se chamar de flash
mob.
Os primeiros eventos foram tranquilos, sem problemas, com jovens
reunindo-se pacificamente nos ambientes refrigerados e acéticos dos
mega shoppings dos Estados Unidos. Porém, com o passar do tempo,
muitos distúrbios começaram a ocorrer quando desses encontros,
resultando muitas vezes em depredações, saques a lojas, roubos e
lesões a transeuntes, passando a merecer críticas de parte da
sociedade americana e a sofrer a pronta repressão dos órgãos de
segurança. Um dos resultados dessa resposta estatal foi a mudança
de tais encontros para ambientes abertos, como parques, ruas e
praças.
Nos EUA os flash mobs despertaram temor depois que passaram a ser veículo do ódio |
Em
relação ao nosso flash mob,
ora denominado “rolezinho”, sinceramente não os vejo como
produto pensado e definido para o fim último de um protesto crítico,
consciente, voltado para denunciar desigualdades sociais, o
preconceito racial, o direito ao consumo e a falta de espaços de
lazer dos jovens suburbanos. Nada disso!
Não
há consciência dessa tematização de viés político dentre os
seus organizadores, na grande maioria adolescentes que querem apenas
dar umas voltas com amigos que conheceram nas redes sociais, conhecer
gente nova, comer uns lanches, sair do marasmo de seus bairros e “ficar” com algumas
garotas, “tirando onda” com suas roupas de marca e a estética
fútil e vazia do tal 'funk de ostentação'.
E
isso não sou eu quem estou inventando, são os próprios
“organizadores” que afirmam, reforçando tais argumentos quando
entrevistados pelos meios de comunicação.
Vá
lá que um ou outro 'rolezeiro', quem sabe, tenha como objetivo real
a contestação das referidas mazelas sociais. Vá lá!!!! Mas
certamente será voz no deserto, minoria isolada em meio aos que
querem mesmo é zoar. Aliás, talvez seja esse o verbo que melhor
define o interesse dessa galera ao invadir em hordas numerosas os
shoppings brasileiros... zoar.
Para eles, essa é a onda.
*P.S.: Hoje nos EUA o termo critical mass é usado para identificar o movimento de massa onde ativistas e entusiastas se reúnem em manifestações pelo uso de bicicletas nas grandes cidades como meios de transportes não poluentes.
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