Por Rogério Rocha
Proponho-me a discorrer sobre a suposta
relação entre importantes áreas da cultura. Relação fundada há, pelo menos,
dois mil e quinhentos anos e que acabou por estabelecer um grau de parentesco
entre dois significativos campos do saber, quais sejam: a poesia e a filosofia.
Meu principal intento será o de indicar
as razões da viabilidade em se falar de uma proximidade fundacional entre o
saber crítico-reflexivo da filosofia e a arte da poesia.
É preciso compreender, entretanto, que
estou a tratar de campos de pesquisa autônomos, com estatutos de legitimação
epistemológica distintos e que congregam objetos, métodos e finalidades
específicas.
De um lado a poesia, forma de linguagem
que tem por característica fundante o predomínio de um texto lírico, com
objetivo de exprimir percepções do sujeito diante do mundo, quer pela via da
expressão crítica, quer pela meramente estética. Para tanto, faz-se necessária
a existência de uma relação triádica composta pela poesia (como arte), pelo
poema (como produto final e objeto dessa arte) e pelo poeta (criador e
artífice).
A filosofia, por seu lado, consiste no
imprescindível campo de investigações que penetra as raízes dos problemas
fulcrais da vida com a ferramenta do método e as luzes do logos.
Voltando ao princípio, pode-se constatar
que os filósofos pré-socráticos Xenófanes, Heráclito, Parmênides e Empédocles,
por exemplo, escreveram suas reflexões utilizando um estilo de escrita similar
ao encontrado na prática da versificação. Mas por quê? A resposta é
relativamente simples. Porque a poesia, enquanto gênero literário, surgiu, no
Ocidente, bem antes da prosa e da própria filosofia, ainda no tempo dos mitos,
nas narrativas gregas dos tempos heroicos.
Além do mais, havia, por assim dizer,
uma unidade originária, uma estreita aproximação entre a linguagem escrita e os
vários discursos ligados à oralidade do período ágrafo. Sendo assim, no plano
da história, pôde-se observar a assimilação e uns pelos outros. Foi o caso do
nascente discurso filosófico, absorvido pelo fazer poético, nomeadamente sob a
forma do poema.
Mesmo com a famosa condenação platônica
dos poetas e da poesia em seu clássico “A República”, e com a posição de
teóricos que defendem haver uma divergência histórica entre os dois saberes,
percebe-se a ocorrência de um vínculo entre eles. Vínculo que se apresenta
desde suas gêneses e continua a influenciar as manifestações do intelecto.
Em decorrência do acima exposto, é
razoável compreender o fato de as primeiras reflexões filosóficas terem sido
realizadas por meio de enunciados poéticos, na mesma perspectiva do que, no
plano de expressão da linguagem, era usual durante aquele período da história.
Foi como se a filosofia tivesse aderido
à forma poemática para dar corpo às proposições e questionamentos lógicos.
Desse modo, trago aqui, a título de
ilustração, dois exemplos extraídos aos fragmentos de Heráclito que possuem
ligação com o que foi acima afirmado:
SEXTO EMPÍRICO, Contra os Matemáticos,
VII,132.
“Deste logos sendo sempre os homens se
tornam descompassados quer antes de ouvir, quer tão logo tenham ouvido; aos
outros homens escapa quanto fazem despertos, tal como esquecem quanto fazem
dormindo.”
ARIO DÍDIMO, em EUSÉBIO, Preparação
Evangélica, XV, 20.
“Aos que entram nos mesmos rios outras
águas afluem; almas exalam do úmido.”
49a. HERÁCLITO, Alegorias, 24.
“Nos mesmos rios entramos e não
entramos, somos e não somos.”
Ora, a poesia em seu estrito senso,
inserida num corpo-poema, constitui-se como um discurso-objeto, isto é, um
discurso de caráter não proposicional, metafórico, contudo reiterável.
Caracteriza-se por sua linguagem de abertura ao diverso e ao transcendente,
ainda que utilizada para expressar a realidade. Logo, é, por natureza, uma
linguagem no campo de um discurso não-convencional, chegando a lidar, por isso,
também com o que vige na esfera do imponderável.
Enquanto isso, a filosofia, tipo de discurso
convencional apoiado no método e na lógica, ocupa-se em analisar a realidade
através de argumentos construídos com base em fundamentação racional.
Mesmo assim, em sua origem, na
antiguidade grega, ainda que parcialmente, o pensamento filosófico ‘derivou’ da
poesia como um de seus modos externalizáveis.
Explico a razão do uso do entre aspas
quando do emprego da palavra derivou, ao correlacionar os referidos campos de
conhecimento. Ambos emergiram do páthos,
ou seja, do espanto, condição que precede a tudo que nos toca e nos permite um
inevitável estado de admiração.
Poesia e Filosofia, portanto, tiveram
por arkhé (princípio) um “páthos” (espanto). Foram tomadas pela
vertigem provocada ao defrontarem-se com as “aporias”, com a incerteza presente
no íntimo de cada recorte da realidade, na dúvida radical que as empurrou na
direção de seus intentos formadores.
Daí o motivo pelo qual Alberto Pucheu as
denominou de “espantografias”, isto é, escritas sobre espantos.
Contudo, enquanto a filosofia buscou
interpretar a realidade imanente e transcendente do mundo, em prol do
saneamento das dúvidas humanas mais angustiantes, a poesia optou por tentar
expressar o impossível de modo crível.
Nela, diferentemente da primeira, tudo
pode ser e acontecer, vez que opera no âmbito de uma feitura. Ainda assim,
responde a certos parâmetros definidores de condições de existência,
representados, sobretudo, pelas regras de versificação, escanção e métrica.
Falando da filosofia, é relevante
lembrar que na última fase da produção teórica de Martin Heidegger, por
exemplo, viu-se o predomínio do pensar
que poetiza sobre o pensar que
filosofa.
Tal virada encontra explicação no fato
de que a filosofia, segundo ele, teria alcançado seu fim. Razão pela qual
ficaria a cargo da poesia a passagem (Übergang)
a um pensamento do Ser. Assim sendo, o pensamento poético passaria a definir,
dali em diante, um modo de ser com o
mundo.
Vale frisar, contudo, que sempre que a
poesia toma por traço fundamental mostrar-se como demasiadamente teórica, acaba
por forçar o poeta a também pensá-la. Pensar o conteúdo mais que a forma, sua
engenharia personalíssima, seus planos internos e externos, evidentes ou
implícitos.
Eis o fazer poético. Um pensamento que
escolheu seguir pelo caminho da sensibilidade, das intuições, da contemplação
estética como via alternativa num mundo rodeado de fenômenos cientificizados.
Ao mesmo tempo, com o propósito de dividir com a reflexão filosófica a leitura
do mundo, esse modelo de racionalidade adicionou camadas de racionalidade
capazes de acessar verdades cujo pensamento tradicional buscava.
Isto posto, entendo que a poesia se
situa correlacionada à filosofia, mediante o que María Zambrano denominou de razão poética. Condição que radica na
gênese desses dois campos e a qual nominei de emaranhamento intermitente. Fenômeno movido pela intencionalidade
subjetiva do poeta e do filósofo, que vem se manifestando em caráter
circunstancial, porém com retomadas constantes, desde os pensadores
originários.
Nesse sendido, verifica-se a
possibilidade da prática de um pensar que poetiza, a partir da unidade que
fabricou poetas-filósofos como Mallarmé, Lucrécio e filósofos-poetas como
Platão, Hölderlin, Nietzsche, Rilke e Heidegger.