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THOMAS JACKSON Getty Images |
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Em 2009, um grupo de estudantesde biologia
da Tufts University reuniu-se para comer terra. Eles moeram pequenos
torrões de argila e ingeriram o pó para descobrir, pela primeira vez, o
sabor desse material. Esse estranho teste de sabor era parte de um curso
de medicina darwiniana oferecido por um de nós (Starks). Os alunos
estavam estudando a evolução da geofagia – a prática de comer terra,
principalmente solos semelhantes à argila, coisa que animais e pessoas
praticam há milênios.
O guia padrão de referência para psiquiatras – a quarta edição do Manual de Estatística e Diagnóstico de Transtornos Mentais (DSMI, na sigla em inglês) – classifica
a geofagia como um transtorno de alimentação em que a pessoa consome
coisas que não são alimentos, como cinza de cigarro e tinta de parede. Mas
como os alunos viriam a descobrir, estudos culturais de animais e
humanos sugerem que a geofagia não é necessariamente uma anormalidade –
na verdade, ela é um tipo de adaptação. Os pesquisadores estão
analisando o ato de comer terra sob um ângulo diferente e descobrindo
que o comportamento geralmente serve para suprir minerais vitais e para
desativar toxinas de alimentos e do ambiente.
Abordagem evolucionária
Uma
forma de decidir se a geofagia é anormal ou adaptativa é determinar até
que ponto o comportamento é comum em animais e em sociedades humanas.
Como o comportamento é observado em muitas espécies e culturas
diferentes, é provável que seja benéfico.
Atualmente parece não
haver dúvida de que a geofagia é ainda mais comum no reino animal do que
se pensava. Os pesquisadores observaram geofagia em mais de 200
espécies de animais, incluindo papagaios, veados, elefantes, morcegos,
coelhos, babuínos, gorilas e chimpanzés. A geofagia também é bem
documentada em humanos, com registros que datam da época de Hipócrates
(460 a.C.). Os mesopotâmios e antigos egípcios usavam a argila
medicinalmente: eles cobriam ferimentos com emplastros de barro e comiam
terra para tratar de várias doenças, principalmente do intestino.
Alguns povos indígenas das Américas usavam terra como um tempero e
preparavam alimentos naturalmente amargos como noz de carvalho e batatas
com um pouco de terra para neutralizar o amargor. A geofagia foi
praticada com frequência na Europa até o século 19 e em algumas
sociedades, como a etnia Tiv, da Nigéria, o desejo de comer terra é
sinal de gravidez.
Uma explicação comum para o hábito de animais e
pessoas ingerirem terra é que o solo contém minerais como cálcio, sódio
e ferro, que mantêm a produção de energia e outros processos biológicos
vitais. Como as necessidades desses minerais variam com a estação do
ano, com a idade e com o estado geral de saúde dos animais, a geofagia é
particularmente comum quando sua dieta alimentar não fornece minerais
suficientes ou quando os desafios do ambiente exigem mais energia que o
normal. Gorilas-das-montanhas e búfalos africanos que vivem em altas
altitudes podem, por exemplo, ingerir terra como uma fonte de ferro que
promove o desenvolvimento das células vermelhas do sangue. Elefantes,
gorilas e morcegos consomem terra rica em sódio quando sua alimentação
não contém quantidades suficientes desse elemento químico. Populações de
elefantes visitam constantemente cavernas subterrâneas onde cavam e
ingerem rochas ricas em sal.
Entre populações
humanas da África os que têm acesso direto ao cálcio não praticam
geofagia com tanta frequência. A necessidade de cálcio pode explicar, em
parte, por que a geofagia é mais comumente associada à gravidez: a mãe
necessita de mais cálcio à medida que os ossos do feto se desenvolvem.
Ainda assim, o déficit de minerais não explica completamente a geofagia. Num artigo extenso de revisão publicado em 2011 no Quarterly Review of Biology, Sera
L. Young, da Cornell University, e seus colegas concluíram que ingerir
terra raramente acrescenta quantidades signifi cativas de minerais à
nutrição de qualquer ser, humano ou animal. Em muitos casos esse
comportamento interfere na absorção do alimento do intestino à corrente
sanguínea, provocando deficiência de nutrientes.
Se animais e
humanos não estão retirando da terra que ingerem o suprimento de
minerais de que necessitam, qual seria então o benefício da geofagia?
Uma segunda explicação que está ganhando adeptos é que comer terra
geralmente é uma forma de desintoxicação.
A terra desintoxica
A
ideia de que, na maioria dos casos, comer terra é provavelmente uma
forma de eliminar toxinas pode explicar por que pessoas e animais
geralmente preferem solos semelhantes à argila. Moléculas de argila
negativamente carregadas ligam-se facilmente a toxinas carregadas
positivamente no estômago e intestinos – evitando que as toxinas
penetrem na corrente sanguínea e transportando-as através dos intestinos
para serem eliminadas. A desintoxicação pode explicar também por que
alguns povos indígenas preparam refeições com batatas e nozes de
carvalho com argila – esses alimentos são amargos porque contêm pequenas
quantidades de toxinas.
Nos anos 90, James Gilardi, diretor
executivo da Fundação Mundial do Papagaio encontrou apoio para a
hipótese da desintoxicação em um dos poucos estudos experimentais sobre
geofagia. Enquanto observava um bando de papagaios peruanos
alimentando-se numa faixa específica de solo exposto ao longo do rio
Manu, Gilardi notou que os pássaros não se interessavam por faixas de
terra das vizinhanças com muito mais minerais. Ele pressupôs que os
papagaios não estavam ingerindo terra por causa dos minerais, mas para
neutralizar alcaloides tóxicos das sementes e frutas não maduras que
fazem parte de sua alimentação. Toxinas presentes em vegetais (ou
carnes) geralmente irritam o intestino. Para testar a hipótese, Gilardi
alimentou alguns papagaios com o alcaloide tóxico quinidina com e sem a
terra preferida e mediu a quantidade de alcaloide presente no sangue dos
pássaros depois da refeição. Os pássaros que não consumiram terra
exibiram níveis mais altos de quinidina no sangue. Os pesquisadores
observaram os mesmos efeitos benéfi cos em chimpanzés e babuínos que
receberam suplemento de argila em suas refeições.
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Estudos com morcegos revelam mais evidências dos efeitos benéficos da terra na desintoxicação. Um estudo publicado na PLoS ONE em 2011 questionava se morcegos da Amazônia
visitavam encostas de despenhadeiros de argila exposta para nutrir-se
ou desintoxicar-se. Christian Voigt, do Instituto Leibniz de Pesquisa em
Zoologia e Vida Selvagem, em Berlim, e seus colegas capturaram morcegos
de duas espécies diferentes: uma que se alimenta principalmente de
frutas e outra cuja dieta se baseia principalmente em insetos. Voigt
acreditava que se os morcegos estivessem ingerindo argila por causa dos
minerais, ele deveria encontrar menor quantidade de morcegos comedores
de frutas nas encostas de argila porque as frutas contêm mais minerais
que os insetos. Mas a maioria dos morcegos que capturou nas encostas de
argila eram consumidores de frutas – e muitas fêmeas estavam prenhes ou
amamentando. Voigt concluiu que as fêmeas frugívoras prenhes visitavam
as encostas de argila para se desintoxicar porque estavam comendo duas
vezes mais para alimentar seus bebês, o que signifi cava que estavam
ingerindo duas vezes mais toxinas vegetais de frutas não maduras,
sementes e folhas.
Como os morcegos, mulheres grávidas também
podem ingerir terra por suas propriedades desintoxicantes, além de fonte
suplementar de minerais. O primeiro trimestre da gravidez incomoda
muitas mulheres com náuseas e vômitos, e estudos cruzados de várias
culturas mostram uma associação entre geofagia no início da gravidez e o
mal-estar matinal. Mulheres de países subsaarianos e do sul dos Estados
Unidos relataram consumir argila para aliviar esse desconforto. Alguns
pesquisadores propuseram que o mal-estar matinal elimina as toxinas da
mãe, que podem prejudicar o feto. Talvez a geofagia e o mal-estar
matinal funcionem em conjunto para proteger o desenvolvimento do feto.
Como a argila pode conter bactérias e vírus, ela também protege mãe e
feto de patógenos como a Escherichia coli e o Vibrio cholerae presentes em alimentos.
Embora
apenas recentemente a comunidade científica tenha reunido evidências
suficientes para sugerir que a geofagia é um comportamento adaptativo,
ao longo de milhares de anos muitas pessoas – e não apenas mulheres
grávidas – usaram minerais da argila como remédio para náusea, vômitos e
diarreia. Na era da medicina moderna, empresas farmacêuticas
aproveitaram as propriedades associativas do caulim, um mineral da
argila, para produzir o Kaopectate, um medicamento que trata diarreia e
outros problemas digestivos. Finalmente o composto sintético
subsalicilato de bismuto – o principal ingrediente do Pepto-Bismol –
substituiu o caulim, mas a argila ainda é usada atualmente de outras
formas. Caulim e esmectitas se prendem não só às toxinas nocivas, mas
também a patógenos. Fazendeiros utilizam argila no preparo de ração para
a criação para inibir a transmissão de toxinas, e alguns pesquisadores
propuseram aproveitar as propriedades de associação patogênica da argila
para purificar a água.
É claro que ingerir terra também pode ser
perigoso. Juntamente com minerais e materiais desintoxicantes seria
possível ingerir bactérias, vírus, vermes parasitas e quantidades
ameaçadoras de chumbo e arsênico, não intencionalmente. Devido a esses
riscos, consumidores modernos de terra deveriam se limitar a produtos
comercialmente seguros, passados por aquecimento ou esterilização –, mas
não deveriam ser estigmatizados por seu comportamento.
De forma
geral as evidências mostram que, em muitos casos, a geofagia não é um
sinal de doença mental, mas uma defesa específica que evoluiu para
combater toxinas e provavelmente suprir déficits de minerais. Embora
possamos não pensar em geofagia quando tomamos vitaminas ou procuramos
alívio numa colherada de Kaopectate, na verdade estamos participando da
prática ancestral de comer terra. | | |
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Fonte: Revista Scientif American Brasil (ed. 122 - julho/2012) | |
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