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sábado, 23 de junho de 2012

A vantagem de comer terra

Novas descobertas sugerem que comer terra não é necessariamente patológico, mas apenas uma adaptação
por Philip T. B. Starks e Brittany L. Slabach
THOMAS JACKSON Getty Images

Em 2009, um grupo de estudantesde biologia da Tufts University reuniu-se para comer terra. Eles moeram pequenos torrões de argila e ingeriram o pó para descobrir, pela primeira vez, o sabor desse material. Esse estranho teste de sabor era parte de um curso de medicina darwiniana oferecido por um de nós (Starks). Os alunos estavam estudando a evolução da geofagia – a prática de comer terra, principalmente solos semelhantes à argila, coisa que animais e pessoas praticam há milênios.

O guia padrão de referência para psiquiatras – a quarta edição do Manual de Estatística e Diagnóstico de Transtornos Mentais (DSMI, na sigla em inglês) classifica a geofagia como um transtorno de alimentação em que a pessoa consome coisas que não são alimentos, como cinza de cigarro e tinta de parede. Mas como os alunos viriam a descobrir, estudos culturais de animais e humanos sugerem que a geofagia não é necessariamente uma anormalidade – na verdade, ela é um tipo de adaptação. Os pesquisadores estão analisando o ato de comer terra sob um ângulo diferente e descobrindo que o comportamento geralmente serve para suprir minerais vitais e para desativar toxinas de alimentos e do ambiente.


Abordagem evolucionária

Uma forma de decidir se a geofagia é anormal ou adaptativa é determinar até que ponto o comportamento é comum em animais e em sociedades humanas. Como o comportamento é observado em muitas espécies e culturas diferentes, é provável que seja benéfico.
Atualmente parece não haver dúvida de que a geofagia é ainda mais comum no reino animal do que se pensava. Os pesquisadores observaram geofagia em mais de 200 espécies de animais, incluindo papagaios, veados, elefantes, morcegos, coelhos, babuínos, gorilas e chimpanzés. A geofagia também é bem documentada em humanos, com registros que datam da época de Hipócrates (460 a.C.). Os mesopotâmios e antigos egípcios usavam a argila medicinalmente: eles cobriam ferimentos com emplastros de barro e comiam terra para tratar de várias doenças, principalmente do intestino. Alguns povos indígenas das Américas usavam terra como um tempero e preparavam alimentos naturalmente amargos como noz de carvalho e batatas com um pouco de terra para neutralizar o amargor. A geofagia foi praticada com frequência na Europa até o século 19 e em algumas sociedades, como a etnia Tiv, da Nigéria, o desejo de comer terra é sinal de gravidez.

Uma explicação comum para o hábito de animais e pessoas ingerirem terra é que o solo contém minerais como cálcio, sódio e ferro, que mantêm a produção de energia e outros processos biológicos vitais. Como as necessidades desses minerais variam com a estação do ano, com a idade e com o estado geral de saúde dos animais, a geofagia é particularmente comum quando sua dieta alimentar não fornece minerais suficientes ou quando os desafios do ambiente exigem mais energia que o normal. Gorilas-das-montanhas e búfalos africanos que vivem em altas altitudes podem, por exemplo, ingerir terra como uma fonte de ferro que promove o desenvolvimento das células vermelhas do sangue. Elefantes, gorilas e morcegos consomem terra rica em sódio quando sua alimentação não contém quantidades suficientes desse elemento químico. Populações de elefantes visitam constantemente cavernas subterrâneas onde cavam e ingerem rochas ricas em sal.
 
Entre populações humanas da África os que têm acesso direto ao cálcio não praticam geofagia com tanta frequência. A necessidade de cálcio pode explicar, em parte, por que a geofagia é mais comumente associada à gravidez: a mãe necessita de mais cálcio à medida que os ossos do feto se desenvolvem.

Ainda assim, o déficit de minerais não explica completamente a geofagia. Num artigo extenso de revisão publicado em 2011 no Quarterly Review of Biology, Sera L. Young, da Cornell University, e seus colegas concluíram que ingerir terra raramente acrescenta quantidades signifi cativas de minerais à nutrição de qualquer ser, humano ou animal. Em muitos casos esse comportamento interfere na absorção do alimento do intestino à corrente sanguínea, provocando deficiência de nutrientes.

Se animais e humanos não estão retirando da terra que ingerem o suprimento de minerais de que necessitam, qual seria então o benefício da geofagia? Uma segunda explicação que está ganhando adeptos é que comer terra geralmente é uma forma de desintoxicação.


A terra desintoxica


A ideia de que, na maioria dos casos, comer terra é provavelmente uma forma de eliminar toxinas pode explicar por que pessoas e animais geralmente preferem solos semelhantes à argila. Moléculas de argila negativamente carregadas ligam-se facilmente a toxinas carregadas positivamente no estômago e intestinos – evitando que as toxinas penetrem na corrente sanguínea e transportando-as através dos intestinos para serem eliminadas. A desintoxicação pode explicar também por que alguns povos indígenas preparam refeições com batatas e nozes de carvalho com argila – esses alimentos são amargos porque contêm pequenas quantidades de toxinas.

Nos anos 90, James Gilardi, diretor executivo da Fundação Mundial do Papagaio encontrou apoio para a hipótese da desintoxicação em um dos poucos estudos experimentais sobre geofagia. Enquanto observava um bando de papagaios peruanos alimentando-se numa faixa específica de solo exposto ao longo do rio Manu, Gilardi notou que os pássaros não se interessavam por faixas de terra das vizinhanças com muito mais minerais. Ele pressupôs que os papagaios não estavam ingerindo terra por causa dos minerais, mas para neutralizar alcaloides tóxicos das sementes e frutas não maduras que fazem parte de sua alimentação. Toxinas presentes em vegetais (ou carnes) geralmente irritam o intestino. Para testar a hipótese, Gilardi alimentou alguns papagaios com o alcaloide tóxico quinidina com e sem a terra preferida e mediu a quantidade de alcaloide presente no sangue dos pássaros depois da refeição. Os pássaros que não consumiram terra exibiram níveis mais altos de quinidina no sangue. Os pesquisadores observaram os mesmos efeitos benéfi cos em chimpanzés e babuínos que receberam suplemento de argila em suas refeições.
 
Estudos com morcegos revelam mais evidências dos efeitos benéficos da terra na desintoxicação. Um estudo publicado na PLoS ONE em 2011 questionava se morcegos da Amazônia visitavam encostas de despenhadeiros de argila exposta para nutrir-se ou desintoxicar-se. Christian Voigt, do Instituto Leibniz de Pesquisa em Zoologia e Vida Selvagem, em Berlim, e seus colegas capturaram morcegos de duas espécies diferentes: uma que se alimenta principalmente de frutas e outra cuja dieta se baseia principalmente em insetos. Voigt acreditava que se os morcegos estivessem ingerindo argila por causa dos minerais, ele deveria encontrar menor quantidade de morcegos comedores de frutas nas encostas de argila porque as frutas contêm mais minerais que os insetos. Mas a maioria dos morcegos que capturou nas encostas de argila eram consumidores de frutas – e muitas fêmeas estavam prenhes ou amamentando. Voigt concluiu que as fêmeas frugívoras prenhes visitavam as encostas de argila para se desintoxicar porque estavam comendo duas vezes mais para alimentar seus bebês, o que signifi cava que estavam ingerindo duas vezes mais toxinas vegetais de frutas não maduras, sementes e folhas.

Como os morcegos, mulheres grávidas também podem ingerir terra por suas propriedades desintoxicantes, além de fonte suplementar de minerais. O primeiro trimestre da gravidez incomoda muitas mulheres com náuseas e vômitos, e estudos cruzados de várias culturas mostram uma associação entre geofagia no início da gravidez e o mal-estar matinal. Mulheres de países subsaarianos e do sul dos Estados Unidos relataram consumir argila para aliviar esse desconforto. Alguns pesquisadores propuseram que o mal-estar matinal elimina as toxinas da mãe, que podem prejudicar o feto. Talvez a geofagia e o mal-estar matinal funcionem em conjunto para proteger o desenvolvimento do feto. Como a argila pode conter bactérias e vírus, ela também protege mãe e feto de patógenos como a Escherichia coli e o Vibrio cholerae presentes em alimentos.

Embora apenas recentemente a comunidade científica tenha reunido evidências suficientes para sugerir que a geofagia é um comportamento adaptativo, ao longo de milhares de anos muitas pessoas – e não apenas mulheres grávidas – usaram minerais da argila como remédio para náusea, vômitos e diarreia. Na era da medicina moderna, empresas farmacêuticas aproveitaram as propriedades associativas do caulim, um mineral da argila, para produzir o Kaopectate, um medicamento que trata diarreia e outros problemas digestivos. Finalmente o composto sintético subsalicilato de bismuto – o principal ingrediente do Pepto-Bismol – substituiu o caulim, mas a argila ainda é usada atualmente de outras formas. Caulim e esmectitas se prendem não só às toxinas nocivas, mas também a patógenos. Fazendeiros utilizam argila no preparo de ração para a criação para inibir a transmissão de toxinas, e alguns pesquisadores propuseram aproveitar as propriedades de associação patogênica da argila para purificar a água.

É claro que ingerir terra também pode ser perigoso. Juntamente com minerais e materiais desintoxicantes seria possível ingerir bactérias, vírus, vermes parasitas e quantidades ameaçadoras de chumbo e arsênico, não intencionalmente. Devido a esses riscos, consumidores modernos de terra deveriam se limitar a produtos comercialmente seguros, passados por aquecimento ou esterilização –, mas não deveriam ser estigmatizados por seu comportamento.

De forma geral as evidências mostram que, em muitos casos, a geofagia não é um sinal de doença mental, mas uma defesa específica que evoluiu para combater toxinas e provavelmente suprir déficits de minerais. Embora possamos não pensar em geofagia quando tomamos vitaminas ou procuramos alívio numa colherada de Kaopectate, na verdade estamos participando da prática ancestral de comer terra.
  

Fonte: Revista Scientif American Brasil (ed. 122 - julho/2012) 

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