Nelson Hoinnef |
Segundo seu biógrafo Bob Stam, foi Jean-Luc Godard quem disse que o
único avanço havido em televisão foram as coberturas
esportivas. Principal articulador da Nouvelle Vague e ainda hoje um dos
mais instigantes cineastas do mundo, Godard, se disse mesmo isso, não
tinha ideia do quanto estaria certo nos anos seguintes. O avanço das
coberturas esportivas sobre tudo o que se faz em televisão é visível há
muito tempo para qualquer um que observe o meio, em cada uma de suas
telas, e tornou-se mais claro ainda durante a Copa do Mundo deste ano.
Ele ajuda a entender também uma boa parte do fracasso da televisão
contemporânea em se comunicar com os novos públicos e, de uma maneira
muito especial, da sua insistência de olhar de maneira estúpida para as
suas plateias. Outra vez, a tecnologia se antecipa às mudanças
narrativas no veículo e estimula o público a desejar vivenciar
experiências que o meio quase nunca está apto a acompanhar.
Embora ainda não existam pesquisas publicadas sobre o comportamento do
telespectador brasileiro nesta Copa do Mundo, basta ter percorrido
alguns lugares públicos, como bares e afins, durante os jogos, para
perceber a hegemonia da televisão fechada nos monitores colocados à
disposição do público nesses locais. Duas redes abertas – Globo e Band –
transmitiram as partidas ao lado de várias redes fechadas – os canais
SporTV, Fox Sports, ESPN etc. O sinal dos jogos era o mesmo, gerado pela
FIFA. Como se explica, então, a presença mais expressiva de uma rede
fechada – especialmente da SporTV – sobre a TV aberta de tão maior
tradição, nos receptores colocados em espaços públicos?
A resposta mais provável é que os gestores desses espaços – os gerentes
de bares e restaurantes – estão percebendo mais rapidamente do que as
redes os novos patamares de exigência no conteúdo do que é oferecido
pela televisão, em particular na relação que ela procura definir com sua
plateia. A SporTV, ela mesma, inaugurou uma era – logo seguida por
outras redes esportivas – de respeito ao seu público, com menos
artificialismo e, em consequência, menos tolice. O público, que só agora
gera padrões de crescimento expressivos na TV por assinatura, começa a
entender que é possível ser tratado com respeito – até porque respeito,
como se sabe, é bom e todo mundo gosta.
A possibilidade de se ter as mesmas imagens transmitidas ao mesmo tempo
em televisão aberta e fechada – melhor dizendo, a generalização dessa
possibilidade – é uma experiência bastante nova para muitos brasileiros.
A classe C acaba de desembarcar na TV por assinatura, chegou lá em
2013, quando essas plataformas já eram oferecidas no país havia 21 anos.
A TV por assinatura é coisa novíssima, portanto, para 13 milhões de
domicílios brasileiros que hoje compõem a base que lhe dá sustentação
(falo em base de sustentação mas, como diria Moreira da Silva, é sem má
intenção). Para esse público, até então, a TV aberta e a TV por
assinatura eram repositórios de espaços diferentes: sofisticação vs. banalidade; chatice vs. excitação; carência de recursos vs.
riqueza. Não é bem assim, não é nada assim, mas a transmissão
simultânea de uma Copa do Mundo realizada dentro de casa pode forçar
decisões de consumo que têm que se amparar em alguns parâmetros.
Ao vivo
Sabemos que na eventualidade de uma ausência temporária de sinal ou em
eventos como a propaganda eleitoral gratuita, a Globo permanece líder de
audiência, porque ela é de fato o default. Mas quando o
conteúdo que acompanha o mesmo sinal é diferente, o que o público pode
esperar de sua televisão é também diferente. No frigir dos ovos, existe
algo maior ainda do que isso: esse público pode opinar, e sua urna é o
controle remoto.
O que estamos testemunhando, em grande escala, é o espectador
brasileiro dizendo que não gostaria mais de ser sistematicamente tratado
como idiota – porque ele não é tão idiota quanto pensa a televisão
aberta. É ele, por exemplo, manifestando sua rejeição pela maneira pouco
natural e inspiradora de um estilo de Galvão Bueno – coisa que o
público vem fazendo em sites de relacionamento, mas que não pode fazer
no seu próprio televisor, porque abandonar o conteúdo que deseja seria
dar um tiro no pé. Dizendo, da mesma forma, que não se identifica mais
com uma transmissão tão popular e antiga quanto o que a Band está lhe
propondo.
E aí está a primeira chave para a compreensão do que está acontecendo:
esses modelos de transmissão esportiva são do tempo em que a captação e
processamento das imagens estavam num patamar muito, mas muito inferior
ao que estão hoje. As imagens evoluíram, enquanto as transmissões
ficaram estagnadas. E ficaram estagnadas por quê? Porque os
apresentadores que seguem este modelo não deram pulinhos pro ar, não se
tornaram onipresentes como as câmeras e velozes como o processamento de
suas imagens? Não – porque isso é atributo de câmeras e chips, não de
narradores.
As transmissões ficaram estagnadas porque continuaram tratando seu
público como um bando de seres inferiores, incapazes de alcançar o
Olimpo dos que dominam porque detêm o conhecimento. Bem pior do que
isso, detêm os simples instrumentos de transmissão, coisa que, como
sabemos, na era da internet tem importância cada vez mais discutível.
A relativização da importância da massificação tem um papel relevante
nisso. É muito recente a percepção de que não é necessário ser gado para
se sentir parte integrante da sociedade. Essa percepção, como se sabe,
aumenta na medida inversa da faixa etária do espectador. A internet lhe
oferece um conhecimento – inclusive sobre o jogo que está vendo –
impensável há cinco ou dez anos, enquanto a qualidade da captação das
imagens – hoje são cerca de 40 câmeras ativas em cada estádio – e em
especial o seu processamento – replays e ângulos alternativos para o
mesmo evento não dependem mais do olho humano – isso sim, é coisa nova.
As transmissões esportivas estão antecipando os próximos anos da
televisão aberta – anos em que o meio voltará a ser totalmente ao vivo,
como nos seus anos dourados, e, no caso brasileiro, possibilitando ao
espectador escolher a maneira como ele gostaria de ser tratado – como um
débil mental ou um indivíduo capaz de pensar. O espectador está
respondendo a essa questão.
Igual para igual
No Madison Square Garden e em outras arenas americanas, o ataque de uma
equipe é acompanhado por uma parafernália de sons, que indicam ao
espectador nas arquibancadas o momento de torcer, vibrar e se emocionar.
A origem disso está na música incidental do cinema, que indica ao
espectador todos os estágios desejáveis de sua emoção, do suspense à
indignação, do choro à euforia. A televisão fez a mais tenebrosa
adaptação que se poderia imaginar do som incidental, criando no seu
extremo as claps eletrônicas que simplesmente dizem ao espectador quando ele deve rir. O público de sitcoms
sabe que o momento de rir é determinado por seres eletrônicos que riem
naquele momento, ao nível em que a ausência eventual de uma clap
em face do mesmo estímulo (isto é, da mesma piada ou da mesma situação)
inibe, dificulta e literalmente impede o riso do espectador – porque
não é isso o que a televisão espera dele naquele momento.
É difícil dizer aos mais jovens a hora em que eles devem rir de uma
piada, assim como é insano esperar isso de plateias esportivas em
eventos que, como o futebol, foram espetacularizados em outra direção.
Não há instrumentos eletrônicos que façam um flamenguista típico torcer
ou deixar de fazê-lo durante um ataque do Flamengo no Maracanã, assim
como num esporte iconizado pela cultura local, como o futebol, não se
deve esperar um controle das emoções do espectador pela televisão.
Houve uma pouco inteligente tentativa neste sentido, há alguns anos,
quando a Globo passou a apresentar os jogos de futebol de uma maneira
bem análoga a que a televisão norte-americana apresentava as lutas do
UFC. Mas lutador de MMA é uma coisa, jogador de futebol é outra, como o
espectador brasileiro se encarregou de responder à malfadada tentativa.
As tecnologias que vêm transformando as transmissões esportivas – e que
ganharam notável visibilidade durante a Copa do Mundo de 2014 no Brasil –
exigem novos modelos de transmissão, e isso começa na maneira de se
olhar o espectador. Ele tem toda a informação que se possa imaginar
sobre o espetáculo, está conectado na segunda tela e não é mais
subserviente à arrogância dos apresentadores como eram seus avós. Quer
ser tratado com respeito e está mostrando isso. A forma de se dirigir a
ele não tem origem nos velhos tempos, mas nos tempos que vêm pela
frente. Serenidade, educação e, sobretudo, horizontalidade. Esses
elementos foram propostos justamente pelas redes esportivas e estão
começando a dar frutos agora. Quem está lá em cima é a câmera. O
conteúdo está aqui em baixo, sendo apresentado de igual para igual para a
audiência – ou a audiência simplesmente diz que não quer nada com ele, e
vai procurar quem lhe trata com dignidade.
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Nelson Hoineff é jornalista, produtor e diretor de televisão
Fonte: Observatório da Imprensa