O modo como a crítica tentava classificar Antônio Carlos Belchior tendia
a situá-lo basicamente no interior de dois grupos do cenário musical brasileiro.
“O primeiro deles conhecido como “pessoal
do Ceará” e que reunia os artistas que, a partir da década de 1970,
chegaram ao mercado nacional, sobretudo quando migraram para o Rio de Janeiro e
São Paulo. Dentre eles, figuras singulares como Fagner, Ednardo e Amelinha, tidos
como seus principais expoentes. O outro grupo dizia respeito à tão
propalada MPB,que agrupa artistas dos mais diversos gêneros
musicais, todos ligados a uma apreciação valorativa positiva e elitizada da
nossa música. Neste grupo encontram-se nomes como Chico Buarque, Caetano
Veloso, Elis Regina e outros tantos.
O compositor Belchior, em sua trajetória dentro da música brasileira, a
bem da verdade, não estava (nem queria estar) ligado especificamente a nenhum
grupo artístico. Dono de uma inteligência aguda, de um olhar crítico, sensível e
profundo, criou um estilo próprio e marcante. Para isso, investiu em alguns
interessantes procedimentos discursivos e estilísticos em suas composições,
fazendo uso, inclusive, de certos recursos
linguísticosque criaram interessantes contrapontos em diálogos polêmicos
com músicas de outros compositores e cantores, como Raul Seixas e Caetano
Veloso, por exemplo.
Sua semelhança com o filósofo alemão Friedrich
Nietzsche ia muito além do vasto bigode, que os dois cultivaram a vida toda. Em que pese
não a manifestar explicitamente, Belchior certamente sofreu muita influência de
alguns dos principais conceitos nietzschianos, dentre os quais as noções de vontade de poder, moral de rebanho, eterno
retorno do mesmo e, principalmente, de sua crítica ao mundo idealizado. A
relação fica bem mais evidenciada quando analisamos detidamente as letras do
cearense.
Para o filósofo alemão, o juízo moral tem em comum com o juízo religioso
o fato de crer em realidades que não existem. Ou seja, no entendimento dele, criamos,
com isso, um mundo demasiadamente idealizado que, por outro lado, acaba por
negar o mundo real.
Essencialmente realista e vitalista, o cearense Belchior, na mesma linha
das ideias defendidas por Friedrich Nietzsche, via a experiência com a
realidade como o verdadeiro espaço da emancipação do ser humano. Vemos isso em
“A palo seco”, por exemplo, quando diz: “Se você vier me perguntar por onde andei no
tempo em que você sonhava, de olhos abertos, lhe direi: amigo, eu me desesperava.
” Um pé no chão que reaparece também em “Alucinação”, à base de afirmações
como: “Eu não estou interessado em
nenhuma teoria, nem nessas coisas do Oriente, romances astrais... A minha
alucinação é suportar o dia-a-dia e meu delírio é experiência com coisas reais.
”
Em sua
obra, portanto, temos a arte como uma das vias de emancipação humana, ou seja,
um instrumento para a libertação dos sentidos que possibilitaria a vivência de
coisas novas, cravadas no cotidiano, cantado e contado em suas belas músicas. Na mesma perspectiva, Nietzsche pensava a beleza da
arte como um estímulo à fruição da vida. Afirmava que ela só era possível com a
manifestação da vontade de potência dos sentidos fisiológicos. O filósofo,
portanto, comparava a verdadeira arte a Dionísio, divindade grega da festa, do
sexo, da alegria, da liberdade, enfim, dos sentidos do corpo e dos afetos
inebriados.
Para se afirmar como um dos grandes compositores da nossa música (e um
dos mais geniais, ao meu sentir), Antônio Carlos Belchior atravessou terrenos
divisórios entre o corpo e a alma, forjando sua discografia sem a sede da fama
fácil e da popularidade passageira. Buscou mostrar, para tanto, na crueza da
realidade, na sinceridade das coisas, a dor que nos ensina a melhor sorver os
momentos de alegria. Afinal, como ele cantava, “a felicidade é uma arma quente.”
Ademais, o tom das críticas presentes em suas letras mexia com nossas frustrações
ideológicas, filosóficas e políticas. Sua música, feita para esse mundo onde
nem tudo são flores, despertava em nós uma lucidez luminosa, difícil de
encontrar em outros artistas.
No livro intitulado “Humano, demasiado humano”, Nietzsche aponta para
aquele que seria o destino do espírito verdadeiramente livre, afirmando que: “Quem alcançou em alguma medida a liberdade
da razão, não pode se sentir mais que um andarilho sobre a Terra e não um
viajante que se dirige a uma meta final: pois esta não existe. Mas ele
observará e terá olhos abertos para tudo quanto realmente sucede no mundo; por
isso não pode atrelar o coração com muita firmeza a nada em particular; nele
deve existir algo errante, que tenha alegria na mudança e na passagem. ”
Esta
sentença define muito bem quem foi para mim Belchior: além de um grande
compositor, um espírito livre. Um ser errante, poeta-músico e filósofo do constante
devir, que andou caminho errado “pela
simples alegria de ser”. Ser do algum lugar e do lugar nenhum. Afinal, “o mundo inteiro está naquela estrada ali na
frente”.
Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes nasceu no dia 26 de outubro de 1946, em Sobral, Ceará. Na década de 1970, houve a chamada “invasão nordestina”, com diversos artistas daquela região do país buscando um lugar ao sol no mercado nacional. O ex-estudante de medicina Belchior fez parte da "invasão cearense", ao lado de contemporâneos como Raimundo Fagner, Ednardo, Amelinha e outros. Mas para se tornarem conhecidos, precisaram de uma pequena ajuda. Em 1972, Elis Regina gravou “Mucuripi”, de Fagner e Belchior. A exposição beneficiou primeiro o parceiro dele na canção. Belchior ainda levaria um tempo para se destacar.
E foi também através de Elis que Belchior se tornou conhecido. Em 1975, a cantora interpretou “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida”, duas criações de Belchior, no espetáculo divisor de águas Falso Brilhante. Ela gravou as faixas em estúdio no álbum resultante do show, que saiu no ano seguinte. Com isto, Belchior se tornou um nome comentado no meio artístico. Assim ele foi convidado a gravar o segundo LP – ele tinha lançado em 1974 um álbum chamado apenas Belchior pela Continental. Hoje, o raríssimo álbum é conhecido como Mote e Glosa por causa da faixa que abre o trabalho; ele também contém pré-versões de "Palo Seco" e "Todo Sujo de Batom". Mas o disco foi do nada ao lugar nenhum.
Só que em 1976, com Alucinação, Belchior estava no mapa. O álbum totalmente autoral lançado em março daquele ano pela Polygram foi um marco difícil de ser superado até mesmo por ele. Além de “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida”, ele também tinha “Apenas um Rapaz Latino-Americano”, “À Palo Seco” e “Fotografia 3x4”. Produzido por Marcos Mazzola, o trabalho foi gravado ao lado de músicos de rock, mas o espectro era o de MPB, ou melhor, era uma música brasileira folk como nunca tinha sido ouvida antes. Tinha influência de música nordestina e um ou outro toque regional, mas o som era urbano, e urgente. As interpretações dele para as canções que haviam sido cantadas antes por Elis eram bem diferentes, tinham um toque próprio.
Belchior também era um astro pouco convencional: muito magro, com uma linguagem de corpo inquieta, cabelos esvoaçantes e um bigode que se tornou marca registrada. A voz dele também era difícil de ser classificada: anasalada, aparentemente anticomercial, mas bastante expressiva. Por causa do “canto-falado”, as comparações com Bob Dylan eram evidentes. Belchior não negava ou contestava isso.
O cantor tinha idade para ser considerado uma espécie de “irmão mais jovem" da geração de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros ícones. Mas a rigor, Belchior não tinha muito a ver esteticamente com aquele pessoal que veio antes. Ele não havia sido tropicalista, sambista ou seguidor da bossa nova. Ele até assimilava um pouco disso tudo, mas o samba canção (do qual a heroína dele, Elis Regina, também era discípula) era bem forte. Belchior também gostava dos Beatles e, obviamente, de música folk, o que deu lastro melódico a ele. Mas foi principalmente a mensagem temática e o conteúdo das letras que distanciaram Belchior do resto dos nomes já consagrados da MPB.
Na metade dos anos 1970, havia uma palavra que hoje está praticamente fora de moda. Era “desbunde”. Por causa do governo militar, o pais se encontrava politicamente e socialmente engessado. Já que não dava para fazer muita coisa, o jeito era se alienar, ou ir morar fora do pais, ou seja "desbundar". Todo mundo já estava acostumado com a censura e achava que lutar era inútil. A contracultura, que chegou tarde por aqui, se resumia a um bando de moleques fumando maconha escondido em alguma cachoeira no sertão. Havia um impasse ou desinteresse geral em meio à juventude.
Quando Elis e seus colaboradores montaram Falso Brilhante, tinham intenção a de radiografar a situação do Brasil. Mas precisava ser feito com certa sutileza, sem comentários políticos explícitos. As canções de Belchior se encaixavam com perfeição no arco dramático da peça/show. Outro conceito muito difundido na época era o “choque de gerações”. Nos Estados Unidos, ele versava sobre uma geração que havia crescido com o rock nos anos 1960 e não se entendia com os mais velhos. Já estes não entendiam o que havia acontecido e tinham saudades dos tempos menos complexos. Belchior foi o arauto brasileiro do choque de gerações. Ele o fazia com aprofundamento, inteligência e um verniz literato. Como cronista de comportamento, colocava um quê de análise psicológica nas letras que elaborava.
A letra de “Como Nossos Pais” já dizia tudo. Os erros das gerações anteriores seriam repetidos pelos filhos. E isso seria uma condição eterna. A falta de perspectiva de viver em um Brasil que não crescia economicamente era refletido em “Apenas um Rapaz Latino-Americano”. Já “Velha Roupa Colorida” citava os Beatles e os Rolling Stones para sentenciar que a euforia dos anos 1960 tinha ficado irremediavelmente para trás e era hora de mudar. Ele afirmava que “o que era novo, jovem, hoje é antigo” e falava “precisamos todos rejuvenescer”, mas não apontava como e quando isto seria feito.
O incrível é que o desencanto de Belchior se tornou algo comercialmente viável. Alucinação vendeu mais de 500 mil cópias e ele virou um ídolo de massa, cumprindo todo o ritual de aparecer com frequência na televisão, excursionar exaustivamente por todo o Brasil, etc. Mas depois de Alucinação, Belchior saiu da Polygram e assinou com a Warner. Lá, gravou outros grandes álbuns como Coração Selvagem (1977), Todos os Sentidos (1978) e Era uma Vez um Homem e Seu Tempo(1979). Teve outros hits como “Medo de Avião”, “Comentário A Respeito De John”, "Todo Sujo de Batom", “Paralelas” e “Galos, Noites e Quintais”.
Mas conforme a década de 1980 foi avançando, ele foi perdendo espaço. A obra ficou menos densa e menos tópica. O som se tornou pausterizado, uma praga que atingiu naquela época quase todos os ícones da música brasileira. Ele também já estava cansado de "problematizar". Como ele mesmo havia previsto, uma nova geração surgia e ele, Belchior, era quem agora ficava para trás. Ele ainda tinha um público fiel, mas os dias de grandeza artística e comercial haviam ficado para trás.
Ao completar sete décadas de vida, Belchior segue como um enigma. Antes de sumir, apesar de sempre agir como um cavalheiro, ele se mostrava um tanto arredio e desconfortável com a fama. Ele também nunca foi afeito a panelinhas. Em 2014, ganhou um disco tributo chamado Ainda Somos os Mesmos, com artistas independentes interpretando as músicas dele. Mas nem isso garantiu que ele fosse devidamente "redescoberto". Tirando as gravações feitas por Elis nos anos 1970, Belchior ainda é o melhor intérprete dele mesmo. Talvez porque a obra dele seja muito pessoal e singular. Os mais jovens no geral não conhecem quase nada de Belchior – talvez “À Palo Seco”, isso porque foi regravada pelos Los Hermanos.
Neste momento, a Universal lança a caixa Três Tons de Belchior, contendo reedições em CD de três álbuns do cantor. Um deles é o lendário Alucinação, que estava fora de catálogo em CD há um bom tempo. A nova edição reproduz, no tamanho reduzido do CD, o encarte do LP original de 1976. O som foi remasterizado. A caixa é completada por Melodrama (1987) e Elogio da Loucura (1988), ambos até então inéditos no formato digital.
O fato é que hoje a profecia se cumpriu. No momento, Belchior não é nada além de um rapaz (bem, nem tão rapaz) latino-americano. E a julgar pelos fatos recentes, sem nenhum dinheiro no banco.
Procurado pela polícia e hospedado de favor na casa de fãs, o compositor de clássicos como “Divina comédia humana” protagoniza uma história de amor e decadência
Por Marcelo Bortoloti
Capítulo 1 “No trevo, a 100 por hora”
Edna Prometheu é o pseudônimo da produtora cultural Edna Assunção de Araújo, de 46 anos. Morena, de cabelos encaracolados e baixa estatura, não é uma mulher de beleza estonteante. Militante de organizações de extrema-esquerda, é definida por seus amigos como “idealista utópica”. No começo de 2005, ela estava em São Paulo, no ateliê do artista plástico cearense Aldemir Martins, já morto, quando entrou pela porta o músico Belchior. O cantor de “Paralelas” também pinta quadros e frequenta o ambiente artístico. Edna queria organizar uma exposição de Aldemir no Ceará. Belchior disse que tinha amigos por lá, poderia ajudar. Trocaram telefones.
Os dois acabaram organizando juntos a exposição em Fortaleza, naquele mesmo ano. Na volta, Edna ligou para um amigo e contou a novidade: “Estamos namorando”. A partir daí, a vida plácida de Belchior derrapou no trevo a 100 por hora, como diz a letra de “Paralelas”. Para ficar com Edna, ele abandonou a então mulher, Ângela, com quem estava casado havia 35 anos, mãe de dois dos quatro filhos que tem. Afastou-se dos amigos e foi gradativamente deixando de fazer shows, até sumir sem dar explicações, em 2009. “Essa figura nefasta está fazendo uma lavagem cerebral nele”, afirma Jackson Martins, ex-empresário de Belchior. “Depois dela, sua vida só andou para trás”, diz o artista plástico cearense Tota, amigo de Belchior.
O desaparecimento de Belchior, há cinco anos, surpreendeu a todos, família e amigos. Ninguém poderia esperar tal atitude. Ele deixou para trás a agenda de shows e todo o patrimônio, incluindo roupas, documentos, quadros, automóveis e apartamento. O sumiço transformou Belchior em figura cult. A pergunta “onde está Belchior?” ecoou na internet e teve até repercussão internacional. Surgiram blogs sobre o tema. Campanhas nas redes sociais pediram a volta do músico. E apareceram montagens cômicas – “memes” – em que Belchior aparece em locais inusitados como a ilha do seriado Lost. Suas músicas no YouTube, que antes tinham 5 mil acessos diários, hoje batem 500 mil.
O sucesso no mundo virtual não trouxe nenhum benefício para o Belchior de carne e osso. Aos 67 anos, ele vive escondido com Edna em Porto Alegre. Não pode sair em público, pois é procurado pela polícia. Pesam contra Belchior dois mandados de prisão pelo não pagamento de pensões alimentícias. Uma devida à ex-mulher Ângela, com quem tem dois filhos já maiores de idade, e outra à mãe de uma filha de 19 anos que teve fora do casamento. Além das pensões, Belchior abandonou todos os demais compromissos e é cobrado na Justiça em processos que correm à revelia. O ex-secretário particular de Belchior, Célio Silva, ganhou um processo trabalhista contra ele no valor de R$ 1 milhão. Não há mais como recorrer. As contas de Belchior estão bloqueadas, e os imóveis que tinha comprometidos. Sem dinheiro, ele já se abrigou numa instituição de caridade no Rio Grande do Sul e morou de favor na casa de fãs que nem conhecia.
O mais intrigante na espantosa história de Belchior é que ele aparentemente não agiu movido por depressão, dívidas ou golpe publicitário, como se pensou no princípio. A influência da mulher é apontada pela maioria dos amigos como o motivo do seu comportamento. Ainda assim, não há unanimidade. “Edna não conseguiria sozinha virar a cabeça de alguém inteligente como Belchior. São dois sonhadores, juntaram suas utopias. Deixaram de acreditar neste mundo materialista, objetivo e mesquinho e partiram para um caminho de desapego”, diz o artista plástico José Roberto Aguilar, de 72 anos, amigo do casal.
Belchior nasceu numa família simples no interior do Ceará. Foi o mais bem-sucedido entre 23 irmãos. Estudou medicina na capital. Abandonou o curso depois de quatro anos, para ingressar na carreira artística. Estourou nos festivais na década de 1970 e compôs músicas com letras poderosas, como “A palo seco”. Seus sucessos foram gravados por Elis Regina, Jair Rodrigues e Roberto Carlos. Belchior é um artista com vasta cultura, domina cinco idiomas, conhece filosofia e gosta de física quântica. Até os anos 2000, lançava em média um disco por ano. “Ele era uma máquina, chegava a fazer três shows por noite. Era uma pessoa completamente dedicada à carreira”, diz o parceiro e ex-sócio Jorge Mello.
Tudo isso ficou para trás. O sumiço de Belchior lembra o caso do escritor russo Liev Tolstói. Aos 82 anos, ele abandonou tudo para viver como camponês. Tolstói teve um fim trágico – morreu de pneumonia depois de viajar na terceira classe de um trem durante o inverno soviético. Belchior, quanto mais se afasta da vida em sociedade, mais se afunda em dificuldades mundanas.
Capítulo 2 “Onde nada é eterno”
Depois que conheceu Edna, Belchior percorreu uma trajetória descendente em que, aos poucos, se despojou de todos os bens e obrigações. No final de 2006, ainda com a carreira aquecida, pediu que o empresário Jackson Martins parasse de agendar novos shows. Pretendia passar um tempo se dedicando à pintura e à tradução do poema Divina comédia, de Dante Alighieri, para uma linguagem popular. No início do ano seguinte, deixou o apartamento em que vivia com Ângela, mas continuou morando em São Paulo com Edna, num flat alugado. Desde então, a família diz não ter mais notícias dele. Belchior não era um marido muito presente, ficava até dois meses sem aparecer em casa. Teve duas filhas fora do casamento. Uma delas com uma fã que morava em São Carlos, no interior de São Paulo, com quem saiu uma única vez. A outra era fruto de um caso com uma estudante de psicologia no Ceará. Belchior pagava pensão alimentícia para a primeira. A família da segunda menina, hoje com 16 anos, não o acionou na Justiça.
As complicações começaram a aparecer em 2008. Ângela cobrava na Justiça uma pensão mensal de R$ 7 mil. Belchior se recusou a pagar. Na época, deixou de pagar também a outra pensão. Seus amigos notaram uma diferença de comportamento. “Ele parecia estranho. Me ligou perguntando sobre amigos que não vemos há 30 anos, num tom de voz que não era o seu”, diz Jorge Mello. Em outubro daquele ano, abandonou um carro no estacionamento do aeroporto de Congonhas, em São Paulo.
Belchior continuou em São Paulo até março de 2009, quando deixou o flat sem quitar os últimos meses de aluguel. Na garagem, ele largou um segundo carro, e em seu apartamento ficaram roupas, rascunhos de música, cartões de crédito e o passaporte. Belchior também abandonou tudo na casa alugada onde funcionava seu escritório: coleção de quadros, discos, documentos e o computador onde estava parte da tradução da Divina comédia, projeto que lhe consumira três anos. Seu secretário, Célio Silva, continuou abrindo o escritório, na esperança de que retornasse.
Belchior viajara com Edna para o Uruguai, onde descansava num vilarejo. Foi processado por Célio e por todos os credores que ficaram em São Paulo. Não se defendeu. Foi representado por defensores públicos até nos processos de pensão alimentícia. Como consequência, suas contas foram bloqueadas, e apareceram dois mandados de prisão contra ele, já que não pagar pensão é um crime passível de cadeia. “Como não tive contato com ele, a defesa ficou restrita a questões formais”, diz a defensora Claudia Tannuri, escolhida para defendê-lo no processo movido pela ex-mulher Ângela. Belchior nem sequer se importou com o destino de seus pertences. As roupas que estavam no flat foram doadas à caridade. A filha mais velha recolheu os documentos. Os carros foram levados para depósitos públicos. A dívida com os estacionamentos já ultrapassava seu valor. O proprietário do imóvel onde funcionava o escritório lacrou o lugar e recolheu os pertences. Seus quadros se perderam com a umidade.
Como na música “Divina comédia humana”, “em que nada é eterno”, Belchior e Edna perambularam durante todo esse período de hotel em hotel – várias vezes, sem pagar a conta. Amigos culpam Edna pela iniciativa. O primeiro hotel em que isso aconteceu foi o Gran Marquise, em Fortaleza. Os dois ficaram hospedados ali ainda em 2006. Saíram sem pagar dois meses de estadia, no valor de R$ 8 mil. Depois, repetiram a prática em pelo menos quatro locais. No Icaraí Praia Hotel, em Niterói, deixaram uma conta de R$ 4 mil. “Alguns funcionários tiveram de arcar com parte da dívida, já que permitiram que ele ficasse hospedado mais de uma semana sem pagar a conta”, diz o atual gerente, Germano Lopes. No Royal Jardins Boutique, em São Paulo, a conta pendurada foi de R$ 12 mil. “Eles deixaram um cheque caução, mas não tinha fundos”, diz Elly Shimasaki, gerente na ocasião.
O caso mais recente foi no hotel Cassino, na cidade de Artigas, no Uruguai, onde o casal se hospedou entre julho de 2011 e novembro de 2012. Os últimos meses ficaram sem pagamento, restando uma dívida de R$ 35 mil. Lá, Belchior deixou para trás roupas e um laptop.
“É uma lástima que um artista brasileiro dessa importância tenha agido assim”, diz o gerente uruguaio Ricardo Rodrigues. O hotel entrou com uma queixa criminal contra o casal.
Capítulo 3 “Sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco”
Nos últimos anos, Belchior se manteve à distância de qualquer atividade remunerada. Em 2009, quando o desaparecimento ganhou repercussão nacional, a montadora General Motors ofereceu um cachê milionário para ele aparecer num comercial. Belchior deveria dizer que, com o novo carro da GM, até ele voltava. Belchior recusou o convite e ficou bastante chateado com o teor da proposta. O empresário Jackson Martins diz que recebe constantes pedidos para shows, mas não consegue localizá-lo desde 2007. “Pago as dívidas dele se ele voltar”, diz. Outro empresário que trabalhou com Belchior por quase 30 anos, Hélio Rodrigues, diz que o desaparecimento fez aumentar o interesse do público. “Depois do escândalo, ele consegue lotar qualquer casa de espetáculo. Com dois shows em São Paulo, eliminaria as dívidas”, diz.
Hoje, a maior pendência de Belchior é o processo trabalhista ganho pelo secretário Célio, no valor de R$ 1 milhão. A causa está julgada. Um apartamento de propriedade do músico em São Paulo está em execução. A dívida da pensão para a ex-mulher Ângela soma cerca de R$ 300 mil. Mas cresce a cada dia, já que Belchior continua obrigado a pagar R$ 7 mil por mês. “O sumiço só agravou a situação dele. Se não tem dinheiro, deveria enfrentar juridicamente o processo, argumentando que não pode pagar”, diz Paulo Sato, advogado de Ângela. A pensão atrasada da filha que mora em São Carlos gira em torno de R$ 90 mil. As dívidas com hotéis cobradas na Justiça somam R$ 47 mil. Não são impagáveis, desde que Belchior volte a se apresentar.
A derradeira fonte de renda de Belchior eram os direitos autorais de suas músicas. Segundo o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), nos últimos cinco anos foram depositados R$ 367 mil referentes à execução pública de suas obras. Parte do dinheiro ficou retida quando as contas bancárias foram bloqueadas. Desde então, Belchior não contou com nenhum outro tipo de renda.
Capítulo 4 “Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho”
Em janeiro deste ano, Edna e Belchior procuraram a Defensoria Pública em Porto Alegre. A história ganhou ingredientes ainda mais estranhos. Os dois alegavam que o bloqueio das contas e os mandados de prisão impediam que ele trabalhasse e voltasse a ganhar dinheiro para pagar as dívidas. Belchior aparentemente estava disposto a voltar. Mas o comportamento do casal era confuso. Edna falava desbragadamente, enquanto Belchior ficava quase sempre calado. “Durante um mês, me informei sobre os processos que tramitam em São Paulo. Fizemos um pedido judicial para a suspensão da execução, até que ele conseguisse se restabelecer. Nesse meio-tempo, Belchior sumiu”, diz a defensora pública Luciana Kern, que o atendeu.
Nesse mesmo período, Edna ligou para o jornalista gaúcho Juremir Machado, que não conhecia. Disse que Belchior estava escondido na cidade e precisava de ajuda. Ela queria que Juremir os levasse à sede regional da TV Record para fazer uma denúncia delirante. Juremir notou algo de incomum no casal. Eles se escondiam atrás de pilastras e ficavam olhando a movimentação nas ruas antes de entrar em algum lugar, como se fossem seguidos. Na retransmissora da TV, Edna afirmou ter um dossiê contra a TV Globo. O programa Fantásticonoticiara o desaparecimento de Belchior em 2009 e a fuga do hotel uruguaio, em 2012. “Ela dizia que Belchior era difamado pela Globo e queria justiça. Falou até que havia uma tentativa de matá-lo”, diz a jornalista Vânia Lain, que recebeu os dois. Eles disseram que voltariam na semana seguinte trazendo os documentos, mas desapareceram.
Em Porto Alegre, Belchior e Edna ficaram inicialmente hospedados num hotel simples no centro, pago com ajuda dos funcionários do Tribunal de Justiça, primeira porta em que o casal bateu quando chegou à capital gaúcha. Depois, foram abrigados no Centro Infantojuvenil Luiz Itamar, instituição de caridade na região metropolitana. Dali, foram levados ao advogado Aramis Nacif, ex-desembargador do Estado, que poderia ajudar Belchior com os processos. “Ele dizia que um agente apareceria, mas nunca apareceu”, diz Nacif. Durante um mês, o casal ficou abrigado na casa de praia do filho dele. “Eles não tinham dinheiro algum. Edna apresentava um sentimento de perseguição muito grande, parecia ter algum distúrbio psicológico”, diz. Foi nesse momento que Belchior conheceu o advogado Jorge Cabral, na casa de quem se hospedou por quatro meses.
Cabral tomou um susto ao perceber que um músico importante como Belchior estava ali. E os convidou para ir a um sítio de sua propriedade, em Guaíba, local mais agradável. Belchior e Edna continuavam sem dinheiro. Nesse período, o advogado levou mantimentos, roupas, itens de higiene pessoal e até tintura para Belchior pintar os bigodes de preto.
No sítio de Cabral, Belchior não bebia nem comia carne vermelha. Passava os dias tomando chá, caminhando e cuidando das ovelhas. Fazia muitas anotações em papéis, que escondia numa pasta. Durante esse período, gastou duas canetas inteiras. Leu cerca de 40 livros. Não apresentava sinais de depressão. Parecia, segundo Cabral, alheio aos problemas que o cercavam. “Eu imaginava que ele era apenas um compositor nordestino, mas encontrei um artista plástico, um pensador, um filósofo”, diz Cabral. Ele pretende escrever um livro sobre a experiência.
Belchior só não gostava de falar sobre sua situação. Recusava-se a tocar violão e cantar. Edna impedia que ele fosse fotografado. O casal também não tomava nenhuma providência para resolver os problemas jurídicos. “A gente esperava que a situação se resolvesse, mas não acontecia nada. E aquilo não condizia com um homem lúcido, com memória fantástica, que fala várias línguas e tem uma quantidade enorme de músicas gravadas”, diz Jorge Cabral.
“Esse tempo que ele falou que daria na carreira já está longo demais. Só queremos notícias dele”, diz a irmã, Ângela Belchior. Belchior não apareceu nem no enterro da mãe, que morreu em 2011. Por telefone, a ex-mulher Ângela soa reticente. Não gosta de falar sobre um assunto tão delicado com a imprensa. Ela conta que, desde 2007, Belchior não entra em contato nem com os filhos. “Não entendo. Os empresários dele não entendem”, diz.
Em julho deste ano, Cabral pediu que o casal saísse, dado que Belchior e Edna não davam sinal de acabar com aquela situação de total dependência. Ele os deixou na porta da sede regional da União Brasileira de Compositores, com R$ 50 no bolso. Na União, Belchior tentou desbloquear o pagamento de seus direitos autorais, comprometido pelos processos na Justiça. Não conseguiu.
Belchior foi visto pela última vez na entrada do prédio, um edifício moderno num bairro de classe média de Porto Alegre, em frente a uma avenida bastante movimentada. Carregava uma pequena mala nas mãos e material de pintura debaixo do braço. Belchior – na belíssima letra de “Comentário a respeito de John”, ele cantava “eu prefiro andar sozinho” – estava, como sempre, ao lado de Edna.